Judith Butler propõe “não-violência agressiva”

Em A força da não violência, filósofa evoca o compromisso com a “igualdade radical”: nenhuma vida vale mais do que outras. De Cristo à Gandhi, Fanon e Freud, uma investigação acadêmica por um possível – mas não absoluto – guia pacifista

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Por Ryan Di Corpo, no America, traduzido pelo IHU

Como definimos a violência? A guerra é inevitável? O que nos motiva a preservar a vida de outra pessoa? A não violência é fútil?

Perguntas como essas aparecem com frequência em “The Force of Nonviolence: An Ethico-Political Bind” [A força da não violência: um vínculo ético-político, em tradução livre], a mais recente obra da famosa teórica de gênero e filósofa social Judith Butler.

Defendendo um tipo de não violência agressiva, ou de “formas de resistência não violentas [que] podem e devem ser buscadas agressivamente”, Butler une uma campanha contra a violência a uma campanha contra a desigualdade social.

Depois de consultar uma gama diversificada de filósofos, sociólogos e psicanalistas, Butler afirma que, por meio de um entendimento da interdependência – o modo pelo qual todas as pessoas estão conectadas e dependem umas das outras – podemos entender a importância de preservar a vida das outras pessoas.

Ela afirma que seu objetivo é apresentar como a não violência “emerge como um conceito significativo precisamente quando a destruição é mais provável ou parece mais certa”.

Butler não faz sua argumentação em favor da não violência agressiva – assim como aquilo que Albert Einstein definiu como “pacifismo militante” – a partir de um ponto de vista inerentemente religioso ou espiritual.

Seus argumentos se movem dentro de um marco secular, talvez mais universalmente acessível. No entanto, mesmo assim, suas explorações filosóficas podem entrar em diálogo com o pensamento religioso (Gandhi é mencionado várias vezes).

Como uma obra de filosofia, “A força da não violência” pode ser uma leitura desafiadora – frases longas, temas que se cruzam, terminologia difícil. Mas isso é de se esperar, especialmente quando uma questão-chave como “violência”, o tema do livro, escapa de uma definição clara.

“Primeiro, o fato de ‘violência’ ser usado estrategicamente para descrever situações que são interpretadas de maneira muito diferente sugere que a violência é sempre interpretada”, escreve Butler. Ela inclui “estruturas ou sistemas sociais” em sua definição de violência, comentando posteriormente sobre como os governos e o Estado podem distorcer as definições de violência para defender atos de guerra e oprimir ainda mais as comunidades marginalizadas.

Em uma nota de rodapé, ela faz referência à definição de Estado dada pelo sociólogo do século XIX Max Weber: “Uma comunidade humana que (com sucesso) reivindica o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território”.

Importante para a discussão de Butler sobre a não violência é o conceito de “possibilidade de luto” [grievability], explorado anteriormente em seu livro de 2009, intitulado “Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?” (Ed. Civilização Brasileira, 2015). Para Butler, uma vida que é passível de luto é uma vida considerada valiosa; a possibilidade de luto também se estende às vidas valorizadas dos viventes.

Mas, ao longo da sua obra, Butler demonstra como o racismo e as “lógicas de guerra” decidem que as vidas de algumas pessoas são mais importantes do que outras (como as comunidades minoritárias). Vidas não consideradas como passíveis de luto são tornadas dispensáveis, expulsas da sociedade, rotuladas como indignas de defesa.

Butler convoca o filósofo político nascido na Martinica, Frantz Fanon, que, em “Black Skin, White Masks” [Pele negra, máscaras brancas, em tradução livre], descreve o sentimento de ser visto como “o Outro”.

“No mundo branco, o homem negro encontra dificuldades no desenvolvimento do seu esquema corporal. A consciência do corpo é apenas uma atividade negadora”, escreveu Fanon. Portanto, Butler afirma que a não violência deve incluir um compromisso com a “igualdade radical”, em que nenhuma vida valha mais do que outras.

Resta uma pergunta: os seres humanos são inerentemente violentos? Butler rejeita a ideia de um estado comum da natureza humana e, de todos os modos, observa que Thomas Hobbes não considerava tal estado como um ideal. “O estado da natureza era para [Hobbes] uma guerra, mas não uma guerra entre estados ou entre autoridades existentes. Pelo contrário, era uma guerra travada por um indivíduo soberano contra outro – uma guerra, poderíamos acrescentar, de indivíduos que se consideravam soberanos”, escreve ela.

Butler também volta sua atenção para Sigmund Freud, uma presença consistente nesse livro. Freud argumentou que o pacifismo faz parte da nossa “natureza orgânica” e que, através da educação, podemos renunciar à “destruição da vida orgânica que a guerra implica”.

Mesmo assim, Butler não se opõe à intervenção violenta em algumas circunstâncias e não considera a não violência como “um princípio absoluto”. Ela argumenta que a não violência não é o mesmo que o amor e que não precisamos amar os outros a fim de adotar uma posição pacifista.

Isso pode ser verdade, dependendo da construção do amor de cada um. Certamente, não é necessário, nem humanamente possível, ter um profundo e emotivo amor por todas as pessoas, especialmente aquelas que não conhecemos.

Mas, se o amor significa “desejar o bem do outro”, em sentido tomista, então certamente esse seria um pré-requisito para um ethos não violento baseado na “igualdade radical”. Na ética cristã, uma ética que certamente promove a não violência como uma resposta necessária aos ensinamentos de Cristo, um amor radical não é apenas uma característica essencial, mas também é o método pelo qual essa não violência é possível.

Além de fornecer uma investigação acadêmica e embasada e uma defesa da não violência, a obra de Butler também atua como um guia de recursos para o pensamento pacifista. Ela não se esquiva de abordar as preocupações políticas atuais, incluindo a retórica xenófoba que demoniza os solicitantes de asilo e promove barreiras entre as nações – formas institucionais de violência, segundo a definição de Butler.

Embora o livro permita discordâncias, ele também pode ser lido como um chamado à ação, um cri de coeur intelectual que, em vez de aceitar a realidade atual, sugere uma transformação da realidade para a melhoria da sociedade.

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