A luta pelo Despejo Zero, apesar do veto de Bolsonaro

Frente ao aumento de sem-teto no país, presidente veta projeto de lei que proíbe remoções e despejos forçados na pandemia. Movimentos sociais se articulam para pressionar o Congresso a derrubá-lo. ONU aponta violação do Direito à Moradia

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Por Karla Maria, na Signis Brasil

Pandemia, desemprego, diminuição de renda e falta de políticas públicas de moradia levaram o Brasil a um cenário de desespero para mais de 14 mil famílias em todo o país. “Tenho duas meninas, uma de 12 e uma de seis anos. Estou grávida de sete meses e estou com pneumonia em repouso, solteira e desempregada. Preciso muito de doação de leite, biscoito e cesta básica. Se alguém puder me doar alimentos por favor me chama”, escreveu Maria José Mirandaem sua rede social em agosto deste ano.

Ex-moradora no bairro Eldorado em Contagem (MG), ela e suas crianças foram despejadas por falta de pagamento de aluguel. Assim como Maria, outros 14,8 milhões de desempregados enfrentam dificuldades para manterem as contas, a vida. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o aumento da inadimplência coincide com este recorde de desemprego no Brasil, o aprofundamento da pandemia e o corte no auxílio oferecido pelo governo federal, que agravou a dificuldade financeira da população.

Para tentar evitar que famílias sejam postas nas ruas, movimentos e organizações sociais criaram a Campanha Despejo Zero com o objetivo de sensibilizar os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo sobre o tema que Elizeu Afonso Monteiro, 66 anos, conhece bem. Há três anos ele oferece alimentação para pessoas em vulnerabilidade social e nos últimos meses acolheu em sua própria casa famílias que foram despejadas.

“Foi um casal jovem que estava em situação difícil. Ficaram dois meses aqui em casa. Não me pagavam nada, ao contrário. Eles tinham uma criança de dois anos, mas não conseguiram arrumar emprego e foram embora daqui também”, contou Monteiro, que semanalmente distribui 700 marmitas pela Vila das Belezas, Capão Redondo, Socorro e Santo Amaro.

“Entregamos marmitas em ocupações com haitianos também. Nossas comunidades têm muitas famílias com dificuldades de pagar aluguel”, conta o paraibano, que faz parte do projeto “Sopão do Elizeu”, da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, Vila das Belezas, Diocese de Campo Limpo.

A paróquia agrega outras cinco comunidades que socorrem com alimentação uma ocupação de haitianos com cerca de 20 pessoas. “Na ocupação há famílias recém-chegadas que não falam português e, por isso, temos uma dificuldade de comunicação. Há crianças também. Em nossas comunidades as famílias enfrentam dificuldade para pagar aluguel. Estamos entregando cestas para algumas”, contou Rinaldo Santos, membro da paróquia.

“Nos últimos meses, em plena pandemia de Covid-19, governos, Judiciário e proprietários insistem em desabrigar famílias por todo o Brasil. São sem-teto, sem-terra e locatários que são removidos de suas moradias, muitas vezes com força policial. […] Precisamos encontrar soluções que garantam o direito à moradia das comunidades ameaçadas, das pessoas em situação de rua, e também se faz necessário avançar na demarcação e respeito aos territórios indígenas e quilombolas”, escreveu a campanha em nota publicada em seu lançamento, em 23 de julho de 2020.

Um ano depois, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) impediu uma das soluções que poderiam mitigar o sofrimento de tanta gente nestes tempos de crise econômica e pandemia. Bolsonaro vetou integralmente o Projeto de Lei (PL) 827/2020 que proibia despejos e remoções forçadas até 31 de dezembro. A proposta, que tinha sido aprovada pela Câmara e pelo Senado Federal, foi rejeitada em despacho publicado em 5 de agosto do Diário Oficial da União (DOU). A alegação foi de que “embora seja meritória a intenção do legislador”, o PL “daria um salvo-conduto para os ocupantes irregulares de imóveis públicos, os quais frequentemente agem em caráter de má-fé e cujas discussões judiciais tramitam há anos”.

ara Bolsonaro, a suspensão dos despejos “ensejaria danos patrimoniais insuscetíveis de reparação” e “danos ambientais graves”. O despacho segue com o governo apontando “descompasso” do PL com o “direito fundamental à propriedade”. O que, afirma, “agravaria a situação dos proprietários e dos locadores”. “Assim, a paralisação de qualquer atividade judicial, extrajudicial ou administrativa tendente a devolver a posse do proprietário que sofreu esbulho ou a garantir o pagamento de aluguel impactaria diretamente na regularização desses imóveis e na renda dessas famílias de modo que geraria um ciclo vicioso, pois mais famílias ficariam sem fonte de renda e necessitariam ocupar terras ou atrasar pagamentos de aluguéis”, argumenta o governo.

Função social da propriedade

O que Bolsonaro parece ignorar é que no caso dos imóveis alugados, o projeto de lei estabeleciaa proibição a despejos de aluguéis de até R$ 600 para imóveis residenciais e de até R$ 1,2 mil para imóveis não residenciais, obrigando a família ou pessoa locatária a demonstrar a mudança de sua situação econômico-financeira e sua incapacidade de pagamento do aluguel e demais encargos sem prejuízo da subsistência familiar.

Em nota, a Campanha Despejo Zero avaliou o veto do governo Bolsonaro como um ato criminoso. “Bolsonaro deliberadamente coloca em risco a vida de milhares de famílias que vivem em ocupações e outras que não estão com condições de pagar aluguel de suas moradias, demonstrando mais uma vez que seu projeto de governo é de extermínio da população pobre do país”. 

O veto presidencial ainda pode ser derrubado no Congresso e os movimentos sociais já preparam uma articulação junto aos autores da proposta para defender a decisão do Legislativo. “Lutar contra os despejos é lutar pela vida de milhares de pessoas! Nossa luta continua”, endossa a Campanha Despejo Zero. 

Para Erminia Maricato, professora aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), uma das principais referências no debate sobre a questão urbana no Brasil, a questão da moradia – feita de modo informal no país por mais da metade da população – precisa ser enxergada sob o ponto de vista da legislação na qual a propriedade tem uma função social.

“Nós não controlamos a terra. É muito investimento público sem controle da terra e, apesar de a nossa legislação prever a função social da propriedade, nós nunca interferimos nesse direito de propriedade para aplicar a lei no Brasil”, disse durante a 3ª Edição do Café com Fé, promovida pela Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário, da Arquidiocese de Belo Horizonte (MG).

O direito à propriedade, à sua função social e o acesso aos direitos básicos, como terra, teto e trabalho está no cerne da Doutrina Social da Igreja, e o papa Francisco sempre ressalta isso. “A justa distribuição dos frutos da terra e do trabalho humano não é mera filantropia. É um dever moral. Para os cristãos, o encargo é ainda mais forte: é um mandamento. Trata-se de devolver aos pobres e às pessoas o que lhes pertence. O destino universal dos bens não é um adorno retórico da doutrina social da Igreja. É uma realidade anterior à propriedade privada. A propriedade, sobretudo quando afeta os recursos naturais, deve estar sempre em função das necessidades das pessoas. E essas necessidades não se limitam ao consumo. Não basta deixar cair algumas gotas, quando os pobres agitam este copo que, por si só, nunca derrama. Os planos de assistência que acodem certas emergências deveriam ser pensados apenas como respostas transitórias, conjunturais. Nunca poderiam substituir a verdadeira inclusão: a inclusão que dá o trabalho digno, livre, criativo, participativo e solidário”, disse o pontífice em 9 de julho de 2015 ao participar do 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia.

O papa continuou. “Neste caminho os movimentos populares têm um papel essencial, não apenas exigindo e reclamando, mas fundamentalmente criando. Vós sois poetas sociais: criadores de trabalho, construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado global”.

Como poetas sociais, militantes dos movimentos, das pastorais sociais e a própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) têm exercido um papel fundamental na busca de soluções para tamanha demanda. “Nenhum despejo nesse tempo desafiador. A casa de cada um é muito importante para sua segurança e proteção. É inaceitável que famílias padeçam da falta de abrigo nesse tempo de pandemia, por isso a CNBB reafirma o que apresentou no Observatório de Direitos Humanos: nenhum despejo no tempo da pandemia”, clamou o arcebispo de Belo Horizonte e presidente da Conferência, dom Walmor Oliveira de Azevedo, em vídeo distribuído por todo o país.

Na verdade, neste vídeo dom Walmor reafirmava a postura da CNBB apresentada em dezembro de 2020 durante reunião do Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário, na qual defendia a suspensão de desocupações de imóveis no contexto da pandemia de Covid-19. A mesma proposta, segundo a assessoria de imprensa da CNBB, partiu da consideração feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em março de 2020, de que “nestas circunstâncias específicas, medidas que restringem o movimento de pessoas podem ser temporariamente úteis”.

Assim, a CNBB propôs ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, “no âmbito de suas competências, recomende providências aos órgãos do Poder Judiciário no sentido de suspender o cumprimento de mandados coletivos de desocupações de imóveis urbanos e/ou rurais até a ocorrência efetiva de imunização social, por meio de vacina e/ou remédio, da população brasileira, especialmente daquelas pessoas mais vulneráveis e atingidas pelas ordens de despejos coletivos, independentemente do esgotamento da vigência da Lei n° 13.979, de 6 de fevereiro de 2020”.

Ao que tudo indica, tanto a Campanha Despejo Zero quanto a postura da CNBB causaram impactos efetivos no Judiciário. Em março de 2021, o CNJ, presidido pelo ministro do STF, Luiz Fux, recomendou em ofício aos órgãos do Poder Judiciário a adoção de cautelas quando da solução de conflitos que versem sobre a desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais durante o período da pandemia.

O presidente do CNJ ressaltou que a medida é a primeira contribuição concreta do Observatório dos Direitos Humanos. “Se levados a cabo sem o devido cuidado (os despejos)podem contribuir para a formação de aglomerações desordenadas, que certamente frustrarão a adoção das medidas sanitárias que visam a evitar o recrudescimento da pandemia”.

Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo, em meio à pandemia de Covid-19, o número de ações com pedido de despejo aumentou 79%. Os movimentos sociais ainda contabilizam outras 84.092 famílias ameaçadas de despejo pelo país, uma realidade vivenciada por pelo menos 400 mil pessoas. 

Apoio das Nações Unidas

Em reação ao veto do presidente Jair Bolsonaro, parlamentares da oposição e o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, deputado Helder Salomão (PT-ES), recorreram à Organização das Nações Unidas (ONU) pedindo apoio ao fim das remoções. Em resposta, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) na América do Sul e o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) no Brasil enviaram uma carta de apoio aos projetos de lei que visam a garantir o direito à moradia durante a pandemia.

“O Projeto de Lei n° 1.975/2020 e o artigo 9º da Lei 14.010/2020 contribuem para intensificar a atividade jurisdicional e administrativa necessária para alcançar o objetivo final da devida proteção às pessoas em situação de vulnerabilidade ante as ações de despejos e remoções no país, tendo em vista que o direito à moradia deve ser considerado tema central em qualquer resposta à pandemia”, diz um trecho da carta.

Pesquisa realizada junto à Câmara dos Deputados revela que foram apresentados 26 projetos de lei sobre despejos durante a pandemia de Covid-19. Apenas 12 estão em tramitação.

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