Mata Atlântica: há boas notícias?

Reduzida, desde o “Descobrimento”, a floresta encolheu a 14% de sua área original. Mas cresceu, de forma lenta porém constante, nos últimos 20 anos. A boa notícia exige cautela: ecossistemas são fragmentados e frágeis. Mas leis de proteção foram um bom primeiro passo

Foto: Godofredo A. Vásquez/AP Photo/Imageplus
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Por Eduardo Geraque, na Piauí

As páginas da Historia naturalis brasiliae, primeira enciclopédia da fauna e da flora brasileiras, publicada em 1648, guardam uma boa dose de desalento. Escrito em parceria do médico e naturalista holandês Willem Piso (1611-1678) com o matemático e naturalista alemão George Marcgraf (1610-1644), o livro descreve espécies que hoje estão extintas na natureza e outras que ainda resistem, mas com populações tremendamente reduzidas. Os dois cientistas, bancados por Maurício de Nassau quando o nobre aqui esteve para governar o território brasileiro dominado pela Holanda, percorreram as regiões de Alagoas, Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Conheceram uma Mata Atlântica muito diferente da atual. 

Não que o bioma, naquela época, estivesse intacto. Entre os séculos XVI e XVII, a colonização já havia deixado marcas na floresta, sobretudo com as plantações de cana que avançaram pelo interior. A produção do açúcar demandava não só espaço, mas lenha, o que acelerou o desmate. O brasilianista Warren Dean, no livro A ferro e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica (1995), estima que por volta de 1700 a cana já tinha derrubado 1 mil km² do bioma – área um pouco menor do que a do Rio de Janeiro nos dias atuais.

Ainda assim, os territórios visitados pelos naturalistas continham uma diversidade que só podemos imaginar. Os dois viram, por exemplo, o mutum-do-nordeste (também chamado mutum-de-alagoas), uma ave negra da família dos cracídeos que foi extinta da natureza devido à caça e à perda de habitat. Pode-se especular inclusive que o exemplar desenhado na enciclopédia seja o de uma espécie nunca descrita – um animal que parecesse o mutum mas não fosse. Nunca saberemos. (A enciclopédia, para quem se interessar, foi toda digitalizada e está disponível aqui.)

A ONG SOS Mata Atlântica, que desde os anos 1980 monitora o bioma em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), calcula que, da floresta original, restaram hoje algo entre 14% e 30%. Aproximadamente um quarto de todas as espécies de fauna ameaçadas de extinção no Brasil estão na Mata Atlântica.

Nos últimos vinte anos, contudo, aconteceu uma mudança que só agora começa a ser computada pela ciência. O ritmo do desmatamento diminuiu e, para a surpresa de muitos pesquisadores, a floresta cresceu de tamanho, graças ao surgimento de novas áreas arborizadas – algumas delas plantadas pelo homem, outras restauradas espontaneamente. Tudo ainda muito devagar, numa escala centesimal: o desmatamento foi reduzido em 0,25% entre 2005 e 2020, enquanto a cobertura vegetal cresceu 0,6%. Parece pouco, mas, em se tratando de um bioma tão vasto, esses 0,6% equivalem a 980 mil hectares – algo como 240 Florestas da Tijuca.

Os especialistas ainda estão tentando entender esse fenômeno e sua durabilidade. “É possível que a Lei da Mata Atlântica [sancionada pelo governo federal em 2006], assim como outros processos relacionados à cobertura vegetal e ao uso da terra, esteja tendo efeitos positivos”, diz Maurício Vancine, ecólogo e pesquisador da Unesp em Rio Claro. Em parceria com outros cientistas, Vancine publicou um estudo na revista científica Biological Conservation em que relata os novos dados.

A lei de 2006, de autoria do ex-deputado federal e ambientalista Fabio Feldmann, proibiu o desmatamento de florestas nativas e criou regras para a exploração econômica da Mata Atlântica. Os pesquisadores acreditam que, além dessa lei, um fator que pode ter ajudado a regenerar a floresta é o PSA – sigla de “pagamento por serviços ambientais”. São projetos organizados pelo poder público e por instituições do terceiro setor que remuneram produtores e proprietários rurais que protegem a floresta. O PSA começou a se estabelecer na Mata Atlântica por volta de 2005.

A boa notícia, por ora, tem sido comemorada com cautela. O estudo publicado na Biological Conservation ressalta que, embora os números sejam animadores, o crescimento da vegetação aconteceu principalmente em trechos pequenos da floresta, isolados entre si. Segundo Vancine, 97% deles tinham menos de 50 hectares. “Isso gera desafios de conectividade entre os pontos e uma falta de qualidade ambiental”, explicou o pesquisador à piauí. “O cenário não é totalmente positivo.” Em outras palavras, o crescimento quantitativo não significa necessariamente crescimento qualitativo. Apesar de existirem hoje mais trechos de mata do que em 2005, eles ainda não estão interligados de modo a constituir um ecossistema pleno e saudável para plantas e animais. O bioma continua muito fragilizado.

“Essas áreas menores, no entanto, funcionam como trampolins ecológicos, porque facilitam o deslocamento das espécies entre áreas maiores de floresta”, diz Vancine. O estudo apresentado pelo grupo mostra uma melhora também nos índices que medem a conectividade dos grandes trechos da Mata Atlântica, ao menos em termos quantitativos. “Houve um ponto de inflexão dessa métrica. Ela vinha caindo entre 1986 e 2005, mas depois começou a aumentar. Em 2020, atingiu valores mais altos do que em 1986”, diz Vancine. A conclusão é de que surgiram não apenas mais habitats, como também novas “avenidas” para animais e plantas percorrerem.

A Mata Atlântica atravessa dezessete estados brasileiros, do Nordeste ao Sul, passando também por Argentina e Paraguai. Diferentemente da Amazônia, é um bioma presente nas regiões mais habitadas do Brasil, o que contribuiu para sua rápida devastação – primeiro no ciclo do açúcar, depois no ciclo do café e, por fim, no processo de expansão das metrópoles, das indústrias e da fronteira agrícola ao longo do século XX.

Por ser tão comprida, a floresta abriga em si ecossistemas díspares, que sofrem diferentes tipos de degradação. “Enquanto áreas litorâneas ainda enfrentam problemas como a caça, regiões interioranas, como o Centro de Endemismo Pernambuco (CEP), sofrem com altas taxas de extinção e baixa capacidade de recuperação devido à fragmentação extrema”, diz o biólogo Vinícius Tonetti, pesquisador de pós-doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

O CEP, localizado ao Norte do Rio São Francisco, exemplifica bem a devastação ainda em curso. É uma área que vem encolhendo ano a ano devido ao desmatamento e hoje é formada por fragmentos de floresta pouco conectados entre si. Algumas plantas e animais vivem apenas em determinados trechos da mata – são as chamadas espécies endêmicas. A morte de um desses pequenos ecossistemas pode acarretar a extinção de uma ou mais espécies.

“A Mata Atlântica vive, simultaneamente, o desmatamento e uma vigorosa regeneração”, diz Luiz Fernando Pinto, diretor executivo da Fundação SOS Mata Atlântica. “Em determinadas regiões de Minas, Piauí, Mato Grosso do Sul e Bahia, a fronteira agrícola ainda está avançando sobre a floresta. No Paraná e em Santa Catarina, existem pequenos desmatamentos comendo a borda das matas que sobraram.” A regeneração, por sua vez, é puxada pelos estados que mais sofreram com a devastação no passado, como São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São locais onde o desmatamento foi contido e a floresta voltou a crescer.

A situação da Mata Atlântica, segundo Pinto, é paradoxal. Não só porque a regeneração acontece ao mesmo tempo que o desmate, mas também pelo fato de que, hoje, áreas que já foram regeneradas (pelo homem ou espontaneamente) também apresentam perda de cobertura vegetal. “Estamos perdendo tanto os anciãos da Mata Atlântica quanto os seus bebês. E uma área desmatada hoje somente voltará a ser como era daqui décadas ou séculos, se é que voltará.”

Segundo a SOS Mata Atlântica, 44% das espécies de árvores da Mata Atlântica estão ameaçadas. “Em compensação, quase todo mês uma nova espécie de planta ou animal é descrita”, diz Pinto. “Por incrível que pareça, ainda não conhecemos toda a biodiversidade do bioma mais estudado do Brasil. E resta tão pouco dele…”

Um dos empecilhos para a recuperação da Mata Atlântica é o fato de haver poucas unidades de conservação na floresta. Aproximadamente 80% do bioma está em mãos privadas, que se apossaram do litoral brasileiro no decorrer de séculos. Uma minoria dessas propriedades constituem reservas particulares. É um quadro diferente do que existe na Amazônia, onde mais da metade do território é protegido por terras indígenas e unidades de conservação, muitas delas geridas pela União.

Reerguer a Mata Atlântica, portanto, é tarefa que exige uma combinação de políticas públicas, engajamento da sociedade civil e parcerias com entes privados. “Evitar a supressão e a degradação é tão importante quanto restaurar. Ainda estamos perdendo florestas e outras formas de vegetação nativa, que em geral são maduras e têm papel importante nos serviços ecossistêmicos”, diz Paulo Guilherme Molin, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Além de conservar a biodiversidade, a mata ajuda a evitar deslizamentos de terras em áreas com declive e é fundamental para o abastecimento de água em grande parte do país (o bioma comporta nove das doze bacias hidrográficas brasileiras).

“As florestas que estamos ganhando são jovens e pouco sabemos sobre sua qualidade em comparação com as florestas maduras”, diz Molin. “É aí que entra o planejamento: onde restaurar, para maximizar os benefícios e reduzir custos?”

Há exemplos bem-sucedidos. No Pontal do Paranapanema, no extremo Oeste do estado de São Paulo, desde o fim dos anos 1990 estão em curso projetos de restauração florestal. Um deles é o Mapa dos Sonhos, capitaneado pelo engenheiro florestal Laury Cullen Jr. Com a ajuda de famílias assentadas pelo MST, o projeto restaurou 2 mil hectares de floresta e replantou 4 milhões de árvores. Medida importante para garantir a preservação de espécies que transitam por ali, como a onça-pintada.

No Centro Pernambuco de Endemismo, há alguns anos o poder público, em parceria com universidades, ONGs e proprietários de terras, vem tentando reintroduzir o mutum-do-nordeste na natureza. O primeiro passo foi dado em 2017, quando um casal de mutuns foi levado de Minas Gerais a Alagoas e alojado num viveiro – a ideia era testar, sob condições controladas, sua adaptação ao novo ambiente. Nunca antes uma espécie extinta havia sido reintroduzida à vida selvagem no Brasil. O fato causou comoção pública e fez com que o então governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), assinasse um decreto que tornou o mutum a ave-símbolo do estado. Em 2019, enfim, três casais de mutuns foram soltos na natureza. A adaptação é difícil: quatro anos depois, só duas fêmeas continuavam vivas.

Os exemplos de São Paulo e Alagoas, contudo, têm alcance apenas local. O que muitos pesquisadores e ambientalistas vêm cobrando é a efetivação do Código Florestal, aprovado em 2012 pelo Congresso e nunca totalmente implantado. Abrangente, o projeto determina o replantio de largas porções da floresta – área que, segundo os cálculos da SOS Mata Atlântica, somaria 3 milhões de hectares.

Um dos entraves para a aplicação da lei é o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Esse mecanismo, uma espécie de RG das propriedades rurais, foi criado com o intuito de regularizar a ocupação de terras no país, conferindo se elas estão sobrepostas a áreas de preservação ambiental e se obedecem às restrições de desmatamento de cada região. O registro dos CARs, no entanto, é responsabilidade dos estados, que, em geral, pouco fazem para fiscalizá-los. Um levantamento publicado em 2023 pela ONG Climate Policy Initiative apontou que, dos 7,2 milhões de cadastros rurais existentes até então no Brasil, apenas 14,1% haviam sido devidamente validados – isto é, foram fiscalizados e se comprovou que obedeciam às normas ambientais. 

“As florestas podem demorar décadas para serem replantadas, se é que um dia serão”, lamenta Luiz Fernando Pinto, da SOS Mata Atlântica. O que se pode fazer por enquanto, segundo ele, é interromper a degradação do bioma, que não parou por um mês sequer desde a chegada dos portugueses ao Brasil. “Precisamos atingir, antes de mais nada, o desmatamento zero.” Essa contenção de danos pode acelerar a regeneração da floresta e salvar espécies que estão prestes a sumir.

Algumas delas têm dado as caras. No ano passado, uma família de antas foi avistada circulando livremente em um parque na Costa Verde do Rio de Janeiro, o que não ocorria desde o começo do século passado, quando o animal foi considerado extinto. O artigo publicado na Biological Conservation injetou ânimo entre ambientalistas porque permite concluir que as antas não são um caso isolado, mas um sinal de que a Mata Atlântica está, de maneiras imprevistas, se revigorando.

Em julho de 2024, um funcionário da Reserva Ecológica de Guapiaçu (Regua), em Cachoeiras de Macacu (RJ), se deparou com uma árvore frutífera que nunca tinha visto antes. A espécie era realmente desconhecida e foi catalogada pelos cientistas com o nome de Eugenia guapiassuana – no popular, “cereja-de-guapiaçu”. Em outubro, uma nova espécie de sapo-pulga foi descoberta em Ubatuba (SP). Medindo 6,95 mm, passou a ser considerado o segundo menor vertebrado do mundo. O primeiro, chamado sapinho-pulga, também reside na Mata Atlântica.

Eduardo Geraque é jornalista e biológo, com mestrado em oceanografia e doutorado em jornalismo ambiental. Trabalhou em jornais como Diário Popular, Gazeta Mercantile, Folha de S.Paulo e é comentarista esportivo no FlashscoreBR

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