Nos apps do governo, sua privacidade de bandeja
Sem consulta ou diálogo, Amazon, Google, Microsoft, TikTok e Ministério da Cidadania discutem adesão a programas sociais via celular. Informações valiosas privadas incluiriam polêmica técnica de reconhecimento facial
Publicado 15/02/2021 às 14:42 - Atualizado 15/02/2021 às 15:03
Por Marina Pita e Leonardo Sakamoto, na Repórter Brasil
O Ministério da Cidadania se reuniu a portas fechadas, sem qualquer
tipo de parceria oficial, comunicado ou chamado público, com algumas das
maiores empresas de tecnologia do mundo para discutir um sistema para
auto inscrição de cidadãos no Cadastro Único de Programas Sociais
(CadÚnico).
Especialistas criticam a falta de transparência no processo por parte do governo e riscos para os dados pessoais. Amazon, Google, Microsoft e TikTok estavam entre as convidadas
O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) estuda aproveitar a experiência do autocadastramento via aplicativo para o auxílio emergencial, que chegou a 68 milhões de pessoas, para alterar a forma de entrada a outros benefícios sociais, como o Bolsa Família. A inscrição via app foi alvo de recorrentes denúncias de fraudes
A proposta de um aplicativo prevê reconhecimento facial e análise de geolocalização, possíveis cruzamentos com dados pessoais de empresas de redes sociais, além de uma possível interação com plataformas de emprego como LinkedIn e Catho.
Pela Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2019), para que o
governo dê um passo como este, de usar o CadÚnico para outras
finalidades e em parceria com empresas públicas, seria preciso que fosse
apresentada uma norma, ainda que a lei preveja o uso de dados pessoais
para fins de política pública como um fim legítimo.
E, no caso de compartilhamento de informações com agentes privados,
estes devem estar previstos em contrato disponível para os cidadãos, de
forma a assegurar o princípio da transparência.
O Ministério da Cidadania, questionado pela reportagem sobre o
processo de escolha das empresas para esse diálogo, entre outras
questões, afirmou que não iria se pronunciar enquanto não houver uma
medida concreta a ser anunciada.
O CadÚnico é usado por mais de 20 programas do governo federal, como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a tarifa social de energia.
Especialistas avaliam que caso indica falta de transparência
Para a pesquisadora em proteção de dados, direito do consumidor e dos
cidadãos, Laura Schertel, essa movimentação do governo deixa perguntas
importantes a serem respondidas.
“Não há informações suficientes, por enquanto, para avaliar a
legalidade, mas este processo precisará passar por dois crivos, da
perspectiva da LGPD: um formal, a análise da norma e contrato, e outro
material, verificação de como esses dados estão sendo usados”, explica
Schertel, professora da Universidade de Brasília (UnB) e diretora do
centro de de direito, internet e sociedade do Instituto Brasiliense de
Direito Público (IDP).
Para o pesquisador em proteção de dados e tecnologia do Data Privacy
Brasil, Rafael Zanatta, o caso tem um problema de partida, de
documentação e transparência, mas traz outras preocupações quanto à
mudança na finalidade da coleta e tratamento de dados pessoais e quanto à
“plataformização” da política pública.
“Pelo que tivemos acesso, este será um aplicativo de empregabilidade,
recolocação e oportunidades de emprego e os espelhamentos necessários
para isso podem gerar muitos riscos.” Para ele, utilizar os dados de
cadastro das famílias em um programa de transferência de renda e mesclar
isso com o interesse de agentes econômicos que fazem filtragem e
seleção de emprego, com plataformas de tecnologia para automação, é um
atalho para que empresas tenham acesso a informações valiosas.
O Google informou à reportagem que o Ministério da Cidadania convidou
o Google Cloud e outras empresas de tecnologia para “apresentar
soluções técnicas com o objetivo de otimizar a gestão de projetos
sociais sob o escopo do ministério”.
E que a reunião foi apenas de apresentação das soluções, mas não existe qualquer contrato entre a empresa e o ministério para parceria ou execução de serviços.
A Amazon e o TikTok afirmaram que não têm contrato assinado com o ministério para consultoria ou execução de serviços. Já a Microsoft informou que o contrato que a empresa tem com o ministério “não engloba esta ação”, mas afirma que está comprometida em “colaborar com a inovação tecnológica do Ministério da Cidadania e discutir sobre novas soluções”.
Proposta vem a público após vazamento de dados de 220 milhões
As preocupações quanto a esse movimento do governo Bolsonaro também envolvem a segurança dos dados, especialmente após descoberto que informações de mais de 220 milhões de brasileiros estão disponíveis para compras na deep web.
“Ainda estamos avaliando um mega vazamento cuja fonte ou as fontes ainda são desconhecidas. Antes houve o vazamento de dados pessoais da Previdência Pública. Isso mostra a fragilidade da segurança digital nos órgãos públicos, mas também nas empresas.
Acende alerta no país para que todos que coletam e tratam dados
desenvolvam mecanismos de segurança mais sofisticados para impedir
acesso não autorizado e exposições como essas voltem a acontecer”,
avalia Bia Barbosa, pesquisadora da organização não governamental
Intervozes e uma das representantes da sociedade civil no Comitê Gestor
da Internet no Brasil.
Para ela, o fato de bancos de dados preverem a guarda de dado
biométrico (o rosto) é ainda mais preocupante da perspectiva da
segurança. Uma vez vazado um dado biométrico, não é possível alterá-los,
como se faz com um número de identificação, e-mail ou senhas.
As conversas a portas fechadas levaram os coordenadores estaduais do
Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) e Programa Bolsa
Família de todos os 26 estados do país a manifestarem choque ante ao
processo em andamento, sem consulta ou diálogo e que podem expor
famílias e dados pessoais de mais de 77,46 milhões de pessoas – segundo
dados do governo.
Ao ser questionada por coordenadores estaduais, representantes do ministério tentaram justificar que a “inovação tecnológica” era algo positivo e que não iria tirar o papel de atendimento feito por pessoas. A reportagem conversou com pessoas que estiveram na reunião e que afirmaram que milhares de profissionais envolvidos no Bolsa Família estão preocupados.
Risco de uso inapropriado dos dados de reconhecimento facial
A preocupação dos gestores da área de assistência social é certamente relevante. Considerando que são cadastradas famílias em situação de vulnerabilidade socioeconômica, o preenchimento de informações em um aplicativo não será trivial.
Em muitos casos é de se questionar se essas pessoas têm smartphone, se possuem memória para instalar o aplicativo, se têm familiaridade com a tecnologia, avalia Paulo Victor Melo, pesquisador sobre Internet e desigualdades e integrante do Intervozes
Para receber o auxílio emergencial, muitos brasileiros pediram ajuda
de vizinhos, parentes ou mesmo de ex-patrões. No caso do CadÚnico, isso
poderia expor o nível de vulnerabilidade a que estão sujeitos e até
fazer com que deixem de compartilhar determinadas situações com a pessoa
que fará o preenchimento – o que prejudicaria a política pública.
Ainda, a previsão, registrada em apresentação acerca do aplicativo ao
qual esta reportagem teve acesso, de uso do reconhecimento facial para
validar o usuário pode ser também mais um empecilho ao acesso às
políticas sociais.
O sistema, do qual ainda se tem poucas informações, poderia não
reconhecer algumas faces por problemas na câmera e na foto. Vale lembrar
que os sistemas de reconhecimento facial também vêm sendo criticados
globalmente após uma série de pesquisadoras e pesquisadores denunciarem o “racismo algorítmico”, comprovado por uma série de pesquisas.
Há casos em que o reconhecimento facial leva, de forma equivocada, a apontar que usuários do metrô são fugitivos da Justiça.
Para se ter uma ideia, uma pesquisa do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, do governo dos Estados Unidos, apontou que o índice de erro na identificação de pessoas negras é maior em 200 sistemas testados – a imensa maioria dos sistemas disponíveis no mercado. Ou seja, o padrão é a discriminação de raça, ainda mais presente quando a face é de uma mulher negra.