"Sem deixar qualquer marca"

Se você deseja ler um testemunho coerente e ponderado sobre o exílio, “Em estado de memória” não é o livro para você. Ele trata de marcas – as deixadas na narradora e as que inevitavelmente serão deixadas no leitor. Por Camila Pavanelli, no Amálgama
.

Dizer ao público brasileiro que Em estado de memória é um livro sobre o exílio político de uma mulher argentina ao longo das décadas de 60 e 70 não estaria propriamente errado; o problema é que, além de ser uma afirmação análoga a “A Metamorfose é um livro sobre uma barata”, provavelmente evocaria no leitor a lembrança dos livros brasileiros de memorialismo político – O Que É Isso, Companheiro?, Os Carbonários, Em Câmera Lenta. Ocorre que, descontada a semelhança temática, não há outros elementos que liguem Em estado de memória a qualquer destas obras, dada a particularidade de sua voz narrativa – que, nas palavras do tradutor Idelber Avelar, “não é exatamente testemunhal nem ficcional” (orelha do livro). O livro estaria mais bem situado numa prateleira que contivesse certos posts de Fal Azevedo, pois tanto neles quanto na obra de Mercado encontramos essas vozes narrativas que se deslocam entre testemunho e ficção, sem que jamais possamos identificá-las (ou reduzi-las) a um pólo ou outro.

A narrativa do livro é toda fragmentada e não-linear. Diante disso, esta resenha poderia fazer um apanhado geral de alguns trechos particularmente marcantes da obra, a fim de dar uma ideia mais completa sobre ela. Mas isto já foi feito pela escritora Paloma Vidal, a cuja resenha remeto o leitor. Optei, assim, por outro caminho: escolhi uma das minhas passagens favoritas, razoavelmente longa e bastante condensada, para comentar em detalhe:

O exilado sabe, por antecipação, que será difícil ‘adaptar-se’, termo curinga que, já ao chegar ao país de exílio, estava presente em todas as conversas, nas quais, por angústia ou por afã de simplificar, se tentava definir a nova situação. Perguntar a alguém se está se adaptando é o lugar-comum de toda uma classe social que procura se tranquilizar. Sempre me incomodou que me fizessem essa pergunta e me incomodou ainda mais que me perguntassem: ‘E os meninos, estão se adaptando?’, porque se figurava para mim que éramos considerados uma massinha dúctil que se dobrava às circunstâncias somente com um abrandamento. A pergunta é anódina, mas poucas vezes se tem a força de rebatê-la com um ex-abrupto ou uma negativa a respondê-la, e todos os exilados, ao chegar ao país de adoção e depois ao próprio, tivemos de começar dizendo: ‘Bem, a princípio, minha família e eu etc. etc.’, dividindo em franjas temporais um desenvolvimento que, por seu dramatismo, não admitia recortes. Cada qual fazia seu conto: havia um antes, de integração deficiente, e depois uma melhora. Com esse esquema, o interlocutor curioso entendia só o que precisava entender, nunca mais além, e a conversa poderia prosseguir ou cessar sem deixar qualquer marca. (pp. 155-156)

Começando pela primeira frase:

O exilado sabe, por antecipação, que será difícil ‘adaptar-se’, termo curinga que, já ao chegar ao país de exílio, estava presente em todas as conversas, nas quais, por angústia ou por afã de simplificar, se tentava definir a nova situação.

O “exilado” do início da frase é enganador: não é ele o tema do livro, e sim aquilo que, como lemos ao final, “se tentava definir”. Em estado de memória é um livro que cerca a experiência por todos os ângulos e lados sem poder capturá-la por inteiro; é um livro sobre a impossibilidade de encontrar a mot juste, sendo justamente essa impossibilidade o que leva a narradora a insistir em sua construção/busca. Ela não se furta a falar de sua “dependência de médicos de toda laia, incluídos os dentistas, os ginecologistas e, sobretudo, os curandeiros das mais variadas espécies: santeiros, xamãs e suas ‘plantas mestras’” (p. 15), que se somam aos psiquiatras e psicanalistas a que ela recorre. E que outra coisa têm em comum um dentista, um xamã e um psicanalista além do fato de circunscreverem a dor – dando-lhe um contorno, um nome e estabelecendo, a partir disso, alguma possibilidade de cura?

Se estamos sempre construindo e reconstruindo sentidos para nossas experiências, com o trauma – o sem-sentido absoluto – acontece algo distinto. O trauma é paralisante e repetitivo; não se “associa livremente” a partir de uma experiência traumática. Vejo Em estado de memória justamente como uma luta contra o trauma; como uma tentativa de colocar palavra onde antes não havia, tal como fazem (ou tentam fazer) os psicanalistas e xamãs. Em suma, trata-se de um texto que “tenta definir”.

Perguntar a alguém se está se adaptando é o lugar-comum de toda uma classe social que procura se tranquilizar.

Esta talvez seja a minha frase favorita de todo o trecho. A narradora poderia se limitar a fazer a crítica do lugar-comum, das conversas movidas a clichês que não comunicam nada e não levam a lugar algum; mas vem esta frase e descobrimos toda a sua empatia para com os atores dessas conversas. O clichê não existe a troco de nada. O foco aqui é a tranquilidade. A conversa-clichê sobre a adaptação vem instaurar uma calma e um controle aparentes em pessoas que já não podem viver tranquilas.

Sempre me incomodou que me fizessem essa pergunta e me incomodou ainda mais que me perguntassem: ‘E os meninos, estão se adaptando?’, porque se figurava para mim que éramos considerados uma massinha dúctil que se dobrava às circunstâncias somente com um abrandamento.

Aqui há, para mim, um elemento de grande surpresa. Quando são mencionados os filhos, imediatamente pensei que teríamos algo como uma “mãe defendendo a cria”; quando aparece a primeira pessoal do plural (“éramos”), já se vê que esta divisão mãe/filhos não passava de uma expectativa minha. A narradora não se coloca em posição superior aos filhos, protegendo-os; ela se identifica/junta a eles, e o problema todo está justamente nesta massa amorfa em que os exilados, sejam eles mães ou filhos, são percebidos pelos outros. Mas a massa não é apenas amorfa: ela é também moldável. “Give me a child and I’ll shape him into anything“, já dizia Skinner – “dê-me um exilado e ele certamente se adaptará após um período de dificuldades”, poderia dizer Tununa Mercado. Temos aí sujeitos desapropriados de qualquer autonomia, e daí talvez advenha parte do terror de uma conversa onde os papéis já estão predeterminados (“- como vai a adaptação? – no começo foi difícil, mas agora tudo está melhor, obrigada – mais café?”): é uma conversa que anula os sujeitos, que estão naquela situação justamente por terem tido sua cidadania anulada – massacrada – por um Estado totalitário.

A pergunta é anódina, mas poucas vezes se tem a força de rebatê-la com um ex-abrupto ou uma negativa a respondê-la, e todos os exilados, ao chegar ao país de adoção e depois ao próprio, tivemos de começar dizendo: ‘Bem, a princípio, minha família e eu etc. etc.’, dividindo em franjas temporais um desenvolvimento que, por seu dramatismo, não admitia recortes.

Primeiro, a dificuldade de reagir com algum conteúdo verdadeiramente significativo a uma conversa destinada à superficialidade; depois, a angústia frente à arbitrariedade da organização temporal de nossas histórias, que costumam ser dissecadas e analisadas até o ponto de podermos narrá-las sem precisar senti-las. Para viver em sociedade – para participar de conversas superficiais exitosamente -, é preciso dissociar afeto de representação, deixar de (re)viver o horror na própria pele cada vez que se fala nele. É o que faz a narradora, porém não sem a consciência de que as “conversas sobre adaptação” são apenas de uma encenação mil vezes replicada.

Cada qual fazia seu conto: havia um antes, de integração deficiente, e depois uma melhora.

Criar um conto no qual há um antes, um depois e um progresso que os une, além de ser um imperativo da vida em sociedade, é também extremamente reconfortante – é atribuir um tempo cronológico a afetos que não seguem a lógica das horas do relógio. “Antes estava ruim e agora está melhor” – mas e se estivermos fixados no antes? O que fazer quando o “antes” insistentemente retorna, evocado por uma roupa, um mendigo ou uma colmeia de abelhas? (Para saber sobre cada um deles, só mesmo lendo o livro, que esta resenha já está demasiado longa.)

Com esse esquema, o interlocutor curioso entendia só o que precisava entender, nunca mais além, e a conversa poderia prosseguir ou cessar sem deixar qualquer marca.

“Sem deixar qualquer marca”: eis aí a antítese perfeita de Em estado de memória. Se você deseja ler um testemunho coerente e ponderado sobre o exílio, este não é o livro para você. Este é um livro sobre marcas – as deixadas na narradora e as que inevitavelmente serão deixadas no leitor. É um livro que corre atrás de sentidos e foge dos lugares-comuns. Muitíssimo bem escrito, é uma felicidade vê-lo finalmente traduzido para o português.

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