Maus tratos, depressão e morte nas ruas de SP

Reportagem ouve os temores de quem é obrigado a viver nas ruas e praças da capital — são mais de 15 mil, segundo censo de 2015. Entre as aflições diárias, o receio de não acordar — seja pelas mãos de intolerantes ou agentes de segurança do Estado

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Por Paulo Eduardo Dias, na Ponte Jornalismo

Viver nas ruas de São Paulo não é uma tarefa das mais fáceis. Além de conviver com obstáculos diários para conseguir se alimentar, beber um simples copo de água ou ir ao banheiro, há ainda o risco de agressões e mortes, ameaças que fazem parte da rotina da população em situação de rua.

A reportagem da Ponte saiu às ruas para ouvir dos moradores em situação de rua sobre qual seu principal medo em viver em praças, alamedas, esquinas e sob marquises da capital. Um novo censo da população em situação de rua está previsto para ficar pronto no ano que vem. O último foi feito em 2015 e estimava, na época, que 15.905 pessoas viviam nas ruas de São Paulo.

A frase “dormir e não acordar” é quase um mantra entre essa população, que convive com poucos espaços para se abrigar ou divertir. Mas o maior medo está associado aos braços armados do Estado: seja pelos agentes da GCM (Guarda Civil Metropolitana), sob comando da prefeitura, seja pelas ações da PM (Polícia Militar). Sobre a atuação da administração municipal, eles ainda fazem um alerta. “Em dias frios, a Defesa Civil aparece à noite com cobertores e o rapa leva de dia”, afirma Welington Costa.

Para a psicóloga e psicanalista Bárbara Cristina Souza Barbosa, que desenvolve pesquisa sobre pessoas em situação de rua pela USP (Universidade de São Paulo) e já trabalhou em redes de assistência à populações vulneráveis, os temores têm relação direta com as políticas públicas adotadas pelos governantes, que afetam diretamente os moradores em situação de rua.

“Tem se aumentado o nível de violência contra eles, principalmente porque as pessoas que violentam geralmente são parte do Estado e não estão sendo punidas e julgadas por seus crimes. Isso vem autorizando a violência a torto e a direita contra eles. Querem que eles se internem forçadamente em comunidades terapêuticas, querem que eles entrem em trabalhos insalubres, querem que eles sumam da rua. Como eles permanecem no espaço da rua por diversos motivos, dão a última cartada: violência e morte”, analisa Bárbara.

Do que você tem medo?

A violência do braço armado do Estado e aquela promovida pela intolerância e o ódio ao pobre, base da visão higienista, são os dois elementos que aparecem com mais recorrência na fala daqueles que têm a rua como lar. O outro temor é a falta de assistência, que impede uma rotina com um mínimo de dignidade e, em períodos em que a temperatura baixa muito, pode representar uma morte por hipotermia, por exemplo.

A reportagem fez a seguinte pergunta para cada pessoa em situação de rua ouvida entre os dias 23 de agosto e 2 de outubro: “Qual seu maior medo em viver na rua?”. Por medo ou precaução, poucos falaram o nome inteiro para a nossa equipe. Confira as respostas que ouvimos:

Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“O rapa e a GCM levantam o colchão, puxam pelo pé. A guarda me xinga de maldito, ameaça, perseguem. A GCM é mais violenta do que a PM. Eu não sei qual o tipo de conflito que eles têm com a gente. Mesmo eu na bolinha (tranquilo), eles arrasam”.

Diego, 20 anos

“Os policiais enquadram a gente e quando descobrem que moramos na rua ficam irados. Chamam a gente de nóia ou maloqueiro. A gente não pode ficar na rua ou em um parque. A rua é um perigo. Não é todo morador que tem passagem, que usa droga ou bebe. A sociedade tem o preconceito, mas o medo é a PM e a GCM. Eles têm ódio da gente”.

Manoel, 39 anos, pedreiro

“Tenho medo de acordar pegando fogo ou sendo atropelado. Tenho medo de ser forjado pela polícia. Eles nos ameaçam muito”.

João, 20 anos, voluntário

“Tenho medo de dormir e não acordar de tanta maldade. Não só da polícia, mas de pessoas que têm condições e são maldosas, que odeiam a gente que mora na rua”.

José Pereira, 37 anos, ajudante

“Temo morrer de frio, de hipotermia. Tenho 64 anos, com pressão alta. A mão gela, o pé fica frio. A GCM quer ser mais que a PM”.

Paulo Moreira Leite, 64 anos, aposentado

“A maldade do ser humano”.

Tiago Oliveira, 33 anos

“É chegar um burguesinho, filhinho de papai e jogar alguma coisa para matar ‘nóis’. Igual o índio morto em Brasília. Tenho medo de morrer também após comer uma comida envenenada”.

Welington Costa, 46 anos, carroceiro

“Meu maior medo quando vivia na rua era ser estuprada. Hoje moro em uma ocupação”.

Silvia, 36 anos, diarista

“O problema é a polícia”.

Milton Cesar, 32 anos, desmontador de palco

“Através do serviço social não consegui abrigo. Consegui através do padre Júlio Lancellotti. A polícia trata a gente como um animal. Você está num grupo de albergue já é motivo para discriminação”.

Denis, 30 anos, pedreiro

“Tenho medo de agressão. As pessoas fazerem alguma maldade enquanto eu estiver dormindo”.

José, 32 anos, jardineiro

“Meu maior medo é da violência. Da população e da polícia”.

Fabio Claudino, 30 anos, funileiro

“Do meu próximo. A gente não respeita a gente. Infelizmente é norma na rua, é a lei da sobrevivência”.

Marcos Vinícius, 41 anos, pedreiro

“Estou na rua há dois anos. Meu medo é de permanecer na rua, passar o resto da minha vida nela. Vim de São José dos Campos atrás do meu sonho em fazer a faculdade de Direito”.

Eric Barreiro, 38 anos

“Tenho medo da maldade da rua. Procuro dormir em frente de bancos ou lugar com câmera ou movimentação de pessoas. Temo agressões e fogo”.

João Henrique, 29 anos, agente operacional

“A GCM. A polícia me deveria trazer segurança, mas me traz constrangimento. E quando descobrem que sou do Rio de Janeiro a situação só piora. O tratamento da polícia na Avenida Paulista é bem diferente na Sé ou no Parque da Mooca. O desemprego no meu Estado me trouxe para São Paulo. Sergio Cabral quebrou o Rio. Aqui você consegue viver melhor do que lá. A higiene dos albergues é melhor. Aqui fiz exames de HIV e sífilis”.

Marcos de Oliveira, 40 anos, operador de motosserr

Guardião da população em vulnerabilidade

Ao menor sinal de perigo os moradores em situação de rua não hesitam em procurar a paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, na zona leste de São Paulo. Lá está padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua e uma das maiores referências no auxílio e luta por essa população. Ao ser procurado pela reportagem com a lista dos temores, o religioso, que já travou embates em favor das pessoas em situação de rua com os ex-prefeitos Fernando Haddad (PT) e João Doria (PSDB), tem na ponta da língua a reposta.

Padre Júlio entrega doações que a paróquia recebe diariamente |Foto: Daniel Arroyo/Ponte

“É típica de quem está desprotegido, se sente em risco, e que a qualquer momento pode ser atacado. Vivemos um momento da banalização da violência. Se alguém risca um carro vem mais gente defender o patrimônio do que se um morador em situação de rua toma uma paulada na cabeça. Vivemos um pré-fascismo. Os moradores de rua são mais suscetíveis à violência”, analisa Lancellotti.

O enfrentamento deu muita dor de cabeça ao religioso que chegou a ser ameaçado, conforme a Ponte denunciou em mais de uma oportunidade: em setembro do ano passado, guardas civis discutiram com Lancellotti e cuspiram no rosto dele; em março deste ano, quando a ONU (Organização das Nações Unidas) pediu que o Estado Brasileiro desse proteção a ele, depois que as ameças de morte aumentaram diante das denúncias de violência contra a população em situação de rua; e em abril quando um morador da Mooca divulgou o endereço e uma foto da fachada da casa do padre.

Para o sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de SP) Eduardo Viveiros de Freitas, “quando o braço armado do Estado, ao qual a sociedade concede o direito do uso da força legalizada, cujo lema é – ou deveria ser – ‘proteger e servir’, se torna uma ameaça justamente aos que deveria proteger por nada possuírem a não ser o bem maior, a vida, estamos no limiar do rompimento do pacto social que dá legitimidade ao Estado”.

Com relação ao medo dos possíveis ataques por parte de outras pessoas, Freitas aponta que “a sociedade volta a ser uma luta de todos contra todos quando essa proteção mínima é negada. Estamos numa encruzilhada e os caminhos são civilização ou barbárie. Temos que escolher que tipo de sociedade seremos. Olhar para nossos irmãos em situação de rua com um mínimo de compaixão e cuidado pode nos salvar como sociedade. Aprofundar a violência “legalizada” contra os mais fracos nos condena à tragédia”.

“O medo de morrer das pessoas em situação de rua é um medo extremamente legítimo. Primeiramente, a rua já e por si só um espaço de vulnerabilidade em relação ao corpo deles. Como a rua é pública, a dimensão do privado vai embora. Logo, os corpos deles muitas vezes são considerados públicos também. Encostam, batem, remexem sem a autorização deles. Não podemos esquecer que estamos num momento político de intensificação das dinâmicas de ódio contra certos grupos. As pessoas em situação de rua são vistas por grande parte da sociedade civil e do Estado como ‘vagabundos, aqueles que atrapalham a ordem social’”, explica a psicanalista Barbara Barbosa.

A avaliação da psicanalista explica, em certos aspectos, a reportagem publicada na Ponte na semana passada que revelou a mobilização de moradores da Mooca para criminalizar e expulsar moradores em situação de rua do bairro. O grupo organizou até mesmo uma abaixo-assinado com quase 6 mil adesões em que afirmam que os frequentadores dos albergues da região cometem crimes, como furtos, roubos e até estupro. A própria Polícia Civil afirmou que as denúncias, até o momento, são infundadas.

“A gente está em um contexto de gestão protofacista e neoliberal, que se intensifica em níveis absurdos. Essas pessoas não são consideradas pessoas, mas coisas, animais. Precisamos lembrar que as pessoas em situação de rua nos revelam toda nossa miséria enquanto sociedade. Revela nossa pobreza estrutural. E um dos grandes crimes da nossa lógica neoliberal e capitalista de que “é pecaminoso ser pobre”, finaliza a psicanalista.

Outro lado

Em nota, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) informou que “a Polícia Militar é uma instituição legalista, que tem como seus alicerces a defesa da vida, a segurança da população e o respeito às leis. A Corregedoria da corporação apura toda denúncia contra qualquer um de seus agentes e mantém um plantão 24 horas para o registro de ocorrências na Rua Alfredo Maia, 58- Luz, São Paulo/SP”.

Já a prefeitura de São Paulo, sob gestão de Bruno Covas (PSDB) declarou que “os agentes da Guarda Civil Metropolitana recebem treinamentos específicos que os capacitam à auxiliar moradores de rua na localização de familiares e no encaminhamento para abrigos e unidades de saúde. As ações integram o Programa ‘Anjos da Guarda’, que tem com a finalidade a doação de cobertores e a promoção de ações comunitárias, educativas, preventivas e de reinserção social”, diz trecho da nota.

A administração municipal lembra que “dentro do programa de proteção a pessoas em situação de risco os guardas estão aptos a darem apoio aos agentes públicos das secretarias: SMSU – Secretaria Municipal de Segurança Urbana, SMADS – Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, SMS – Secretaria Municipal de Saúde, SMPP – Secretaria Municipal de Participação e Parceria e o Conselho Comunitário de Segurança (CONSEGs). Todos os cursos promovidos pela Academia de Formação em Segurança Urbana têm como referência a Matriz Curricular Nacional para as Guardas da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça”.

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