O grande desafio de construir um país de leitores
Presidente da Associação Nacional de Livrarias analisa a importância do mercado independente de livros para fomentar a cultura brasileira – e como o Estado pode contribuir. O primeiro passo: aprovar a Lei Cortez, que combate a concorrência predatória da Amazon
Publicado 07/02/2025 às 16:22 - Atualizado 07/02/2025 às 16:24
Alexandre Martins Fontes em entrevista Carolina Azevedo, na Cult
Entre editor e livreiro, Alexandre Martins Fontes ocupa um lugar particular no mercado editorial. Antes de assumir controle da editora e das livrarias fundadas por seu pai, Alexandre ambicionava carreira no mundo das artes, paixão que o acompanha hoje na sua ocupação de colecionador. Entre as prateleiras da livraria Martins Fontes, celebra o privilégio de viver cercado de arte, que, para ele, é o “alimento da alma”. Foi durante a pandemia da Covid-19, que, obrigado a fechar as portas da livraria, Alexandre deparou com a dimensão da crise do setor.
Hoje, como diretor-presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Alexandre volta seus esforços para a aprovação da Lei Cortez, que visa limitar a 10% o desconto sobre o preço de capa dos livros nos 12 meses posteriores ao lançamento. Com inspiração na chamada Lei Lang, em vigor na França desde 1981, o projeto de lei tem o objetivo de interromper a concorrência predatória de gigantes virtuais como a Amazon, que se baseia em descontos acima do que seria economicamente sustentável para livrarias independentes. A proposta – que tramita no Congresso desde 2015 e hoje aguarda análise da Câmara dos Deputados – visa proteger as livrarias, mas deixa dúvidas quanto aos benefícios que oferece aos leitores e editores.
De Nova York, sentado em frente à sua coleção de originais do artista americano Terry Winters, ele fala à Cult sobre o preço do livro no Brasil, a importância da lei no fomento às livrarias, as práticas da Amazon no mercado livreiro e as falhas de editores e distribuidores na formação de um mercado editorial que ajude a construir um país com mais leitores. A pedido da Cult, essa entrevista contou ainda com perguntas enviadas por representantes de editoras brasileiras.
De onde vem o seu interesse pelo negócio dos livros?
Eu brinco que nasci dentro de uma livraria. Estou prestes a fazer 65 anos, e a livraria Martins Fontes tem a mesma idade – foi fundada pelo meu pai em janeiro de 1960, e eu nasci em abril do mesmo ano. Minha mãe estava grávida de mim quando meu pai, aos 25 anos, decidiu abrir uma livraria em Santos.
Mesmo antes de entrar na faculdade – fiz arquitetura na FAU-USP, porque sempre gostei do mundo das artes –, eu me envolvi com a editora, fazia todas as capas dos livros. Mas a decisão de me juntar à empresa, eu só tomei quando estava com 30 anos – e foi a melhor coisa que eu fiz na vida. Não a decisão de trabalhar na empresa, mas de trabalhar com o meu pai. Ali, descobri o profissional Waldir Martins Fontes. Posso te dizer que amo o que faço, tenho o privilégio de estar à frente de uma empresa que atua no mundo dos livros há 65 anos – o que, no Brasil, não é uma coisa qualquer.
Como editor e livreiro, mas também como colecionador de arte, o que significa a arte em sua vida?
Você falou que sou colecionador. Hoje explico isso de maneira mais tranquila, mas, no passado, não gostava do título, porque sempre achei uma coisa pretensiosa, associada a dinheiro. Não sou um homem rico, nunca fui. Não é fácil ganhar dinheiro no mundo dos livros, e não posso reclamar da minha vida, mas, certamente, não sou rico. Sou uma pessoa que gosta de juntar coisas, mentalidade típica do colecionador. É quase uma doença – uma doença do bem.
Mas é aquela coisa do amor de ter aquilo perto de mim. É um privilégio, eu vejo pelos meus filhos, que nasceram e cresceram num ambiente em que você tem arte espalhada por todos os lados. A arte é o alimento da alma, e eu fico muito feliz em viver cercado de arte – não só visuais, mas também a literatura.
Como você articula os interesses diferentes da empresa Martins Fontes, enquanto livraria e editora?
Poucas pessoas têm a experiência que eu tenho. Essencialmente, sou editor, mas cada vez mais me vejo como livreiro. Além disso, também sou importador e distribuidor de livros – então conheço esse mercado com profundidade. E são trabalhos antagônicos: sou concorrente de outras livrarias, mas também fornecedor para elas. Isso me deixa numa posição complexa, mas fico feliz de dizer que me vejo à vontade nessa posição.
Hoje, sou presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL). Mas, durante muito tempo, fui diretor do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e da Câmara Brasileira de Livros (CBL), na condição de editor. Quando passei a dar mais atenção para a nossa livraria da avenida Paulista, 20 anos atrás, deixei de ser só editor para virar livreiro. Como presidente da ANL, sou obrigado a mostrar aos livreiros as dificuldades enfrentadas pelos editores, e o contrário também.
A defesa da Lei Cortez é um exemplo de situação em que isso acontece. Muitos afirmam: essa é uma luta dos livreiros, os editores não estão envolvidos ou interessados. Mas esse é um erro da parte dos editores, porque, na medida em que temos um ecossistema fragilizado, todos perdem. Se as editoras continuam vendendo seus livros para a Amazon, elas perdem porque deixam de ter livrarias onde os seus livros poderiam estar expostos. Essa luta não é só das livrarias, mas do mercado editorial como um todo. Esse é o papel que tenho exercido aqui: mostrar para a sociedade que essa lei será boa para todos, e isso é uma consequência desse lugar ambíguo que ocupo hoje no mercado.
Qual é o papel da ANL e o que significa, para você, ser presidente da associação?
Apesar de eu também ter sido diretor do SNEL e da CBL, essa não é uma vocação minha. Durante muitos anos, não me envolvi com esse trabalho “político” do mercado de livros. Sempre desconfiei, para ser sincero, do trabalho dessas entidades. Ser presidente da ANL é uma surpresa para mim mesmo.
Quando veio a pandemia, nós, livreiros, ficamos muito preocupados com o que estava acontecendo, pois fomos obrigados a fechar as portas. Então, criamos um grupo de empresários – que existe até hoje – para discutir como iríamos sobreviver àquele cenário. Cerca de dois anos depois da criação do grupo, nós nos perguntamos: e a ANL? A minha posição era muito crítica à associação – não às pessoas, mas ao trabalho concreto realizado por ela.
A ANL é uma entidade pobre, que reflete o mercado livreiro. Hoje, as livrarias enfrentam dificuldades muito grandes, com problemas para arcar com os seus próprios custos. A pergunta que todo livreiro brasileiro faz é: por que gastar dinheiro mensalmente com uma entidade que, em última análise, faz pouco para o mercado? Nossa resposta foi parar de reclamar e assumir esse trabalho.
Decidi pela presidência da ANL por entender que o Brasil precisa, urgentemente, aprovar uma lei que corrija o que vem acontecendo com as livrarias. Se nós não tomarmos cuidado, isso vai implicar o desaparecimento desses espaços. O meu trabalho na ANL é o mesmo de todos os livreiros que vêm fazendo um lindo trabalho à frente das suas livrarias e que, junto comigo, resolveram assumir esse desafio de trabalhar em prol delas.
O livro é caro no Brasil?
A resposta mais sincera é que o preço do livro no Brasil remunera mal os autores, as gráficas, as editoras e as livrarias. Em outras palavras, o livro deveria estar mais caro. Quando escutam isso, pensam que estou louco, porque a maior parte das pessoas entende que o livro é um produto caro.
O brasileiro está muito pobre. As pessoas hoje têm menos poder aquisitivo do que tinham algumas décadas atrás – não só para comprar livros, mas para comprar uma calça, para ir em um restaurante. Mas, quando as pessoas falam que o livro está caro, é porque elas não valorizam o produto. Vou pintar essa imagem para você: você vai comprar um caderno, sem texto, sem fotografia, só papel branco. Um caderno mais luxuoso é capaz de ter o preço de um livro. Mas o livro tem o trabalho do autor, do tradutor, do revisor, do designer, da divulgação. As pessoas não conhecem os custos que estão por trás da produção de um livro e, em última análise, não valorizam esse trabalho.
Essa situação fica pior por não termos uma lei como a Cortez. A editora publica um livro, estabelece o preço de capa e consigna para as livrarias – incluindo a Amazon – com desconto. Na medida em que nós temos o mercado concentrado nas mãos da Amazon, que pede descontos cada vez mais altos para as editoras, elas são obrigadas a aumentar o preço do livro. É uma ilusão as pessoas pensarem que, ao comprarem na Amazon, ganham um desconto maior. Pois, conforme se cria um monopólio, o preço de capa aumenta.
As pessoas não gostam que se compare o Brasil com a França, então a comparo com a Inglaterra, que não tem uma lei como a Cortez, enquanto a França tem – a lei Lang. Os livros na França são mais baratos do que na Inglaterra, que tem muito menos livrarias. A Inglaterra, até a década de 1990, tinha um acordo que se chamava Net Book Agreement, que determinava o preço de capa e proibia descontos. Há mais de trinta anos, a Inglaterra deixou de ter esse acordo, período em que perdeu centenas de livrarias e o preço dos livros subiu desproporcionalmente. Os editores ficaram reféns de um número reduzido de empresas que trabalham com livros e, obrigados a darem descontos mais altos aos vendedores, aumentaram o preço de capa.
Além disso, a noção de que “eu vou perder o meu direito de comprar livros com desconto” é uma leitura superficial do problema. A Lei Cortez propõe não permitir descontos superiores a 10% somente nos lançamentos – isto é, durante os 12 primeiros meses de existência de um livro. Para usar a Martins Fontes da Paulista como exemplo, os lançamentos representam apenas 6% daquilo que temos a pronta-entrega. Todos os demais livros serão vendidos com o desconto liberado.
Por que a Lei Cortez propõe controlar descontos só nos primeiros 12 meses?
Porque o lançamento é muito importante para as livrarias. É na livraria que você descobre o que está sendo lançado. Como tem um limite físico, ela não consegue expor todos os livros publicados no Brasil, fazendo uma curadoria. Cada livreiro tem o seu critério, mas é natural que a livraria tenha os best-sellers, muitos dos quais são lançamentos. No momento em que a lei regulamenta os descontos dos lançamentos, ela protege as livrarias. Quanto mais livrarias nós tivermos espalhadas pelas ruas do Brasil, melhor será para a sociedade brasileira como um todo.
A pandemia mostrou que, quando as livrarias estavam com as portas fechadas, as editoras não conseguiam vender os lançamentos, porque é ali que as pessoas os descobrem. Se você ficar por cinco minutos na nossa livraria da Paulista, você vai olhar as prateleiras e conhecer um monte de coisas novas. Se você ficar o mesmo tempo no site da Amazon, eu garanto que você não vai descobrir 5% daquilo que você teria dentro de uma livraria. Por isso, essas leis estabelecem um prazo de 12 meses para que o livro tenha proteção.
Quem nós estamos protegendo, afinal? Apenas os livreiros? Não: na medida em que você tem mais livrarias espalhadas pelas ruas das cidades, você protege a sociedade. Por isso essa lei é tão importante. Ela protege o ecossistema de uma área fundamental para a cultura e para a saúde do país.
A Lei Cortez usa muito do exemplo francês – a Lei Lang, de 1981 – para se defender de críticas. Mas a lei francesa institui, para além do desconto máximo de 10% para lançamentos, o preço de capa, determinado pelo editor. O exemplo inglês também seguia essa lógica. Qual a diferença em relação à proposta brasileira e por que não fazer isso no Brasil? Essa lógica não beneficiaria mais o leitor?
No mundo inteiro, quem estabelece o preço de capa é a editora. A partir desse valor, a editora oferece um desconto para as livrarias, a fim de que possam ter uma margem para pagar os custos e vender o livro de acordo com o preço de capa. Num país sem uma lei que regulamente essa questão, o livreiro adquire o livro por um preço inferior ao preço de capa e vende pelo preço que quiser.
A opção estratégica da Amazon é não ganhar dinheiro vendendo livros e usá-lo para atrair o comprador para o site. Quem compra livros é uma criança, um jovem, um idoso, um homem, uma mulher, uma pessoa branca, preta etc. É o produto que atrai a maior diversidade de pessoas para o site. Poderiam ter escolhido taças de vinho, mas seria um público muito restrito, e o produto, frágil. O Jeff Bezos não escolheu vender taça de vinho por um preço baixo, fez isso com o livro, que atende a todas as camadas da população e se embrulha facilmente. A Amazon usa o livro como isca para atrair o cliente. No momento em que faz isso, ela destrói o ecossistema.
O livreiro, que não pode abrir mão da sua margem, não consegue vender o livro pelo preço que a Amazon vende e, no momento em que ele vende por um preço mais alto, o cliente deixa de comprar com ele. Conforme as pessoas vão comprando mais na Amazon, elas contribuem para o desaparecimento das livrarias.
A pergunta que temos que nos fazer é: estamos contentes com o desaparecimento das livrarias? Se a resposta for que as livrarias têm um papel fundamental para a cultura de um país, temos que fazer alguma coisa para que isso não aconteça. Países como França, Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, Argentina, México, Japão e Coreia do Sul têm leis que impedem o uso do livro como objeto de marketing.
Você está otimista em relação à aprovação da lei?
Eu diria que sim. Em todas as conversas que tenho sobre esse assunto, explicando o que está por trás do projeto, as pessoas saem convencidas de que estamos falando o óbvio. Você não pode permitir que uma empresa, seja ela qual for, destrua um ecossistema tão importante. Se você olhar para o que aconteceu no Brasil desde a chegada da Amazon no país, para a indústria editorial e livreira, é uma tragédia. A Amazon está no Brasil há 12 anos. Nesse período, a Saraiva fechou e a Fnac fugiu do país, voltou para a França, onde existe uma lei que a protege. Sem falar nas inúmeras livrarias de bairro que fecharam suas portas. Nós temos uma queda no consumo de livros e uma queda no número de leitores. O quadro que se vê no Brasil é dramático, e você pode ter certeza de que isso tem a ver com a Amazon.
Existe, sim, grave desinformação em relação à lei. A opinião pública, na medida em que se posiciona contra ela a partir de uma leitura superficial do seu significado, atrapalha. É preciso convencer a sociedade da importância dessa lei.
Considera justo o modelo de negócio imposto por livrarias que só trabalham com livros consignados?
As livrarias não têm capital para comprar todos os livros expostos da loja. A consignação é uma maneira de resolver essa questão. O Brasil produz muito mais livros do que as livrarias conseguem absorver. Por isso, a consignação é um “mal necessário”. Ela também traz problemas para a livraria. Você não faz ideia do trabalho que dá para fazer o acerto de consignação de tudo aquilo que a livraria tem dentro da loja todos os meses. Além disso, ela tem que cuidar muito bem desse livro – se o livro for roubado, é a livraria que assume o custo. Mas é a saída que o mercado encontrou para garantir que exista diversidade e quantidade de livros disponíveis.
Algumas livrarias atrasam o pagamento ou prestam contas sem rigor algum. É uma prática comum no Brasil. Quais são os planos da ANL para melhorar essa dinâmica?
Essa resposta é muito simples: eu, como editor e como livreiro, luto por um mercado profissional e cumpridor das suas obrigações. A ANL jamais defenderá a atitude de uma livraria que não acerta uma consignação corretamente ou que atrasa os seus pagamentos. Falo como editor: se trabalho com uma livraria que não acerta a consignação ou que não me paga direito, eu deixo de fornecer. Uma vez que a ANL trabalha em prol de um mercado mais organizado, mais rico e pelo fortalecimento das livrarias, ela cria condições para que as livrarias cumpram com suas obrigações.
Sergio Alves, editora Cosmos:
Você acredita que, um dia, poderemos ter um mercado editorial em que cada um siga estritamente o seu papel? A editora apenas faz o livro, o distribuidor apenas distribui o livro e a livraria apenas vende para o leitor?
Esse é um tópico que eu quero assumir em 2025. Estou marcando uma reunião com três entidades do livro – SNEL, Libre [Liga Brasileira de Editoras] e CBL, representantes das editoras – para que, junto com a ANL, esse tópico seja abordado. Estes serão os meus pontos: se a minha editora fornece para uma livraria que não me paga, eu paro. Da mesma forma, se eu forneço para a Amazon e ela vende o meu livro com descontos abusivos, eu também deveria parar de fornecer, afinal, ela não está contribuindo para o enriquecimento do mercado. A gente não precisaria ter a Lei Cortez se as editoras estivessem impedindo a Amazon de agir dessa forma.
Ainda: se a editora deixar de vender diretamente para o consumidor final, por entender que é importante que existam livrarias, ela estará contribuindo para um mercado mais saudável. Mas, acredite, isso não acontece. Boas editoras fazem campanhas de venda com descontos diretamente para o consumidor final. Ora, quando a editora vende um livro com desconto, ela está destruindo o ecossistema.
Eu acredito, porque sou um homem otimista, que poderemos chegar a esse lugar que o Sergio deseja, mas, para isso, é preciso atuar. Uma parte importante desse trabalho está nas mãos do editor. Cabe a ele determinar qual comportamento é aceitável e qual não é. Como presidente da ANL, quero que essas entidades que representam editoras se movimentem pela autorregulação. Vou dar um exemplo: se você quiser comprar um iPhone com 10% de desconto, você não consegue, porque a Apple não permite que vendedor algum faça isso. Se as editoras fizessem a mesma coisa, esse problema estaria resolvido.
As editoras e livrarias poderiam contribuir mais com a formação dos leitores? Como pode ser reformulada essa parceria em vista da construção de um país com mais leitores?
Se tivermos um mercado mais forte – em que as editoras publicam mais, as distribuidoras fazem o seu papel e as livrarias têm condições de pagar suas contas –, não tenho a menor dúvida do potencial da indústria editorial na formação de leitores. Não acho que esse papel caiba só ao Estado, precisamos de um ecossistema editorial saudável para que todo mundo faça isso.
Seria papel dos governos e da sociedade civil tornar o Brasil efetivamente um país de leitores?
É óbvio que o Estado tem um papel importante. Cabe a ele ter ou não uma Lei Cortez, passar leis que isentem as livrarias de pagar IPTU, estabelecer a maneira como os livros serão adquiridos pelas bibliotecas públicas. Se a biblioteca pública compra de uma livraria de bairro, ela está cumprindo o seu papel social, mas isso passa por decisões do Estado que não estão sendo tomadas.
Sílvia Nastari e Bruno Zeni, editora Quelônio:
Sabemos que livrarias, editoras e leitores configuram um sistema. Existe, na ANL, algum plano de incentivo à diversificação dos acervos das livrarias, de forma a contemplar mais editoras, como as independentes e artesanais, e gêneros literários importantes como a poesia, e assim fomentar não apenas as livrarias, mas toda a cadeia e o ambiente cultural?
Cabe à livraria escolher os livros que ela vende, não à ANL. As empresas devem ter a liberdade de escolher aquilo que podem e querem comercializar. Se uma livraria quiser ter só livros de política ou de poesia, por que não? Ela tem a liberdade de fazer isso. O que a associação pode fazer é trabalhar em direção a um mercado mais organizado e educar as pessoas. A ANL jamais terá o papel de polícia.
Rejane Dias, editora Autêntica:
Sabemos das dificuldades que as livrarias físicas enfrentam, mas sabemos também que um dos trunfos dessas livrarias é ter vendedores que saibam seduzir os leitores e fazer boas indicações de leitura. A ANL tem projetos para a qualificação de vendedores de livrarias?
Eu trago, mais uma vez, essa questão da fragilidade da ANL. O Brasil tem algumas iniciativas de cursos para vendedores e livreiros, dos quais venho participando há anos. A ANL apoia todas essas iniciativas, mas, hoje, não tem condições de fazer isso.
Muitas cidades brasileiras sofrem com a falta de livrarias. A ANL, para além da Lei Cortez, tem trabalhado para a construção de políticas públicas que viabilizem o nascimento de novas livrarias e a continuidade das que aí estão – inclusive fora do eixo Rio-São Paulo?
Quando o meu pai, aos 25 anos de idade, resolveu abrir uma livraria em Santos, a cidade tinha dezenas de outras livrarias. Hoje ela tem a Martins Fontes e uma livraria vizinha com problemas financeiros. Ou seja, Santos, que não é uma cidade qualquer no estado de São Paulo, está correndo o risco de ficar sem livrarias também. Nós – a ABL, os editores, os livreiros, a sociedade, políticos – temos que trabalhar para criar condições para que um jovem de 25 anos, como o meu pai, tenha a coragem e o incentivo para abrir uma livraria.
O Brasil só terá mais livrarias se houver leis que as protejam. Não só a Lei Cortez. Por exemplo: se as cidades do interior abrissem mão de cobrar IPTU das livrarias ou se as bibliotecas comprassem os livros não diretamente da editora, mas através das livrarias, elas estariam incentivando o pequeno empresário. Além do óbvio: se o Brasil investisse mais em educação e levasse a sério a questão da importância da leitura, teríamos um país mais culto, leitor e rico em livrarias. São vários os caminhos para incentivar o fortalecimento e o enriquecimento das livrarias, mas nada disso está sendo feito pelo Estado.
Lizandra Magon de Almeida, presidenta da Libre e diretora editorial da editora Jandaíra:
O ano de 2024 foi marcado por uma grande crise, que atingiu, sobretudo, as editoras independentes. A impressão que tenho é de que voltou a haver uma concentração de mercado. Qual a sua expectativa para 2025 em termos de vendas em livrarias, como editor e como livreiro?
Eu diria que só teremos um mercado editorial saudável na medida em que ele estiver organizado: editoras publicam, distribuidores distribuem, livrarias vendem para o consumidor final. Hoje, estamos permitindo que o ecossistema editorial brasileiro se enfraqueça. A nossa luta – da Lizandra na Libre, da Rejane na Autêntica, do Alexandre na Martins Fontes – é por mais livrarias espalhadas pelas ruas das nossas cidades, mais editoras publicando livros, maior bibliodiversidade. Nessa luta, certamente a Lei Cortez vem em primeiro lugar. Em segundo, a autorregulação dos agentes do mercado. Eu tenho me exposto e me desgastado ao explicar para as editoras que elas não podem vender diretamente para o consumidor final por um preço diferente do que elas estabeleceram para os seus próprios livros.
Em resumo: o que precisamos no Brasil é de mais leitores, mais livros. Tem muita coisa a ser feita nesse sentido, mas tudo passa pelo estabelecimento de um mercado mais forte. Se daqui a alguns anos a cidade de Santos tiver tantas livrarias quanto já teve no passado, significa que fizemos a nossa parte. Não é fácil, mas temos que levantar todos os dias para isso.