O candidato Bolsonaro, ontem e hoje: como enfrentá-lo?

O jogo mudou. Em 2018, isolado e ausente na mídia, ele se passou por outsider e alavancou “nova” direita ao poder. Hoje, alcança capilaridade com o partido e conta com palanques estaduais, alianças, fundo partidário e a máquina pública

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Por Jairo Nicolau, na Piauí

Em 2018, uma palavra inglesa passou a ser amplamente utilizada para caracterizar Jair Bolsonaro: outsider. Mas a caracterização incomodou a muitos analistas. Tradicionalmente, o termo é empregado para figuras de fora do meio político (empresários, celebridades, esportistas, líderes religiosos ou da sociedade civil) que não participavam da vida partidária nem ocupavam postos no Executivo, e resolveram disputar uma eleição. Wilson Witzel e Romeu Zema são dois outsiders. Silvio Berlusconi e Donald Trump são outros dois.

Bolsonaro, obviamente, não se encaixa nessa designação. De 1988, quando foi eleito vereador pela primeira vez, até 2018 foram três décadas de atividade parlamentar, com sete mandatos seguidos na Câmara dos Deputados. Mas o que importam esses caprichos conceituais se ele foi interpretado pelos eleitores como “um de fora” do sistema político?

Na época da eleição passada, quando eu lembrava os eleitores bolsonaristas da longa carreira do aparente outsider, as respostas variavam, mas sempre davam um jeito de assinalar que Bolsonaro quebrava o padrão de comportamento da tradicional elite política do país. Sua atividade parlamentar medíocre e solitária virou símbolo de coragem e franqueza. Seu histórico de agressões verbais e machismo seriam símbolos da sinceridade que faltava aos outros políticos. E vale a pena lembrar que, apesar da presença constante em programas de tevê e nas redes sociais, Bolsonaro era desconhecido de grande parte do eleitorado. Segundo pesquisa do Datafolha publicada em 22 de agosto de 2018, cerca de 54% não conheciam o candidato Bolsonaro ou só tinham ouvido falar dele.

A campanha de Bolsonaro em 2018 foi diferente das outras que venceram as eleições presidenciais (Fernando Henrique em 1994 e 1998, Lula em 2002 e 2006 e Dilma Rousseff em 2010 e 2014) em três aspectos. O primeiro é o valor relativamente reduzido dos gastos de campanha. Na declaração oficial, Bolsonaro diz ter gastado apenas 4,4 milhões de reais nos dois turnos. Uma comparação: em 2014, a prestação oficial de Dilma Rousseff apontou um gasto de 350 milhões de reais. As despesas de campanha de Bolsonaro provavelmente estão subestimadas, já que houve algumas denúncias de gastos não contabilizados. Mesmo assim, seus números não se aproximam do valor gasto pelos antecessores.

O segundo aspecto é a quase ausência de propaganda no horário eleitoral no rádio e na tevê. Bolsonaro teve apenas oito segundos por dia em cada bloco. Para muitos, o horário conferido pelas redes de comunicação ao atentado que Bolsonaro sofreu em Juiz de Fora (MG) e sua posterior convalescência teriam servido como uma compensação à sua ausência do horário eleitoral. O argumento procede, mas não conheço um estudo que tenha mensurado quanto tempo os canais mais importantes da mídia dedicaram ao atentado e à sua recuperação.

Faltava ainda a Bolsonaro o apoio de lideranças estaduais, tão importantes para as vitórias de Fernando Henrique, Lula e Dilma. Fernando Collor de Mello apesar de concorrer por um partido irrelevante, contava com o apoio de líderes estaduais abrigados em diversas legendas. Vale notar que o partido de Bolsonaro não lançou candidatos a governador nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Witzel, Doria e Zema é que colaram sua campanha na de Bolsonaro, para se beneficiarem da onda eleitoral do final do primeiro turno.

Some-se a esses três fatores o uso eficiente da propaganda política via redes sociais, sobretudo o WhatsApp, e o discurso que substituiu os temas clássicos das campanhas presidenciais (economia e política social) por temas comportamentais e de combate à criminalidade. Acrescente-se a isso doses de um discurso antipetista (que desde 1989 não aparecia com essa intensidade) e o personagem do outsider está construído.

A poucos dias de uma nova eleição presidencial, por que relembrar tópicos já tão conhecidos e que distam quatro anos no tempo? A razão é simples: o Bolsonaro da campanha outsider de 2018 não existe mais. Em 2022, Bolsonaro vem “por dentro”, é um insider total, usando os mesmos recursos tão valorizados pela tradicional elite política brasileira. Que não se enganem os que ouvem seus discursos antidemocráticos e anticientíficos (a desconfiança na urna eletrônica que vai corromper a eleição, a campanha quixotesca contra o Supremo Tribunal Federal, a desconfiança da vacina) e se fixam na sua retórica agressiva: Bolsonaro é um outro ser em 2022. Uma figura típica a quem ele teria se oposto em 2018.

Bolsonaro conseguiu um feito adicional em 2018. O PSL, partido ao qual ele havia se filiado com seus seguidores apenas sete meses antes da eleição, foi o mais votado para a Câmara dos Deputados, com 12% dos votos. Elegeu quatro senadores e dezenas de deputados estaduais.

A aposta parecia óbvia. O PSL seria o destino de milhares de militantes mobilizados na campanha de 2018 e o partido se tornaria um ator fundamental nas eleições municipais de 2020. A direita, enfim, teria um partido de massa no Brasil. Não foi o que aconteceu. Após desentendimentos em série com dirigentes do PSL, Bolsonaro se desfiliou da legenda em dezembro de 2019, pouco mais de um ano depois da eleição.

A ideia inicial de Bolsonaro era organizar um partido próprio, que logo ganhou nome (Aliança Brasil), mas não saiu do papel. A coleta das assinaturas, exigência da legislação para se organizar um partido, foi um fiasco. Aliás, essa talvez tenha sido a mais malsucedida história de criação de um partido no Brasil.

Depois de quase dois anos sem partido, Bolsonaro filiou-se ao Partido Liberal (PL) em novembro de 2021. Ao contrário do PSL, que era um micropartido – havia elegido um único deputado federal em sucessivas eleições –, o PL tem alguma capilaridade nacional. Mas sua principal característica é o controle exercido por seu presidente, o ex-deputado Valdemar Costa Neto, que tem no currículo a façanha de ter renunciado duas vezes a um mandato de deputado federal. A primeira em 2005, quando era do PL, a segunda em 2013, depois de ser eleito pelo PR de São Paulo, ambas por seu envolvimento com o escândalo do mensalão. Costa Neto foi um dos artífices do apoio do PL à candidatura de Lula em 2002. O partido apoiaria o PT novamente em 2006, 2010 e 2014. Em 2018, participaria da grande aliança de partidos de direita que apoiaram Geraldo Alckmin para presidente.

A filiação de Bolsonaro a uma pequena legenda de direita não foi uma escolha aleatória.

Ela foi mais um capítulo de seu movimento de aproximação com os partidos que compõem o Centrão. Essa inflexão é a mais significativa mudança de Bolsonaro desde a eleição. O outsider de 2018, que fazia questão de marcar as suas diferenças em relação aos políticos do Centrão, muitos dos quais foram denunciados nos escândalos do mensalão e do petrolão, voltaria às suas raízes, a ponto de reconhecer numa entrevista de agosto de 2021: “Eu sempre fui do Centrão.” Agora, um ano depois, na entrevista que deu ao Jornal Nacional no dia 22 de agosto passado, desdisse o que tinha dito e alegou que, no passado, “não existia Centrão”. O fato é que, ao mesmo tempo em que Bolsonaro abraçava o Centrão (mas talvez não por isso), intelectuais de direita foram se afastando dele e ministros da ala ideológica saíram do governo.

Parlamentares brasileiros são proibidos de trocar de legenda ao longo do mandato, salvo em condições especiais. Mas a legislação permite que no período entre seis e sete meses da eleição, denominado “janela partidária”, deputados e senadores troquem de legenda sem serem punidos. Na janela de 2022, a legenda que mais cresceu foi o PL. Na posse em 2019, o partido tinha uma bancada de 33 deputados e depois do período de trocas chegou a 78. A maioria dos migrantes havia sido eleita pelo PSL em 2018.

O contraste entre as duas legendas pelas quais Bolsonaro disputa a Presidência chama a atenção. Em agosto de 2018, o PSL tinha nove  deputados federais  (Luciano Bivar e mais oito que migraram para a legenda). Em agosto de 2022, o PL é o maior partido da Câmara dos Deputados, com 78 representantes. É uma ironia que, depois do fiasco da organização da Aliança Brasil em 2020, Bolsonaro tentará se reeleger pelo partido com a maior bancada na Câmara.

Além do PL, dois outros partidos da base governista ampliaram a sua bancada durante a janela partidária. O PP saltou de 38 para 52 deputados e o Republicanos de 30 para 41. Os três partidos que fazem parte da coligação de apoio à reeleição de Bolsonaro têm 171 parlamentares, exatamente um terço da Câmara dos Deputados. A principal mudança do quadro partidário depois da janela de 2022 é a compactação da direita nessas três legendas bolsonaristas.

O três partidos de direita que apoiam a reeleição do presidente trazem uma outra mudança significativa em relação a 2018: os palanques estaduais. Em 2018 não houve uma preocupação de construir alianças com as forças estaduais para apoiar Bolsonaro. Ele foi candidato de si mesmo e de seus filhos, de uma pequena extração do baixo clero político, da nova direita surgida em anos anteriores no meio intelectual, empresarial e nas redes sociais. A elite política tradicional passou a apoiar Bolsonaro com entusiasmo, ao longo da campanha, à medida que sua vitória parecia inevitável. PP, PL e PR apoiaram Alckmin no primeiro turno.

Em 2022, Bolsonaro tem candidatos que o apoiam em todos os estados. Relatos da imprensa revelam que ele se envolveu nas conversas para a escolha dos candidatos em várias unidades da federação. O PL lançou nomes para governador em catorze estados; em todos os outros Bolsonaro está alinhado a algum candidato conservador, quatro deles filiados ao União Brasil. Em contraste com 2018, quando políticos correram atrás de Bolsonaro para se beneficiar da onda que varria o país, em 2022 observamos um candidato operando na tentativa de ter palanques estaduais para a sua campanha.

O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) foi usado pela primeira vez em 2018. O total de recursos aportado pelo Estado para as campanhas chegou a 1,7 bilhão e os candidatos a presidente gastaram, somados, 221 milhões (13% do total do fundo). Outra novidade daquela eleição foi o estabelecimento de um teto de gastos para cada cargo. Um candidato à Presidência podia gastar até 70 milhões no primeiro turno e 35 milhões no segundo. O teto não foi atingido por nenhum dos concorrentes.

Agora, o valor do FEFC atingiu astronômicos 4,9 bilhões de reais. O total de recursos ultrapassou em muito a inflação do período. O União Brasil é a legenda que mais receberá, 782,5 milhões, seguida pelo PT (503,4 milhões) e MDB (363, 2 milhões). O PL receberá 288,5 milhões. O teto de gastos também foi atualizado. Na disputa presidencial um candidato pode gastar no máximo 133,4 milhões (88,9 milhões no primeiro turno, 44,5 milhões no segundo).

Os partidos têm autonomia para distribuir os recursos entre os candidatos a diversos cargos, com a exigência de alocar pelo menos 30% para candidaturas de mulheres e negros. Ainda não sabemos quais serão os critérios de cada legenda, nem se eles mudarão ao longo do tempo. Sem contar que os candidatos podem ainda receber doações dos cidadãos. Numa estimativa em que Bolsonaro gaste, por exemplo, metade do teto (67 milhões), isso significará uma campanha cerca de quinze vezes mais cara do que a de 2018.

A poucos dias do começo da propaganda eleitoral, ouço o velho mantra: quando a propaganda no rádio e na tevê começar, as coisas serão diferentes. Mas, ao final das eleições de 2018, muitos analistas haviam decretado a morte dos velhos meios de comunicação eleitoral que imperam desde os anos 1980 no Brasil. Os canais prioritários das campanhas passariam a ser as redes sociais e os canais de difusão de imagens, o principal deles sendo o YouTube. A declinante audiência dos canais de tevê aberta, onde o horário político é veiculado, reforçava o argumento.

Não tenho ideia a respeito do papel que as redes sociais terão nessa campanha. Minha impressão é de que a vantagem comparativa que Bolsonaro teve em 2018 será menor, ainda que ele tenha um número maior de seguidores nas redes. Em primeiro lugar, porque os adversários se deram conta da importância das redes e vêm se preparando melhor para isso. Em segundo, porque as empresas têm estabelecido restrições que não existiam em 2018. O canal mais utilizado pelos bolsonaristas naquela eleição, o WhatsApp, reduziu o número máximo de componentes nos grupos e limitou o número de reenvio de mensagens.

Por outro lado, Bolsonaro não é mais o candidato dos oito segundos do horário eleitoral no primeiro turno de 2018. Ele terá 2 minutos e 40 segundos em cada um dos dois blocos diários de propaganda, enquanto Lula, com o maior tempo, disporá de 3 minutos e 39 segundos. Além disso, todos os candidatos terão as inserções diárias de 30 segundos que são transmitidas ao longo do dia.

E assim chegamos à dimensão mais fundamental: Bolsonaro tem a vantagem de estar disputando uma eleição no governo. No jargão político brasileiro, quem está no governo “pode usar a máquina” para beneficiar a si mesmo (se estiver tentando a reeleição) ou a seu candidato. Os benefícios de quem está no poder são óbvios. Penso em coisas banais como a possibilidade de se deslocar em campanha usando o sistema de transportes oficiais, ou o serviço de segurança do governo, enquanto quem está de fora precisa comprar passagens, ou pensar em esquemas próprios de segurança. Fernando Henrique, Dilma e Lula também se beneficiaram largamente nas suas campanhas à reeleição.

Mas quem utiliza a expressão “uso da máquina” não está falando dessas aparentes pequenas benesses, e sim de algo mais forte: funcionários (em geral com vínculo provisório) que se transformam em cabos eleitorais de tempo integral, recursos públicos que passam a ser usados de maneira discricionária para favorecer determinadas clientelas políticas, o segmento de comunicação que passa a trabalhar na propaganda política. A legislação tenta coibir as práticas mais acintosas de uso dos recursos públicos para favorecer candidatos. Mas é quase impossível controlar todos os artifícios que os chefes do Executivo têm para se beneficiar em uma campanha.

Somente depois das eleições teremos alguma noção do grau em que a máquina estatal foi mobilizada para favorecer Bolsonaro e seus aliados. Também não acredito que, nesse aspecto, ele esteja sozinho: todos os presidentes que tentaram a reeleição acabaram se beneficiando de sua posição ao disputar uma eleição sentados na cadeira presidencial. O fato é que esse é um diferencial fundamental em relação às eleições de 2018.

Uma passagem decisiva da carreira de Bolsonaro se deu quando ele resolveu deixar de ser apenas um deputado de representação dos interesses da corporação militar para incorporar pautas comportamentais à sua ação política. Essa primeira transmutação aconteceu ao longo do período de 2011 a 2014. Depois dela, o velho deputado corporativo se transformou, entre 2014 e 2018, em outsider. E venceu a eleição rompendo com modelos de sucesso eleitoral dos candidatos vitoriosos que o precederam.

Ao longo do seu governo, Bolsonaro vive a sua segunda transmutação: se aproxima do Centrão, filia-se a um partido chefiado por um político que foi condenado pelo escândalo do mensalão e prepara uma campanha eleitoral municiando-se de todos os recursos que a tradicional elite política ainda considera fundamentais para vencer uma eleição presidencial (dinheiro, tempo significativo no horário eleitoral e palanques estaduais).

O novo ser em que Bolsonaro se transformou é escondido pela manutenção da retórica antidemocrática (suspeição contra as urnas eletrônicas, afronta ao Judiciário, agressão a jornalistas e a veículos da mídia) e de atitudes próprias de comunicação com suas bases (visitas-relâmpago a bairros populares, motociatas, discurso religioso, uso intensivo de redes sociais).

Em 2018, a oposição não compreendeu a primeira transmutação de Bolsonaro. Não acreditou que o deputado de fundo de plenário com votação de nicho conseguiria vencer uma disputa presidencial. O que observo é que um segmento da esquerda não leva em conta a estrutura que Bolsonaro e seus apoiadores montaram para disputar em 2022. E se prepara para enfrentar um Bolsonaro que não existe mais.

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