Nobel da Paz afaga a extrema-direita
Em mais um espelho da crise hegemônica, laurear María Corina Machado, golpista venezuelana, diz menos sobre paz e mais a ordem que o Ocidente deseja restaurar. Prêmio celebra as trincheiras, e não o consenso e o diálogo para evitar novas guerras
Publicado 13/10/2025 às 16:56 - Atualizado 13/10/2025 às 16:57

Por Maria Luiza Falcão Silva, no GGN
Desde 1901, o Prêmio Nobel da Paz é apresentado como o reconhecimento máximo àqueles que contribuíram “para a fraternidade entre as nações, a redução dos exércitos e a promoção dos congressos de paz”. Foi assim que nasceram mitos — de Martin Luther King a Nelson Mandela — e polêmicas, como Henry Kissinger em meio à Guerra do Vietnã ou Barack Obama antes mesmo de governar.
Não é a primeira vez que uma mulher conquista o Nobel da Paz — antes dela, nomes como Madre Teresa de Calcutá (1979), Shirin Ebadi (2003) e Malala Yousafzai (2014) receberam o prêmio por ações humanitárias, educacionais e pela defesa dos direitos humanos.
Mas o caso de María Corina é singular: enquanto aquelas laureadas representavam causas universais — a compaixão, a justiça e o acesso à educação —, a venezuelana chega ao panteão do Nobel como símbolo de um enfrentamento político e ideológico, não de um consenso moral.
Entre o ideal e o cálculo político, o Nobel da Paz sempre oscilou: ora símbolo da esperança universal, ora espelho das contradições do Ocidente.
Em 2025, a escolha de María Corina Machado renova esse dilema. Líder liberal da oposição venezuelana, admirada por setores conservadores e rejeitada por parte da esquerda latino-americana, ela recebeu o prêmio indicada por Marco Rubio, senador republicano da Flórida, e o dedicou a Donald Trump — o mesmo presidente que impôs as sanções mais duras contra o povo venezuelano em toda a história recente.
É o primeiro Nobel da Paz que parece celebrar não o diálogo, mas a trincheira. Difícil imaginar um enredo mais emblemático para questionar o que, afinal, significa “paz” na era da polarização global.
Entre o prêmio e a proibição
Machado, que há anos enfrenta perseguição política e inabilitação eleitoral, está impedida de concorrer à presidência da Venezuela por decisão da Controladoria-Geral, confirmada pela Corte Suprema.
O governo de Nicolás Maduro a acusa de corrupção e “traição à pátria”, enquanto organismos internacionais e boa parte da comunidade ocidental denunciam o processo como politicamente motivado. Ao exaltá-la, o Comitê de Oslo parece menos preocupado em resolver o impasse venezuelano do que em projetar um símbolo conveniente à narrativa da direita hemisférica: a cruzada moral contra o chavismo, transformada em narrativa heroica pela direita continental e consagrada agora como símbolo de virtude democrática.
A nova Internacional da direita
Há, contudo, um aspecto ainda mais revelador. María Corina Machado é signatária da chamada Carta de Madrid, documento lançado pelo partido espanhol Vox, que defende a criação de uma “aliança internacional contra o comunismo” e tem entre seus apoiadores Marine Le Pen, Javier Milei, Eduardo Bolsonaro, José Antonio Kast e outros expoentes da extrema direita global. Na prática, trata-se da tentativa de organizar uma Nova Internacional Conservadora, que une o discurso anticomunista do século XX ao populismo reacionário do século XXI.
Premiar uma de suas signatárias com o Nobel da Paz é um gesto político. É legitimar um movimento que prega a “defesa da civilização ocidental” contra inimigos internos e externos — uma retórica que historicamente serviu para justificar guerras, exclusões e intolerância.
Paz ou alinhamento?
Nada contra reconhecer a coragem individual de quem enfrenta um regime autoritário e ainda mais sendo uma mulher. A Venezuela vive uma tragédia democrática há mais de uma década, e isso não está em debate. Mas a pergunta que este Nobel suscita é outra: a paz de quem — e a serviço de quê?
A escolha de María Corina não celebra a reconciliação, e sim o alinhamento.
A cerimônia em Oslo foi menos sobre diálogo e mais sobre afirmação ideológica: uma mensagem clara de que a paz só é digna de aplauso quando se encaixa nos parâmetros geopolíticos do Ocidente.
O prêmio soou como uma extensão diplomática da Flórida, onde se concentram exilados antichavistas, lobistas e aspirantes republicanos de olho no voto latino.
O Nobel e seus fantasmas
O Nobel da Paz já foi, em outras épocas, um espelho das ambiguidades de seu tempo. Em 1973, o prêmio a Henry Kissinger, arquiteto de guerras no Vietnã e no Chile, escandalizou o mundo. Em 2009, o prêmio antecipado a Barack Obama soou como aposta política — e foi rapidamente desmentido por drones e Guantánamo. Agora, em 2025, a história se repete: uma escolha que diz menos sobre a paz e mais sobre a ordem que o Ocidente deseja restaurar.
Ao consagrar uma figura da direita venezuelana que agradece a Donald Trump e é signatária da Carta de Madrid, o Nobel abandona qualquer pretensão de neutralidade moral. Transforma-se em instrumento simbólico de contenção ideológica — um selo de pureza concedido a quem se alinha ao projeto político certo, enquanto a palavra “paz” vai se esvaziando de sentido.
O direito de resistir, o dever de pensar
É possível — e necessário — denunciar a deriva autoritária de Maduro sem transformar opositores em santos de conveniência.
María Corina Machado tem, sim, o direito de resistir.
Mas o mundo tem o dever de desconfiar de um prêmio que converte a luta democrática em marketing político, e o sofrimento de um povo em vitrine ideológica.
Ao invés de unir, este Nobel divide. Em vez de pacificar, alimenta o ressentimento. E talvez esta seja a mais amarga ironia de 2025: a paz virou bandeira de guerra.
Maria Luiza Falcão Silva é mestre em Economia (University of Wisconsin–Madison), PhD (Heriot-Watt University), Professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), membro da ABED e do Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC/NEASIA).Mariana Nascimento – Analista Ambiental licenciada do Ministério do Meio Ambiente e faz mestrado em Assuntos Internacionais, com ênfase em Mudanças Climáticas e Energia, na Universidade de Nova Iorque.
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