Morin: Caminhos para a renovação das solidariedades

A partir das eleições francesas, onde ultradireita saiu fortalecida, pensador provoca: por que há uma atração niilista pelo abismo? Como a hegemonia do lucro tornou-se chaga civilizatória? Seria hora de apostar na esquerda dos espíritos?

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Por Edgar Morin, no Le Monde, publicado pelo IHU (tradução do Cepat)

Este artigo foi escrito em 21/4, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais francesas. Com 58,6% dos votos, Emmanuel Macron foi reeleito, mas a ultradireita de Marine Le Pen saiu fortalecida, com 41,4%. Em junho, eleições legislativas no país promete também ser acirradas: pesquisa mostra que 61% dos eleitores franceses preferem maioria de parlamentares de oposição a Macron. Um terreno aberto à ultradireita, mas também à esquerda de Jean-Luc Mélenchon.

Que coincidência terrível! Ocorrem simultaneamente uma eleição presidencial, onde está em jogo o destino da França humanista e republicana, e uma guerra cada vez mais sangrenta na Ucrânia, causa de enormes convulsões geopolíticas e econômicas com o risco de um conflito globalizado no qual a Europa naufragaria.

Duas ameaças estão ligadas: a de um retrocesso na França que levaria a um Estado autoritário e a uma sociedade de submissão, e a regressão em massa do mundo à barbárie.

Bastava que…

A tragédia é que na França, como no mundo, a previsão e a lucidez poderiam ter modificado o curso dos acontecimentos. Na França, bastava que Fabien Roussel, Yannick Jadot e Anne Hidalgo tivessem renunciado em favor de Jean-Luc Mélenchon, e Marine le Pen estaria fora do segundo turno.

A gravidade do problema francês é que de crises em crises, de ansiedades em ansiedades, fortalecem-se os fechamentos identitários, o suprematismo racista, a nomeação dos imigrantes, dos muçulmanos ou novamente dos judeus como bodes expiatórios. O nacionalismo cego impõe-se à realidade histórica integradora una e diversa da França real.

Em outras palavras, devemos temer a vitória desta segunda França reacionária que só conseguiu se impor na história da Terceira República graças ao desastre nacional de 1940. Hoje, paradoxalmente, sem nenhuma ocupação estrangeira, essa França reacionária acredita que está sofrendo uma ocupação mítica (“a grande substituição”).

Os franceses leais ao humanismo republicano temem, com razão, Marine Le Pen, cujo sorriso amável acreditam ser uma fachada e cujo programa é apenas suavizado na superfície.

Uma atração niilista pelo abismo

Suas propostas populistas, e aqui a palavra é justa, encontram eco nas aspirações e temores dos meios populares para seu cotidiano. O presente parece apagar o passado, especialmente para as gerações que não conheceram o extremismo de Jean-Marie Le Pen. Há até uma curiosidade entre muitos despolitizados: “Vamos ver o que ela vai fazer”. Há inclusive em alguns uma atração niilista pelo abismo.

Lembremos que o que ameaça a França é o retrocesso histórico que está invadindo o mundo e a Europa: crise das democracias, hegemonia do lucro, regimes neoautoritários.

A França reacionária pode chegar ao poder pela via legal e monopolizá-lo imediatamente. Emmanuel Macron não pode ter certeza de vencer porque precisa superar várias desvantagens. Durante seu mandato de cinco anos, o campeão da renovação tornou-se o mantenedor da ordem neoliberal estabelecida.

Seu “custe o que custar” durante a pandemia rompeu por um tempo com sua herança econômica e financeira, mas o caso das consultorias privadas foi o símbolo de uma política de privatização dos serviços públicos. Ele sofre a ira de todos os estigmatizados como antivacinas. Ele está mais uma vez sofrendo o descrédito da esquerda de ser visto como o presidente dos ricos. Ele sofre o retorno da polêmica sobre a reforma previdenciária quando poderiam ter sido moduladas de acordo com a dureza do trabalho e sujeitas ao exame de saúde após certa idade.

Um impulso regenerador

Por fim, o que pesa cada vez mais na candidatura de Macron é a volta da inflação que traz à tona as preocupações populares com o poder de compra. Este aumento dos preços esconde outros problemas fundamentais, alguns dos quais, aliás, a ele ligados (abastecimento de trigo, gás, metais raros) que devem ser resolvidos.

Dito isso, devemos creditar a Emmanuel Macron seus esforços meritórios para manter o diálogo com o presidente russo Vladimir Putin e procurar evitar uma escalada que leve a uma generalização da guerra com consequências incalculáveis. Não subestimemos a importância da guerra russa na Ucrânia para as nossas eleições. O presidente deve continuar a fazer todo o possível para travar a trágica escalada que prossegue cada vez mais perigosamente.

Certamente, o presidente candidato beneficia-se do contributo de personalidades da direita e da esquerda, mas não se sabe se mais “se complementam” do que “se anulam”. Ser um baluarte e bloquear um adversário demonizado por uma parte crescente da opinião pública é suficiente para vencer? De qualquer forma, acho que é insuficiente para o renascimento de uma França humanista. Emmanuel Macron precisa não tanto recuperar o impulso inovador perdido, mas encontrar um novo impulso regenerador.

Sua juventude, sua inteligência, seu senso das complexidades tornam-no capaz, como ele mesmo disse, de se questionar e se reinventar. Ele pode, portanto, mudar de via e tornar-se um promotor do verdadeiro New Deal, que é essencial na França, uma política de segurança pública. Ele é capaz de um novo pensamento e orientação política.

Renovação das solidariedades

A nova via requer a integração da ecologia na atividade econômica e social civilizacional. A necessidade ecológica deve produzir fontes de energia limpa, deve despoluir nossas cidades e nosso campo, desenvolver a agricultura agrícola e agroecológica e reduzir a agricultura industrial que polui e esteriliza os solos, reformar o consumo para alimentos saudáveis e produtos de verdadeira utilidade, bem como de qualidade estética e cultural.

Devemos descartar a alternativa crescimento/decrescimento para um crescimento daquilo que é essencial e indispensável, e o decrescimento daquilo que é insalubre e fútil. Essa nova economia verde contribuiria para uma vida melhor.

A nova via exige também o declínio da hegemonia do lucro, a desburocratização do Estado e a renovação da solidariedade. A França não está tanto em declínio, mas se tornou uma potência média. Mas nossa nação média tem meios que ultrapassam seus limites materiais. Ela é capaz de se fazer ouvir no mundo, como havia mostrado o general de Gaulle.

É importante que a França recupere seu orgulho. Sua grandeza militar durou pouco tempo; sua grandeza histórica é ser a pátria do humanismo, das ideias universais, de Montaigne a Camus, da Declaração dos Direitos Humanos de 1789 e da abolição dos privilégios. Seu novo orgulho seria oferecer ao mundo a nova via, que não só permitiria resistir à regressão generalizada que assola o planeta, mas vislumbrar finalmente o progresso humano sobre as barbáries.

Ir além da direita e esquerda

A segurança pública, como foi o caso na resistência à Ocupação, deve hoje transcender a direita e a esquerda sem dissolvê-las. Porque se a esquerda partidária está morta, a esquerda dos espíritos está viva.

Todas as motivações para se abster de votar, bem como para eliminar Macron, são hoje pró-Le Pen. Raiva, fúria, indignação não devem obscurecer o pensamento lúcido e a estratégia eficaz.

Às vezes pode ser certo abster-se, mas não quando é necessário fazer uma escolha contra um desastre histórico que nos traria uma Vichy sem invasão.

Vamos votar em um mundo em convulsão, com risco de guerra, probabilidade de crises, de penúrias e de barbáries. O piloto ao leme terá que estar à altura da ocasião. Estejamos conscientes do risco histórico para a França. Sejamos atores de uma oportunidade histórica para a França.

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