Ithaka: Assange e sua hercúlea luta por liberdade

Em 31/8, estreia o documentário sobre o jornalista que revelou crimes de guerra e as democracias esvaziadas. Filme mostra os bastidores da luta de sua família e as campanhas para libertá-lo, diante de sua possível deportação para os EUA

São Paulo (SP) 28/08/2023 – Pai do ativista Julian Assange, John Shipton, durante entrevista pata divulgar o documentário Ithaka.A obra mostra o trabalho de Shipton na tentativa de libertar seu filho, preso na Inglaterra desde 2019. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
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Por Adriana Coelho Saraiva, no GGN

Inicia-se nessa semana, em várias cidades do território nacional, a fase final da campanha pela libertação de Julian Assange, ativista australiano preso agora em Londres, aguardando o último estágio de seu recurso à Suprema Corte inglesa, contra sua extradição para o Estados Unidos. Assange é o responsável pelo Wikileaks e transformou-se em figura mundialmente conhecida quando tornou públicos, em convênio com inúmeros veículos da mídia corporativa global, uma série de documentos sigilosos do governo estadunidense, naquele que se tornaria um dos maiores escândalos que afetariam o país.

Integrante de uma geração que trazia em seu DNA uma militância ciberativista contracultural, já em 2013 Assange alertava, em livro escrito em parceria (Cyberpunks – Liberdade e o futuro da Internet), para a transformação do meio digital, até então considerado por muitos como essencialmente libertário:

“A Internet, nossa maior ferramenta de emancipação, está sendo transformada no mais perigoso facilitador do totalitarismo que já vimos,” diz o texto clarividente. Assange prevê, assim, uma futura onda de repressão na esfera on-line que poderia transformar a internet em uma ameaça aos direitos fundamentais da pessoa.

Voltando ao filme sobre a luta de Assange por sua vida e liberdade, impressiona a ideia que transmite sobre o que significa ser alvo da ira do Império. Quando tem seus interesses contrariados, o império não economiza esforços para esmagar aqueles que se atrevem a enfrenta-lo, sob qualquer forma ou pretexto.

Assange vive essa luta de Davi contra Golias há pelo menos 10 anos, desde que divulgou as imagens que comprovavam os crimes de guerra estadunidenses no Afeganistão e Iraque, bem como nas celas de Guantánamo. Nessa luta, amparado pela companheira, que é também sua advogada, Assange é atacado por todos lados a partir de sistemas jurídicos nacionais subservientes à lógica do império. Assange trava também uma batalha profunda contra o peso de uma depressão quase inexorável, esforço que o torna ainda mais admirável em sua resistência.

Ver o filme que lança uma última campanha contra a perseguição injustificável de uma potência que se propala “democrática” contra a divulgação de fatos verídicos – crimes de guerra, é bom frisar – e seu divulgador – jornalista, é um soco no estômago. Pode-se dizer que se esse último intento não obtiver êxito, muito estará definitivamente perdido, ou seja, não haverá ninguém que se atreva a enfrentar o risco de divulgar informações sobre Estados poderosos, tudo sob a chancela de uma suposta justiça democrática. A vítima mais imediata, após Assange, será a própria sociedade estadunidense, que assumirá o aprisionamento definitivo de sua imprensa aos tentáculos do poder do Estado.

Ampliando o foco (e como a terra é redonda e os problemas se encontram), é possível também detectar as imensas contradições que os ditos sistemas democráticos contemporâneos projetam em todos os níveis e direções, promovendo uma sensação de verdadeira desorientação. Precisamos repensar que conceitos de democracia são esses que ora contrapomos ao autoritarismo repulsivo que nos assola nos tempos presentes, pois, em alguma medida, as práticas de ambos os lados são muito semelhantes e se confundem no horizonte.

É preciso sair da armadilha maniqueísta em que nos encontramos e realizar uma crítica profunda e corajosa a esse mundo, instituições e práticas que chamamos de “democráticos” – e isso também inclui nossos próprios processos políticos em terreno brasileiro – sob pena de empurrar o resto da sociedade (nacional e global) para os braços do autoritarismo assumido e indiferenciado. Eis o desafio que se apresenta a todos nós que prezamos e lutamos por um mundo – onde caibam muitos mundos democráticos.

Adriana Coelho Saraiva é doutora em Ciências Sociais pela UnB

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