Mercado de carbono beneficiará os povos tradicionais?
Aprovada em dezembro, lei prevê porcentagem mínima para compensação de carbono em terras indígenas. Mas ruralistas ficam de fora de obrigações socioambientais. Projetos pioneiros já violaram direitos e participação dos povos – e nada garante maior fiscalização
Publicado 06/02/2025 às 18:31
Por Lorena Tabosa, em O Joio e o Trigo
A convocação de Darysa Yanomami ecoa clara e forte: “Quero que vocês, brancos, escutem minhas palavras e defendam nossa floresta”. Uma das autoras do livro Diários Yanomami: Testemunhos da destruição da floresta, Darysa fez o pedido durante o lançamento da obra, em julho do ano passado.
Maior floresta tropical do planeta, a Amazônia é muito procurada por desenvolvedores de projetos de carbono. Não à toa. Eles buscam se instalar no território justamente por causa das árvores, que têm alto potencial de armazenamento de carbono. Mas, assim como o Brasil não era “terra virgem” quando os europeus desembarcaram na costa, o bioma amazônico é lar de muitas comunidades, que somam mais de 28 milhões de habitantes e que nem sempre têm seus direitos e modos de vida respeitados diante da corrida pelo “novo ouro”, o carbono.
Em dezembro de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). O mercado regulado de carbono estabelece regras de compensação para os setores que mais emitem gases de efeito estufa (GEE) e vincula a necessidade de cumprimento das salvaguardas socioambientais, mas deixou o agronegócio de fora. Sozinho, o setor é responsável por 74% das emissões, de acordo com pesquisa realizada pela plataforma Sistema de Estimativa de Emissão de Gases Estufa (SEEG) e divulgada pelo Observatório do Clima em novembro. Esse percentual engloba as emissões de metano pelos animais e as mudanças de uso da terra.
“Como o setor agropecuário foi excluído das obrigações que a lei instituiu, principalmente em relação à limitação das emissões, seguirá agindo como atualmente, o que gera pressão em alguns territórios tradicionais em relação a desmatamento e grilagem, por exemplo, afetando diretamente o dia a dia das comunidades”, afirma Ciro Brito, analista sênior de Políticas do Clima no Instituto Socioambiental (ISA).
Os modos de vida das comunidades tradicionais integram o conceito das salvaguardas socioambientais. Elas são ações que se propõem a monitorar os riscos e evitar o impacto negativo de investimentos públicos ou privados aos ecossistemas e às comunidades locais, povos indígenas e populações tradicionais. As partes interessadas, em particular povos indígenas e comunidades locais, devem ter participação plena e efetiva na elaboração de projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+) em seus territórios.
As salvaguardas foram propostas durante a COP16 de 2010, em Cancún. Desde então, os desenvolvedores de projeto de carbono precisam identificar e abordar potenciais impactos ambientais e sociais negativos como parte de uma avaliação de risco detalhada antes de iniciar o projeto. O problema é que, na prática, isso nem sempre acontece.
Há diversos casos de violações das salvaguardas socioambientais em projetos de carbono. O Joio já publicou relatos nas reportagens da série Faroeste Carbono e em outras, como a denúncia de um projeto em um território quilombola em Abaetetuba, no Pará, em que a empresa Amazon Carbon não consultou as comunidades antes de iniciar o projeto, tendo seguido em frente sem o aval de boa parte das famílias.
O ponto de partida para a garantia das salvaguardas é a consulta livre e previamente informada das comunidades, prevista pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). A nova lei estabelece que essa consulta precisa ser feita nos termos do plano de consulta local, quando houver, e que a comunidade não pode arcar com os custos desse processo.
O que se vê em muitos projetos hoje é a supressão dessa etapa por parte dos desenvolvedores, em geral sob a alegação de que não podem arcar com esse custo. Agora, haverá obrigatoriedade de realizar e arcar com as consultas. De acordo com a lei, o processo terá a participação e a supervisão do Ministério dos Povos Indígenas, da Funai e das câmaras específicas do Ministério Público Federal (MPF).
“O Ministério Público vai precisar ser muito sábio e contar com a ajuda de profissionais do setor para compor essa metodologia. Porque existem metodologias que podem ser uma casca de banana na construção dos protocolos comunitários de consulta prévia e informada”, defende Carlos Ramos, pesquisador do Instituto Amazônico de Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará (UFPA). O receio é de que o desenho do processo não seja feito totalmente pelas comunidades, por limitação de custos por parte do desenvolvedor, por exemplo, o que deixaria brechas para interferências pelas partes financiadoras.
Há entidades que afirmam que não houve participação das comunidades na elaboração da lei, especialmente considerando que os povos indígenas e comunidades tradicionais são grupos muito diversos e heterogêneos. Isso faria com que o processo de idas e vindas do texto no Congresso Nacional não tivesse considerado a premissa da consulta às comunidades, como as salvaguardas do próprio texto da lei prevêem.
“Eles podem opinar de diferentes modos e em diferentes posicionamentos sobre o mercado regulado de carbono. O que é importante destacar é que não houve uma participação devida desses povos e comunidades no processo de elaboração e aprovação da lei. Uma lei cuja aplicação praticamente depende de territórios conservados, ou seja, territórios tradicionalmente ocupados”, pontua Pedro Martins, educador da organização FASE Amazônia.
Como fica a distribuição de recursos e o pagamento às comunidades?
Com a regulação, os grandes emissores, fora o agro, vão precisar compensar suas emissões por meio de créditos de carbono gerados em projetos próprios ou pela compra de créditos de outros projetos, como os que já acontecem na Amazônia, sejam públicos ou privados. Essas iniciativas podem ser programas de REDD+ e também de restauração, como a implementação de sistemas agroflorestais (SAF).
Os créditos de carbono serão reconhecidos como Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs), que indicam a quantidade de carbono removido da atmosfera. Cada certificado equivale a 1 tonelada de carbono equivalente (tCO2e). O CRVE é, portanto, a moeda do mercado regulado de carbono.
O texto prevê que no mínimo 5% dos recursos do SBCE deverá ser destinado a povos indígenas e comunidades tradicionais, mas ainda não foi definido como isso vai funcionar. Esses recursos virão do pagamento de eventuais multas aplicadas a empresas que descumprirem a lei e de convênios celebrados com entidades e empresas públicas ou privadas. “A regulamentação tratará sobre como essa porcentagem será destinada, mas há evidências de que seja na linha de pagamentos por serviços ambientais”, avalia Ciro Brito.
Outro ponto da lei que toca nas salvaguardas é a determinação de que projetos de remoção de gases de efeito estufa devem garantir 50% dos CRVEs às comunidades tradicionais, enquanto projetos de “REDD+ abordagem de mercado”, comercializados no mercado voluntário, terão garantia de 70%. “O mercado voluntário está crescendo e, como o SBCE deve levar alguns anos para ser implementado, há tendência desse mercado continuar crescendo nesses próximos anos”, diz Brito.
Natali Silveira, coordenadora de projetos de Cadeias Florestais do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), diz que a delimitação dessas porcentagens mínimas tem prós e contras. “Estabelecer um valor mínimo pode ser positivo na questão de ter um valor a ser seguido, mas pode limitar a possibilidade de negociação sobre a repartição dos benefícios, principalmente pensando em territórios que possuem uma capacidade de realizar projetos sem a necessidade de envolver um parceiro desenvolvedor, que ficaria com parte dos créditos.”
Como irá funcionar o mercado regulado de carbono
⦁ Empresas que emitem mais de 25 mil toneladas de dióxido de carbono (CO2) precisarão compensar suas emissões.
⦁ A compensação pode acontecer por meio da redução de emissões, para ficar abaixo do limite determinado pelo governo para cada setor com as Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs), ou pela compra de créditos de carbono.
⦁ As empresas que reduzirem as suas emissões abaixo da quantidade permitida de CBEs poderão comercializar o excedente. Ou seja, quem não atingir o teto de emissões vai poder vender o “saldo” para outras empresas.
⦁ Quem emitir acima do previsto pelas CBEs, deverá compensar as emissões pela aquisição de CBEs no mercado, pela geração de créditos de carbono em projetos próprios ou pela compra de créditos de terceiros.
⦁ Os créditos de carbono gerados fora das CBEs serão reconhecidos como Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs).
⦁ CBEs e CRVEs são as moedas do mercado regulado de carbono. Cada cota ou certificado equivale a 1 tonelada de carbono equivalente (tCO2e).
⦁ O Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) deve arrecadar recursos com a cobrança de multas e encargos, além de possíveis convênios ou acordos com entidades e empresas públicas e privadas.
Além das terras indígenas e de comunidades tradicionais, outras unidades de conservação integral ou de uso sustentável com plano de manejo poderão ser objeto de programas de geração de CRVEs. Projetos desenvolvidos em assentamentos da reforma agrária e em florestas públicas sem destinação também devem entrar no âmbito do mercado regulado.
Está por vir o “arcabouço legal” do carbono?
Apesar da existência da Comissão Nacional para REDD+ (CONAREDD+), que tem competência para estabelecer o cumprimento de salvaguardas, o Brasil ainda não tem regras federais para projetos e programas de REDD+ e outras iniciativas de armazenamento de carbono. O país segue as recomendações internacionais do Acordo de Paris, que no artigo 5º incentiva a adoção de medidas para implementar e apoiar atividades de redução de emissões por desmatamento e degradação, inclusive por meio de pagamentos por resultados, além de destacar a importância do reforço dos estoques de carbono das florestas nos países em desenvolvimento.
Sem regulação para o setor – o que pode acontecer com a implementação do SBCE –, governos estaduais têm liberdade de montar seus projetos e programas, inclusive com parcerias com a iniciativa privada. São os chamados programas de REDD+ jurisdicional. Além desses, há os projetos de REDD+ privados e os de reflorestamento.
Qualquer que seja a modalidade, projetos de carbono costumam apresentar problemas em termos de consulta prévia, livre e informada a povos e comunidades tradicionais. A expectativa é de que a regulação do mercado estabeleça metodologias de certificação do carbono, para evitar casos de dupla contagem e assegurar as salvaguardas socioambientais.
“A gente não tinha uma regra geral, e agora temos a oportunidade de ter essa regra de salvaguardas e fortalecer espaços e instâncias importantes, como a CONAREDD+”, diz Gabriela Savian, diretora adjunta de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
No contexto paraense, por exemplo, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) já acompanham as negociações do Sistema Jurisdicional de REDD+ estadual, para que não beneficie grandes proprietários rurais e seja redistribuído entre a agricultura familiar e os povos e comunidades tradicionais. Os órgãos também apuram denúncias sobre irregularidades em projetos do mercado voluntário de carbono, e emitiram uma nota técnica, em 2023, com recomendações a respeito da proteção dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no mercado voluntário de carbono.
Do ponto de vista jurídico, o SBCE pode vir a ser um aliado ao criar metodologias que ajudam no monitoramento dos contratos de projetos de carbono. “O REDD+ entra no mercado regulado como uma oportunidade de criar segurança jurídica a esses créditos de carbono que já eram gerados no Brasil desde 2010”, pondera Gabriela Savian.
Para Ciro Brito, o SBCE pode ser um sistema que apoia o cumprimento de salvaguardas socioambientais diante das graves violações de direitos territoriais de comunidades tradicionais e povos indígenas por conta de projetos de REDD+. “Mas também pode se limitar a ser um mecanismo que aumentará a integridade dos créditos gerados a partir do REDD+”, avalia.
Políticas de redução de emissões
Uma crítica levantada por representantes da sociedade civil é que o SBCE não se conecta às demais políticas e programas federais de redução de emissões. Não há conexão direta à NDC do Brasil, à Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) ou à Estratégia Nacional para REDD+. “A gente entende que, na implementação, o SBCE vai ter que estar atrelado às estratégias do Brasil de redução de emissões”, afirma a diretora adjunta do IPAM.
Na lei de pagamento por serviços ambientais, que ainda não foi regulamentada, um dos serviços que podem gerar pagamento é o carbono. E a resolução nº 3 da CONAREDD+ reconhece o mercado voluntário de carbono desde 2020. A questão que permanece em aberto é se todas essas recomendações vão encontrar um denominador comum a partir da criação do SBCE.
O aparente consenso entre os especialistas é que, apesar de o mercado regulado ter o potencial de promover projetos de REDD+ e de restauração florestal, é importante que ele não seja um mecanismo-fim na questão urgente de redução das emissões de gases de efeito estufa. Compensar emissões não é a mesma coisa que reduzi-las. Portanto, se o SBCE não for atrelado a políticas de transição energética e medidas eficazes de combate ao desmatamento e às emissões de GEE pelo agronegócio não foram implementadas, o Brasil deve seguir patinando na ambição climática.
Glossário
Certificados de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVEs):
São créditos de carbono gerados em projetos públicos e privados, que podem ser comercializados no mercado regulado. Empresas que precisam compensar suas emissões poderão comprar CRVEs. Cada certificado equivale a 1 tonelada de CO2.
Comissão Nacional para REDD+ (CONAREDD+):
A CONAREDD+ coordena e monitora a Estratégia Nacional para REDD+ do Brasil, além de determinar os requisitos para o pagamentos por resultados na redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE). A comissão também tem competência para estabelecer o cumprimento de salvaguardas de REDD+. Ela é formada por dez representantes do governo federal, quatro dos Estados, dois representantes da sociedade civil e outros dois de povos indígenas e comunidades tradicionais, além de um para academia e um para o setor privado.
Dupla contagem de carbono:
A dupla contagem ocorre quando um mesmo crédito de carbono é contabilizado pelo “vendedor” e pelo “comprador” nos seus inventários de emissões. O mercado de carbono foi estabelecido pelo Acordo de Paris, em 2015, e prevê que um país que emite menos GEE fica com um saldo, os chamados créditos de carbono, que podem ser vendidos aos países que emitem mais. O mesmo comércio vale para empresas. Na prática, é como se quem vendesse um crédito assumisse a dívida de emissões do comprador, correspondente à quantidade negociada de carbono. Portanto, a dupla contagem acontece quando tanto geradores de créditos quanto os compradores registram a redução de emissões de carbono nos seus inventários, o que leva a um falso número no saldo global de emissões.
NDC:
A Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) é o documento que estabelece as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa de cada país. A atual NDC do Brasil inclui os objetivos de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 53% até 2030 e de zerar as emissões líquidas até 2050.
Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA):
Aprovada em 2021, a lei que regulamenta a PNPSA ainda não foi implementada. A proposta é criar um mecanismo que remunera quem promove ações de proteção da natureza, como povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Um grande desafio para o governo é conseguir integrar sistemas de informação, para poder monitorar e sistematizar dados ambientais, viabilizando os pagamentos.
Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC):
A PNMC foi instituída em 2009 para ser a base da política climática brasileira, oficializando o compromisso do país em reduzir suas emissões de GEE até 2020. Os objetivos originais incluíam a redução de 80% do desmatamento na Amazônia e de 40% no Cerrado, percentuais que não foram atingidos. A PNMC está em atualização pelo governo federal.
Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+):
O REDD+ é um mecanismo criado no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) para incentivar a redução das emissões de gases de efeito estufa provenientes do desmatamento e da degradação florestal em países em desenvolvimento. Os países recebem pagamentos de fundos internacionais por conservar estoques, fazer o manejo sustentável de florestas e aumentar os estoques de carbono florestal.
REDD+ jurisdicional:
São programas nacionais, estaduais ou municipais de redução de emissões por desmatamento e degradação florestal, com aumento de estoques de carbono por regeneração natural em vegetação nativa. Diferente dos projetos isolados e locais, que acontecem hoje no mercado voluntário, o REDD+ jurisdicional é aplicado em áreas definidas administrativamente. Assim, os estados podem construir os seus programas de REDD+, dentro da sua jurisdição, se comprometendo com uma meta de redução do desmatamento. Atualmente, recebem pagamentos internacionais por resultados e podem ter convênios com entidades.