Machado e Marcel: Vamos à história dos ciumentos
Dom Casmurro e Um amor de Swann aqui se fitam em espelho comparativo. Ambos abrem frestas no já-escrito e operam descentramentos. Mas o narrador-testemunha (ou acusador) de Machado é justamente aquele que Proust, dessa vez, evita
Publicado 14/10/2022 às 17:23 - Atualizado 14/10/2022 às 20:07
Por Silviano Santiago no Suplemento Pernambuco
Para o amigo Zé Mário, em agradecimento.
Um amor de Swann não pertencia, pois, ao primeiro plano concebido por Proust para Em busca do tempo perdido. Trata-se dum episódio estranho, uma narrativa [récit] na terceira pessoa sobre uma aventura ocorrida no passado, anterior ao nascimento do herói. Ela serve para apresentar o personagem Charles Swann, alter ego do herói, seu modelo em todo o romance, e propõe uma primeira análise do amor e do ciúme, que o herói conhecerá depois de Swann.
Antoine Compagnon, prefácio do 1º volume (Du côté de chez Swann) de À la recherche du temps perdu (edição de 1988)
Ao abrir a leitura contrastiva de Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis, e Um amor de Swann (1914), de Marcel Proust, acoplo obras literárias heterogêneas com a finalidade de desconstruir ou de − recomenda Jacques Derrida – grafar entre aspas a noção eurocêntrica de universal na literatura e nas artes.
A acoplagem contrastiva de produtos heterogêneos não se explica nem se justifica pela epígrafe de Antoine Compagnon. No entanto, a leitura contrastiva se materializa na observação levantada por ele, onde destaca a transgressão por Proust à retórica e à lógica narrativa estabelecidas pela prática do récit na França. Apesar de não constar do projeto da obra, a transgressão proustiana ganha corpo na escrita. O desvio no planejamento redunda em extenso capítulo de Du côté de chez Swann (Do lado de Swann), intitulado Un amour de Swann, a que o professor do Collège de France empresta a devida importância.
Ao destacar e isolar um romance de Machado de Assis e um “livro”, ou um verdadeiro romance dentro do roman-fleuve de Marcel Proust, permito-me somar as observações críticas de Antoine Compagnon, em epígrafe, às minhas próprias anotações sobre o tardio Dom Casmurro. Ao planejar e escrever o seu romance, Machado envereda por desencaminho pela literatura em prosa europeia e pela já extensa e consagrada obra. Nossa aproximação lúdica e desconstrutora da noção de cânone “universal” finca pé num desvio precoce de Marcel e um desencaminho temporão de Machado e fica à espera do aval dos leitores e admiradores dos romancistas.
Vale dizer: na interpretação de uma obra literária brasileira e de outra, francesa, amplio uma vez mais o questionamento sobre o eurocentrismo que fundamenta a literatura comparada. Dominantes nela, os conceitos de influência, cópia e originalidade são sempre nefastos se o seu suporte teórico for requerido por sentido unidirecional, cronológico ou histórico. Consumo, pois, um ato de leitura acronológico e multivalente, (só) aparentemente arbitrário na escolha e no tratamento dos objetos heterogêneos em jogo.
Em pequeno, elevo o romance Dom Casmurro à condição de clássico universal, à semelhança da atribuição concedida, em grandioso, à obra-prima de Marcel Proust. A verdadeira vida, a verdadeira salvação está na arte.
Machado de Assis, ao decidir não ser o mero responsável por “uma História dos Subúrbios [cariocas]” e optar pela criação do Bento Santiago, narrador em primeira pessoa do romance Dom Casmurro, passa – sempre em pequeno – por indecisões e conflitos não tão diferentes dos dilemas e conflitos enfrentados por Marcel Proust – sempre em grandioso – quando, em carta de fevereiro de 1913, endereçada a René Blum, afirma ter finalmente chegado à principal característica do narrador no seu primeiro e único projeto propriamente artístico:
Il y a un monsieur qui raconte et qui dit Je. [Há um senhor que narra e que diz Eu.]
Ressalte-se que parto do pressuposto que Machado e Marcel decidem que os respectivos narradores de obras suas vão assinar e, previamente, assinam um contrato retórico em que atestam ser o Eu a pessoa responsável pela escrita de manuscrito novo. No entanto, o jogo interpretativo das obras literárias − aqui proposto sob a forma de comparações a se alinharem por sucessivos atos de descentramento que se concretizam em contrastes – se fundamenta na transgressão (e não na obediência, insisto) aos respectivos zelos retóricos e contextualizações históricas. Ao caracterizar os respectivos sujeitos da escrita nos futuros trabalhos literários, zelos e contextualizações tinham sido acordados pelos dois e serão transgredidos posteriormente.
Os múltiplos dilemas e indecisões encarados por Machado para engendrar e dar vida ao narrador em primeira pessoa amansaram inicialmente o espírito rebelde do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e o compeliram a inserir o projeto eleito, a sua trama, em obras recentes da literatura ocidental. A tal ponto o romancista se curva à fatalidade dos trópicos colonizados que leva o Bento Santiago, nome que escolhe para o marido ciumento de Capitu, a fabular, nos capítulos iniciais do romance, uma série de justificativas para a escolha feita. Justificativas quase inverossímeis, se o meu leitor recordar os mais apreciados heróis literários brasileiros de então. Indiretamente, pois, dilemas e indecisões armam para o romancista carioca modos artísticos de constrangimento.
Às vésperas do novo século, Machado, em pequeno, insere e centra a nova narrativa na já grandiosa história do romance burguês europeu. Em contrapartida ao constrangimento autoimposto, aflora um conjunto de dilemas e de indecisões que oferecem ao romancista a possibilidade de imaginar – além das balizas europeias já assimiladas e já elaboradas desde o primeiro romance, Ressurreição (1872) − sucessivos efeitos de descentramento na matriz ocidental ou no modelo realista francês. Os descentramentos se formalizam em desobediência. Vale dizer: em transgressão ao já-escrito por ele próprio (além do romance citado, leia-se também o poema O verme, de 1870) e ao já-estabelecido pela literatura “universal” dominante. Falta a Machado materializar e legitimar a transgressão em escrita literária a se desencaminhar. Ao tomar as rédeas da nova narrativa, os efeitos de descentramento se tornam, portanto, mandatórios.
Pela radicalidade assumida não só no plano da expansão da literatura europeia aos trópicos como na economia retórica do gênero romance burguês, o artista descendente de povo diaspórico escravizado, já maduro e cofundador da Academia Brasileira de Letras, se reafirma em patamar literário superior ao estabelecido pela literatura realista-naturalista nacional, a que deveria ter-se filiado. Se temos à mão Machado de Assis, por que endeusar Aluísio Azevedo?
O autoencarceramento de Machado na melhor tradição literária europeia incita-o a divergir no interior do desequilíbrio estético (desequilíbrio raramente nomeado em virtude da força recente e cega do ufanismo independentista) que sobressai no aprisionamento colonial de produto nacional em contexto “universal”. Exemplifico: para escrever o Dom Casmurro, o romancista de Ressurreição se encarcera em literatura francesa, no romance Madame Bovary (1856), de Gustave Flaubert, e em literatura portuguesa, no romance O primo Basílio (1878), de Eça de Queirós – para me restringir a obras europeias que ostentam homogeneidade e transparência com os romances em pauta. [nota 1]
Encarcerado em Flaubert e Eça, Machado busca transgredir o pacto narrativo em terceira pessoa de responsabilidade dos primeiros, terceira pessoa necessariamente objetiva e científica. Transgride para pactuar – permitam-me o salto − com “un monsieur qui raconte et dit Je”. Ao se divergir das formas constrangedoras do já-escrito, Machado se assemelha − em movimento às avessas – ao romancista Marcel Proust. Depois de ter optado pela primeira pessoa, em obediência à convenção ditada pelo récit psicológico clássico, Proust inventa um narrador em terceira pessoa, Charles Swann, no interior da sua longuíssima narrativa confessional. Charles é um senhor a dizer Ele e a padecer ciúmes pela cocotte Odette de Crécy.
Machado subjetiva tardiamente o ciúme de Félix (Ressurreição). Proust objetiva precocemente o ciúme do narrador (Em busca do tempo perdido).
(É evidente que a simples distinção entre narrativas em primeira e terceira pessoa não diz algo de grande importância ao crítico ou ao historiador de literatura. Vem a ganhar direito de cidadania interpretativa se − como alerta Wayne Booth em The rhetoric of fiction − “nos tornamos mais precisos e descrevemos como as qualidades particulares dos narradores se relacionam a efeitos específicos”.)
Segundo Antoine Compagnon, o intruso Charles Swann é o alter ego do herói da Recherche e será seu modelo durante o restante do romance. Por ora, apenas sugerimos a leitura de uma historiadora da literatura francesa, Claude-Edmonde Magny, hoje esquecida.
Em Swann, Magny enxerga um personagem “insipiente” (ignorante)− o João Batista que “profetiza” Jesus. Não é de Swann a frase que expressa os argumentos de outro insipiente, o Bento Santiago: “Como pude amar durante tanto tempo uma mulher que não me agradava, que não era meu tipo!”? Não é do Bento Santiago o ensinamento que ambos os protagonistas não endossam: “Jesus, filho de Sirac, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: ‘Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti’”. Ainda segundo Magny, teria sido necessário a Proust que Swann se encarnasse na figura dum colecionador (e não dum artista), homem mundano e amante infeliz de Odette, para o narrador em primeira pessoa mostrar (verbo da preferência de Proust) como uma alma se perde, apesar das múltiplas oportunidades de salvação que lhe são oferecidas.
No livro-dentro-do-livro, Marcel transgride não só a duradoura e tirânica tradição do récit francês como ainda o contrato assinado pelo narrador da Recherche com a primeira pessoa – “un monsieur qui raconte et dit Je”, relembro. No século XIX francês, a tradição do récit se moderniza em obras como Adolphe (1816), de Benjamin Constant, e Armance (1827), de Stendhal. Eis dois exemplos homogêneos e transparentes do projeto da Recherche. Ambos os récits foram louvados pelos companheiros de geração de Proust (em particular por André Gide) que, em 1909, tinha fundado a Nouvelle Revue Française, cuja produção será assegurada pela editora Gallimard em 1911, quando abre suas portas. A tal ponto a tradição do récit era admirada que outro grupo de jovens, agora tendo como mestre Jean Cocteau, acaba por engendrar o mais talentoso de todos, o rimbaudiano Raymond Radiguet (1903-1923), um quase copista da legendária Madame de La Fayette (1634-1693).
Dou continuidade à leitura de Machado. Ao entregar o foco narrativo e o ponto de vista da observação à primeira pessoa do Bento Santiago, o brasileiro desconstrói o triângulo amoroso tal como dramatizado pelo romance burguês europeu oitocentista. Desconstrói o déjà-écrit (pago finalmente a Michel Foucault o copyright pelo meu uso da ferramenta) que acolhe o novo projeto literário. O Eu do marido assume a exclusividade do foco narrativo e da perspectiva de apreciação do drama narrado. Em Dom Casmurro, o adultério da mulher e a traição do amante não estão embasados por evidência objetiva e científica (princípio de culpabilidade, em Direito Penal), embora as duas figuras tenham sido dramatizadas em extensão e à exaustão nas narrativas em terceira pessoa. São homogêneas as duas figuras em Flaubert, Eça e no desvio proustiano (adiantemos nosso esboço: Odette de Crécy é uma cocotte e encontra homogeneidade, nos pudicos romances em terceira pessoa de Machado, com a infidelidade da senhora viúva − a que já foi fiel ao primeiro marido seria também “fiel” ao segundo?).
Ao final da vida, lá está o Bento, solitário e casmurro, a mostrar (evito a palavra representar e retomo o verbo de Proust) seu ciúme de Capitu. As antigas maquinações subjetivas, machistas e patriarcais tinham sido direcionadas pela sua formação escolar. Estuda em seminário (a não esquecer que até o marquês de Pombal a educação está em mãos religiosas) e em Faculdade de Direito (principal celeiro dos líderes políticos brasileiros). Bento Santiago é ex-seminarista e advogado de profissão. Mais um exemplo. Para detectar a genialidade na transgressão à terceira pessoa posta em prática por Machado, contraste-se esse rápido perfil de Bento Santiago com a caracterização por Flaubert de Charles Bovary, o marido: “A conversação de Charles era rasa como um passeio da rua e nela desfilavam em trajes vulgares as ideias de toda a gente, sem excitarem emoção, nem riso, nem devaneio”. Quantos leitores não foram seduzidos pelo charme e a retórica do narrador feito advogado de acusação e, sem evidências, julgam Capitu adúltera!
O relato do marido ciumento em retrocesso pânico acolhe a esposa e o apenas verossímil amante com a densidade de sombras inquietas. De Dom Casmurro, cito o capítulo II, Do livro:
Foi então que os bustos pintados nas paredes [da casa] entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras?…
Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a pena na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo.
Bento Santiago tem necessidade de esclarecer que só se entregou à redação da obra literária em curso depois de ter sacrificado alguns projetos em pauta – entre eles, uma narrativa histórica sobre os subúrbios da cidade onde nasceu e mora. A primeira pessoa do Bento, que sai à la recherche du temps perdu, retira o artista descendente de povo diaspórico e escravizado dos subúrbios cariocas, a fim de reorientá-lo em transgressão profícua e eficaz à literatura “universal”. Machado abre primeiro uma fresta no “universal”, fresta semelhante a uma folha de papel em branco no verniz da escrivaninha. Papel em branco a clamar e a reclamar uma in(ter)venção artística original: “ainda agora me treme a pena na mão”.
Em tinta negra, o romancista já maduro sai em busca da vida vivida, delegando ao novo narrador a identidade de marido intelectualizado e ciumento, a recriar um triângulo amoroso em vias de perder a atualidade social. Ficará evidente na leitura de Marcel Proust que o ciúme é o que impede o sujeito de chegar à realidade do outro.
Ressalte-se, em contradição, a atitude irônica do narrador em relação à grandiosidade da obra que escreve. Ele desmerece o novo “livro”. Bento se entrega ao futuro Dom Casmurro como se estivesse a “assentar a mão para alguma obra de maior tomo”. Exercita-se pelo gosto do exercício, ou seja, para chegar a um dos projetos que tinha sacrificado: uma narrativa “menos seca que as memórias do Padre Luis Gonçalves dos Santos”. Para melhor entender a postergação da história dos subúrbios e o estopim da bomba que o narrador acende, basta atar os capítulos iniciais do romance à última e única frase que precede o vocábulo FIM:
Vamos à História dos Subúrbios.
(Postergado e nunca realizado por Machado de Assis, a história dos subúrbios cariocas, um sucedâneo da obra do padre Luis Gonçalves (1767-1844), apelidado de Perereca, será encaminhado, se uma atitude preemptiva em crítica literária me for permitida, a outro carioca descendente de povo africano escravizado, Lima Barreto (1881-1922). Seu romance Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) é, sem dúvida, uma história menos seca e atual que a do padre setecentista.)
A nós compete analisar o contraste entre o final de Dom Casmurro/e/de Machado e o da Recherche/e/ de Marcel. Vamos aos quatro, retomando Marcel onde o deixamos.
Um dos obstáculos que se apresenta a Marcel para se tornar romancista está em poder ocupar um lugar na República das letras francesas, dominada por Bergotte, ou seja, pelo romancista Anatole France. Só a posteriori é que a aclamação de Anatole France se torna plenamente (in)justificada. Há que se referir ao ano de 1924. Seu reinado é desmontado pela publicação do panfleto surrealista Un cadavre, com destaque para o texto de Louis Aragon, “Você já deu uma bofetada num morto?”. Já em carta ao poeta Carlos Drummond, Mário de Andrade decreta o caráter pernicioso dos ensinamentos de Anatole junto aos jovens modernistas. Cito Mário a traçar o negacionismo de Anatole: “Foi grande? Foi. Foi talvez mesmo genial nalgumas páginas. Pouquinhas, graças a Deus. Foi elegante, fino, sutil? Foi, foi, foi. Mas também foi filho-da-puta, porque as grandezas que engendrou não bastam pra pagar um só dos males que fez”.
A escrita literária propriamente autoral não ocorre imediatamente a Marcel Proust. Como assinalado, ela só ganhará forma no desejo de o escritor se entregar a um récit de lembranças da infância, que se afirme em transgressão à produção de seu tempo e à tradição da narrativa francesa, ou seja, ao já-escrito pelos romancistas colaboradores da Nouvelle Revue Française, publicados pela editora Gallimard. Aproveito a deixa para acrescentar aos escritores franceses citados, Patrick Modiano, o último deles em ordem cronológica. O Nobel recebido por ele em 2014 fecha o centenário da transgressão proustiana e reabre a tradição do récit como pastagem ideal para a atual literatura de mercado.
Não é por mero choque entre personalidades fortes da cena parisiense que, em 1912, o manuscrito do primeiro tomo de À la recherche du temps perdu é rejeitado pela Gallimard e publicado em 1914 pela editora Grasset.[nota 2] Tampouco é por casualidade que a resenha mais insensível e mais dura ao primeiro tomo do romance de Proust – a ser esmiuçada por nós na versão final deste esboço − seja escrita por um companheiro das aventuras norte-africanas de André Gide, Henri Ghéon,[nota 3] e publicada na Nouvelle Revue Française.
Para que a promessa não fique abstrata, cito um curto trecho da resenha publicada em janeiro de 1914. Fica manifesto que Marcel não se encaixa na editora então em destaque e entre os romancistas por ela publicados. Marcel transgride a retórica e a lógica assentadas do récit:
Em vão buscaríamos juntar os primeiros sonhos de uma criança às aventuras de Marcel Swann com Odette de Crécy, só conhecidas por Marcel Proust passada sua infância, mas que ele intercala sem razão palpável na narrativa entre suas caminhadas de verão em Combray e suas distrações na avenida dos Champs-Elysées. Quem fala [quem narra, para ser preciso] ora tem sete anos, ora quinze, ora trinta. Mistura os acontecimentos e as idades. Sua lógica não é a nossa, não é! Também seu livro não é um romance nem um récit nem mesmo uma confissão. É uma “soma”, a soma de feitos e de observações, de sensações e de sentimentos, a mais complexa que o presente nos entrega.
Em comentário (ainda apressado) ao julgamento de Ghéon, releiamos as palavras recentes de Antoine Compagnon, em epígrafe, e lembremos que, por ironia da sorte ou, como diz Brito Broca, da “vida literária”, André Gide, impecável nos seus récits, escreve um único e intratável romance, Os moedeiros falsos (1925), que passará à história da literatura francesa como “romance-soma”, a retomar a expressão negativa do amigo Ghéon em 1914.
Note-se, finalmente, que o futuro projeto literário autoral de Proust tampouco se ampara na entrega a uma escrita literária mimética, e estou me referindo ao esforço exaustivo e infindável de pastiches que faz dos autores clássicos franceses. Escritos em 1908, mas só reunidos e publicados em 1919 (em Pastiches et mélanges), os seus vários exercícios tratam do mesmo tema, a possibilidade de se fabricar um diamante em laboratório, um diamante “falso” portanto. Cada pastiche se concentra apenas na imitação do estilo de cada um dos nove autores clássicos franceses selecionados (Balzac, Flaubert, Goncourt, Saint-Simon etc.). No prefácio ao volume citado, Proust facilita nossa tarefa. Define o significado do pastiche, classificando-o como escrita literária não autoral: “Ainda que ao se dar a menor explicação ao pastiche, corre-se o risco de diminuir seu efeito, lembro, para evitar ferir legítimos amores-próprios, que é o escritor pastichado que deve falar, não só em harmonia com seu espírito, mas na linguagem de seu tempo” (grifo meu).
A consciência da quebra de contrato (com a terceira pessoa no caso de Machado e com a primeira no caso de Marcel, reitero) é, pois, racional e programada em Machado, uma peça de ex-seminarista ou de advogado, e espontânea e intempestiva em Marcel. Em ambos os livros, finalmente, a transgressão é parentética e formidável.
Simplificadamente, está insinuado um notável contraste entre Machado e Marcel, que poderá dar início à lista das diferenças que identificam e reconhecem numa e na outra escrita literária a originalidade no tratamento da memória. Já no prefácio de Contre Sainte-Beuve, Proust deixa claro sua posição antagônica à exigida por Machado de Assis do seu narrador (e do seu leitor). Cito Proust: “Cada dia atribuo menos valor à inteligência. Cada dia percebo melhor que é só fora dela que o escritor pode novamente reassumir alguma coisa de nossas impressões, isto é, alcançar algo de si mesmo e a matéria única da arte”. Ele também afirmará que a Recherche “não é em nível algum uma obra de raciocínio”, “seus elementos mínimos me foram fornecidos pela minha sensibilidade, já que eu os percebi primeiramente no fundo de mim mesmo, sem os compreender, passando por dificuldades ao convertê-los em algo de inteligível, como se tivessem sido tão estranhos ao mundo da inteligência quanto, como dizer?, um motivo musical”.
Já assinalamos que, em Dom Casmurro, a frase a preceder a palavra FIM − “Vamos à História dos Subúrbios” – é que desmerece o tom sublime alcançado pela genialidade do autor carioca e, ao mesmo tempo, o desmonta. Novo descentramento. Agora a questionar a atmosfera grandiosa que os admiradores de Proust arquitetam para garantir pompa e circunstância ao dia fatídico em que, por coincidência divina, se dá por finalizada a obra-prima francesa e expirada a vida do autor. Esse duplo e coincidente FIM heroico de Marcel e de Em busca do tempo perdido se baseia em informação de Céleste Albaret, a governanta do francês. Escreve ela que, na manhã do dia em que Proust virá a falecer, o narrador tinha escrito a palavra FIM em seu romance. Cito-a citando Proust: “Mon oeuvre peut paraître. Je n’aurai pas donné ma vie pour rien” (“Minha obra pode aparecer. Não terei dado a minha vida por nada”). A morte precoce e trágica de Marcel libera a obra-prima redentora à humanidade.
A sobrevida do herói Bento Santiago será, como o seu nascimento, também fictícia, mas, como assinalamos, um tanto bizarra. Detenho-me apenas no herói do romance (a sobrevida do autor Machado será certamente mais trágica que a de Marcel. Aos últimos anos da sua vida dediquei um romance). Restrinjo-me, pois, à sobrevida da própria obra literária, tal como figurada por seu narrador. Já assinalamos que, inicialmente, tinha descartado o projeto de escrita da História dos Subúrbios, mas o trará de volta na frase derradeira do romance. Em trânsito para o dia seguinte e para a nova obra, o Bento Santiago não vê demérito em desconstruir na frase final do manuscrito o tom sublime alcançado. Sorrateiramente, ele re/abre a fresta em branco de folha de papel na escrivaninha, agora para – contraditoriamente − favorecer o retorno da terceira pessoa, em narrativa histórica, não literária e de valor restrito.
O narrador/protagonista Bento julga necessário enjeitar o grand finale da obra-prima que escreve. A frase final de Dom Casmurro desvaloriza o produto brasileiro, que deveria ser bem valorizado em virtude da sua excepcionalidade. Torna-se, portanto, correto afirmar que não havia pedestal para o romance Dom Casmurro, já que o seu autor só estaria sendo legitimado se ele se julgasse um insuspeito rastaquera,[nota 4] para retomar o galicismo que por sorte nossa se perdeu nos idos da belle époque brasileira.
O admirador de Machado de Assis sabe que a atitude do Bento e a astúcia da frase final estão a re- ativar – por cima das duas décadas finais do século XIX – atitude e astúcia semelhantes em obra-prima anterior, Memórias póstumas de Brás Cubas. Deste, lembremos o texto da dedicatória e as últimas palavras do capítulo final, Das negativas. Na dedicatória, o fim do romance substitui os leitores que consagram aos vermes que roem: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. E o legado cultural, que a obra representa, se desvaloriza pela sua aproximação ao legado humano do narrador: “[…] ao chegar a este outro lado do mistério [da vida], achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Natural que o narrador em primeira pessoa de Dom Casmurro dê as boas-vindas ao Ele da narrativa histórica postergada. Para tal, conta com a companhia do leitor (“vamos”), escondendo-se, no entanto, por detrás de um enigmático sorriso voltairiano. Vida do herói e obra literária deslocam definitivamente a matriz europeia e desnorteiam a sublime transcendência da vida e da arte, alcançada por Proust, ao (quase) nada. Criam um tempo e um espaço em pequeno para a obra-prima do escritor descendente de povo diaspórico e escravizado. Tempo e espaço em pequeno, mas neles sobrevive um ser humano em nada ressentido e, por isso, contraditoriamente bem-humorado e autoirônico.
O niilismo do escritor brasileiro oscila entre a indiferença ao absoluto atingido e o autossarcasmo. Unidos e paradoxais, são eles que amparam o objeto artístico acabado e desabonado pela linha evolutiva – sem quebra – da tradição “universal”, e que é roído pelo verme do cemitério e legado em desequilíbrio eterno à humanidade. Sabe Machado – e sabemos nós, os seus poucos admiradores – que, no cânone da literatura ocidental, o romance Dom Casmurro sobreviverá em condição de semianonimato. Sempre à espera do significado potente que, além das fronteiras nacionais, lhe é sempre poupado e até negado.
O biógrafo Richard Ellmann nos informa que James Joyce, quando perguntado sobre o que escreveria depois dos 15 anos de dedicação à Finnegans Wake, teria respondido: “I think I’ll write something very simple and very short” (“Acho que vou escrever algo muito simples e muito curto”).
***
Nota final: Em 1948, Augusto Meyer fez acompanhar a primeira tradução pela Editora Globo do primeiro tomo de Proust de um documento imperdível, Notas para uma leitura de No caminho de Swann. Meyer escreve verbetes que definem personagens e temas da obra. No verbete ciúme, nota-se o dedo do leitor de Machado de Assis. Transcrevo: “A admirável análise da paixão de Swann atinge a expressão mais intensa quando depois das primeiras ilusões começa a descobrir o passado de Odette, suas aventuras de cocotte […]. Aparece então um dos temas psicológicos de Proust, o ciúme, cujo desenvolvimento no segundo capítulo de No caminho de Swann é apenas uma versão ainda incompleta da análise pungente e magistral do mesmo tema em La prisonnière e Albertine disparue”. Cito Meyer para confessar também o limite da minha leitura, antes que algum aventureiro o faça.
Notas
[nota 1]. Destaco em Uma literatura nos trópicos um ensaio datado de 1970 que precede o atual. Refiro-me a Eça, autor de Madame Bovary, no qual estão evidentes o anacronismo e a homogeneidade na escolha dos objetos artísticos em contraste, sustentado que fui então pela imaginação teórica de Jorge Luis Borges e do seu conto, Pierre Menard, autor del Quijote. Esse ensaio se complementa, no mesmo volume, por outro, Retórica da verossimilhança.
[nota 2] O artigo O elo perdido de Proust, publicado na revista Piauí, em outubro de 2011, faz um bom resumo das motivações assentadas sobre a publicação do primeiro tomo na editora Grasset. Disponível em: piaui.folha.uol.com.br/o-elo-perdido-de-proust/
[nota 3] Alan Sheridan, biógrafo de André Gide, diz que Henri Ghéon “era o companheiro de Gide em incontáveis façanhas homossexuais e o seu amigo mais próximo”. Eles se conheceram em 1887, e Gide se torna guia literário e amigo íntimo de Ghéon até a morte deste. Em carta a Jacques Boulanger (18/4/1921), Proust é sutil e exato na caracterização do colega de letras: Sur Ghéon, je ne suis pas suffisamment averti (ni inverti, ni converti) [“Sobre Ghéon, eu não estou suficientemente informado (nem invertido, nem convertido)”]. O jogo de palavras que se expressa por três predicativos do verbo ser, em insuficiência relativa, distingue um do outro.
[nota 4] A língua portuguesa no Brasil se apropriou das palavras meteco e rastaquera, de sentido pejorativo na França moderna, para caracterizar o “viajante” brasileiro que não chega a adquirir a formação adequada à boa apreciação dos autênticos e inimitáveis “produtos” franceses. Cito o diplomata Gilberto Amado (1887-1969): “[…] comecei naturalmente a deleitar-me com as obras-primas da cozinha francesa. Subira eu já a razoável nível de aptidão para opinar com conhecimento de causa, e não aproximativamente como rastaquera ou meteco, sobre molhos, condimentos” (grifo meu). Da cozinha à literatura, um passo.