Na crise, em silêncio, São Paulo “passa o ponto”

Na maior cidade do país, retrato de um desastre oculto: metade dos bares e restaurantes fechou desde a pandemia, sem o auxílio prometido pelo governo federal. Apenas 12,7% das empresas no Brasil tiveram acesso ao crédito

A empresária Ana Massochi fechou no início da pandemia um restaurante na zona central de São Paulo e luta para manter em pé um local de comida argentina. (Foto:Camila Svenson)
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Por Heloísa Mendonça, no El País Brasil

Com o avanço da pandemia do coronavírus e das regras de isolamento, não foram poucos os negócios que sucumbiram à crise e tiveram que fechar as portas definitivamente. Em São Paulo, pouco a pouco, as placas de “aluga-se” se multiplicam pela paisagem da cidade, revelando as consequências geradas pela paralisia da economia. No mundo virtual, pipocam nas redes sociais publicações de comunicados sobre o fechamento de locais que lutaram para sobreviver e se adaptar ao “novo normal” imposto pela covid-19, mas que não conseguiram seguir.

O setor gastronômico foi um dos mais fortemente impactados. Dos 23.000 bares e restaurantes da capital paulista, mais da metade ―12.000― fechou, segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). “Já logo no início da quarentena, percebi que o movimento no restaurante seria nulo e que não aguentaríamos sobreviver sem faturar. Já vivíamos no limite. Sem escolha, tivemos que encerrar as atividades”, conta Ana Massochi, proprietária do La Frontera, que funcionava desde 2006, nos arredores do cemitério da Consolação, na região central da capital. Massochi chegou a tentar negociar o aluguel com o dono do imóvel para aliviar um pouco os gastos, mas não teve sucesso. Desde então, uma faixa de aluga-se continua pendurada no local.

Com o encerramento do restaurante no mês de abril, 22 funcionários foram demitidos e engrossaram a fila do desemprego no país durante a pandemia. Até o fim de maio, 7,8 milhões de empregos já tinham sido destruídos no Brasil, segundo o IBGE.

Massochi conseguiu manter apenas dois funcionários, que foram transferidos para seu outro restaurante Martín Fierro, de comida argentina, que funciona há quatro décadas. “Estamos tentando sobreviver, manter a chama acesa no meio da pandemia. Nos adaptamos primeiro operando só com o serviço de delivery e agora reabrimos sob os novos protocolos da reabertura, com apenas 40% da capacidade. Mas não conseguimos cobrir nem metade dos gastos”, lamenta.

Há meses ela tenta um empréstimo no Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe) anunciado pelo Governo.”No banco, dizem que estamos na fila, que falta um papel, estamos numa batalha para que o Governo libere esse crédito para que a gente não feche. Se não conseguir, farei novos cortes no restaurante”, explica.

Fila crescente atrás de crédito

A dificuldade da empresária em conseguir uma linha de crédito não é exceção entre os que tentam manter as empresas em pé em meio à turbulência econômica. No Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), os atendimentos às pequenas empresas triplicaram durante os meses da pandemia. Na lista de pedidos, reina no topo os questionamentos sobre por que o crédito prometido pelo Governo não chega. “O Governo anuncia muito valores, mas não explica como as pessoas podem conseguir. Estamos ajudando as pessoas as não desistir. As pessoas estão se afogando, não podem pedir uma lista de requisitos tão complicados, precisam jogar uma boia para socorrê-las”, diz diretor-superintendente do Sebrae-SP.

Em pouco menos de um mês, o Pronampe praticamente emprestou toda a garantia de 15,9 bilhões de reais prevista inicialmente. O recurso permitiu empréstimos a cerca de 218 mil empresas, segundo dados do Ministério da Economia. A própria pasta admitiu que o valor não foi suficiente para atender todos os pequenos negócios que precisam de crédito para sobreviver à pandemia. Desde o início da pandemia, mais de 700 mil empresas fecharam definitivamente, 99,8% delas eram de pequeno porte, segundo o IBGE. A Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas revelou ainda que apenas 12,7% das empresas tiveram acesso ao crédito emergencial do Governo destinado ao pagamento de salários.

O Pronampe atende microempresas com faturamento anual de até 360.000 reais e pequenas com faturamento até 4,8 milhões de reais. O dinheiro pode ser usado para pagar salário ou para o outros custos operacionais. O prazo é de 36 meses, com oito meses de carência e os juros equivalentes à taxa básica, Selic, mais 1,25% ao ano. A União cobre até 85% de eventuais calotes (por meio do Fundo Garantidor de Operações – FGO) e o risco sobre os 15% restantes é do banco.

Com a fila de empresários querendo empréstimos crescendo, o Congresso liberou no dia 30 de julho mais 12 bilhões para o programa. A expectativa é de que a partir desta segunda-feira (17) o dinheiro já esteja à disposição dos bancos e que o crédito novamente “acabe bem rápido”, segundo Antonia Tallarida, subsecretária de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas do Ministério da Economia. Na primeira rodada de empréstimos, dez instituições financeiras operaram o Pronampe. Dos grandes bancos, porém, só Caixa, Banco do Brasil e Itaú aderiram ao programa. Na segunda rodada, Bradesco e Santander também devem participar.

Os recursos disponíveis pelo Governo tanto no Pronampe como outros programas, no entanto, ainda serão pouco, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas, que estima que faltarão 202 bilhões neste ano para atender a demanda de crédito acelerada pelos impactos da pandemia.

“Os recursos anunciados pelo Pronampe não chegam nem a 20% da demanda. E os bancos privados não vão acelerar o crédito nesse momento se não houver uma garantia por parte do Governo. Pelo contrário, eles vão colocar o pé no freio. Para que os canais de crédito continuem abertos para essas empresas de pequeno porte, é necessária a atuação do Governo, não há outra forma”, explica Lauro Gonzales, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV e um dos autores do estudo.

Na avaliação de Gonzales, dentro do grupo das empresas de pequeno porte, as menores têm mais risco de morrerem durante a pandemia já que tem ainda mais dificuldade de acessar o crédito. O pesquisador estima ainda que dada a incerteza da duração da pandemia, neste segundo semestre pode haver um aumento de quebra das empresas, que já não conseguirão “segurar as pontas por tanto tempo”. “Há duas ferramentas de combate à travessia da crise, crédito e o auxílio emergencial. Serão o futuro dessas políticas que darão o contorno do caminho da economia. Pelo lado do crédito, há uma insuficiência, que nos próximos meses pode gerar uma quebradeira maior da empresas. Ainda mais em um cenário de menor consumo, com o fim do auxílio emergencial”, completa.

Rafael Augusto, de 35 anos, morador da comunidade do Jardim Colombo, no complexo de Paraisópolis, na zona Sul de São Paulo, foi mais um dos milhares de pequenos empresários que tiveram que jogar a tolha diante da crise. Ele avaliou que nem um pedido de empréstimo poderia salvar seu negócio, que era sua única fonte de renda. Augusto e um sócio eram donos de um estacionamento ao lado do consulado dos Estados Unidos na capital paulista. Mas, desde o início da pandemia e com a suspensão de entrevistas para pedidos de visto, os clientes desapareceram. “O aluguel do local era muito caro, sem dinheiro entrando não tinha como seguir pagando. Como não sabemos quando as pessoas vão poder voltar a viajar para os EUA seria muito arriscado pedir um crédito e me endividar, criando um problema ainda maior”. Agora ele e a mulher vivem do salário dela, que trabalha como agente comunitária na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Colombo. Enquanto não consegue um novo posto de trabalho, Rafael está apostando em cursos para aprimorar seus conhecimentos de administrador de empresas. “Por enquanto a gente vai apertando o orçamento e dando um jeito. Às vezes a gente precisa perder, para depois ganhar, não é assim?”, afirma esperançoso do mercado de trabalho começar a melhorar.

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