Israel em crise, Palestina em chamas

Operações na Cisjordânia desencadearam nova rodada de ataques e retaliações. Teme-se escalada de conflitos. Enquanto isso, ameaça autoritária ronda a população israelense. Envolver-se em nova guerra seria a cortina de fumaça de Netanyahu?

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Por Thiago Rodrigues e Karime Cheaito, na Le Monde Diplomatique Brasil

Algo de novo no front?

Os recentes ataques das Forças de Defesa de Israel na Cisjordânia foram considerados os mais mortais no conflito israelense-palestino desde agosto de 2022, quando três dias de ataques consecutivos deixaram pelo menos 49 palestinos mortos, entre combatentes e civis, incluindo dezessete crianças. Seis meses depois, em 26 de janeiro, nove palestinos – incluindo uma mulher idosa – foram mortos em Jenin, cidade no norte da Cisjordânia ocupada, durante ataques aéreos e disparos de foguetes realizados pelo Exército israelense como parte de uma operação contra ativistas islâmicos no campo de refugiados dessa cidade. Calcula-se que outras vinte pessoas tenham ficado feridas.

De acordo com o Exército israelense, o ataque matinal ao campo de refugiados em Jenin foi uma “operação antiterrorista” visando a atingir membros da organização Jihad Islâmica que, segundo o ministro da Defesa de Israel Yoav Gallant, planejavam atacar Israel. O atual ministro da Segurança Nacional de Israel Itamar Ben-Gvir, do partido de extrema-direita Otzma Yehudit (Poder Judaico), elogiou as forças israelenses pela ação, declarando: todos que tentem “prejudicar nosso pessoal [das forças de segurança] deverão saber que seu sangue será derramado”.

A reação do lado atacado foi quase imediata: no dia seguinte, um atirador palestino vitimou sete israelenses em uma sinagoga em Jerusalém Oriental. A retaliação, como sempre, não tardou. No mesmo dia, uma nova investida da Força Aérea israelense promoveu treze ataques sobre outro campo de refugiados – o de al-Meghazi – situado na área central da Cisjordânia.

A Autoridade Palestina (AP) denunciou o caso como “um massacre” e anunciou que encerraria a cooperação de segurança que havia sido retomada com Israel em novembro de 2020 (depois de ter sido interrompida em maio do mesmo ano), “à luz da repetida agressão contra o nosso povo e do enfraquecimento dos acordos assinados”, afirmou Nabil Abu Rudeineh, porta-voz da AP. Ele disse ainda que os palestinos planejam apresentar queixas ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao Tribunal Penal Internacional (TPI) e a outros órgãos internacionais sobre a violência de Israel.

Em meio ao aumento das tensões, os Emirados Árabes Unidos, a China e a França pediram ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) para se reunir a portas fechadas em 27 de janeiro. O encontro emergencial ocorreu e, embora tenham sido discutidos os ataques em Jenin, o foco da reunião passou para os ataques à sinagoga, que foi veemente condenado pelos quinze membros do Conselho presentes.

O bairro de al-Zaitoun, no sul da cidade de Gaza, também foi atingido pelos ataques aéreos do dia 27 de janeiro, assim como uma área a leste de Beit Hanoun, no norte de Gaza. As sirenes de ataque aéreo soaram no sul de Israel quando dois foguetes foram disparados contra o território israelense contíguo a Gaza. Essa ação foi reivindicada pela Jihad Islâmica Palestina, movimento apoiado pelo Irã e que está ativo em cidades importantes da Cisjordânia, como Nablus e Jenin, bem como em Gaza, onde coexiste com o poderoso Hamas.

De acordo com a Al Jazeera, os ataques israelenses de janeiro de 2023 acenderam o alerta sobre uma possível escalada das incursões militares israelenses no ano que se inicia. De acordo com os dados apresentados pela emissora, em 2022, mais de 170 palestinos, incluindo pelo menos 30 crianças, foram mortos na Cisjordânia ocupada e em Jerusalém Oriental. No entanto, somente neste começo de 2023 foram trinta palestinos mortos. Dentre as causas do aumento exponencial das mortes destaca-se a intensificação dos ataques noturnos realizados por Israel, particularmente as já citadas cidades de Jenin e Nablus, sob a justificativa de eliminar os centros da resistência armada palestina.

As operações, desde março de 2022, enquadram-se no âmbito da campanha chamada “Break the Wave” lançada pelo governo do primeiro-ministro Naftali Bennet. Essa campanha, de forma distinta às das imediatamente anteriores, fez uso intensivo de agentes policiais e militares infiltrados, numa cooperação concertada entre a Shin Bet (organização de contraespionagem de Israel) e a polícia israelense.

Diante dos acontecimentos de janeiro, pode-se entender que o retorno de Benjamin “Bibi” Netanyahu (Likud) ao cargo de primeiro-ministro, em 29 de dezembro de 2022, pareça não ter impactado as diretrizes gerais da atual fase de operações contra os grupos armados palestinos. Embora o governo Netanyahu afirme que tem como alvos os combatentes armados inimigos, o número de vítimas civis registrado demonstra que os ataques seguem atingindo palestinos de forma indistinta, com grande perda em vidas humanas e em infraestrutura das já precarizadas estruturas urbanas palestinas.

Em suma, a sequência de ataques entre 26 e 27 de janeiro de 2023 levanta o temor de que uma nova etapa do conflito, marcada por operações em grande escala, estaria para eclodir. Essa, no entanto, não foi a posição oficial do governo israelense no dia 27 de janeiro, quando um comunicado afirmou que a “onda de confronto terminou”. Contudo, essa declaração ocorreu antes do ataque palestino à sinagoga naquele mesmo dia. A partir de então, a conhecida roda dos ataques e retaliações começou a se mover, porém, como sempre, com uma disparidade visível entre as forças e armamentos utilizados, o que reaviva o debate sobre se a sequência de ataques e contra-ataques deveria ser, do ponto de vista estratégico-militar, classificada como “conflito” ou “guerra”.

Analistas e políticos palestinos concordam que a escalada dos ataques nos territórios palestinos deve intensificar-se em fevereiro e março, alertando sobre os planos de ocupação israelense para isolar os palestinos em suas áreas e ações militares visando a Mesquita de Al Aqsa, precisamente no mês sagrado do Ramadã que, neste ano, começa em 20 de março. Além disso, em 28 de janeiro de 2023, Netanyahu informou planos para facilitar a aquisição de armas de fogo por cidadãos israelenses, o que poderia contribuir para o aumento da violência perpetrada por civis israelenses contra civis palestinos na Cisjordânia ocupada e em Jerusalém Oriental.

Além de estarem inscritos na história dos confrontos e agressões no conflito Israel-Palestina, os acontecimentos do final de janeiro de 2023 precisam ser situados no contexto imediato do recém-formado governo em Israel. (Foto: Getty Images)

O Eterno Retorno

A situação atual reflete a recente escalada de ataques das Forças de Defesa israelenses contra territórios palestinos ocupados, iniciados em maio de 2021, em resposta às revoltas contra as tentativas de desocupação e deslocamento forçado de famílias palestinas que moram no bairro ocupado de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental. Os choques entre manifestantes e as forças de segurança israelenses naquela ocasião se alastraram por diversos territórios ocupados em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém. As já conhecidas e repetitivas cenas de militares israelenses em confronto com militantes do Hamas e de outros grupos palestinos voltaram a fazer arder as ruas e vielas da Faixa de Gaza sitiada.

Um ano depois, a jornalista palestina-americana Shireen Abu Akleh, da Al Jazeera, foi baleada na cabeça em Jenin enquanto cobria um ataque israelense, gerando outra onda de indignação – e de protestos violentos – em diversos países árabes. Seu funeral em Jerusalém Oriental foi marcado por confrontos entre os palestinos presentes e as forças israelenses. Em agosto de 2022, a Força Aérea de Israel bombardeou alvos em Gaza associados ao grupo Jihad Islâmica, durante um confronto de fim de semana que foi testemunha de centenas de foguetes da Jihad Islâmica lançados contra Israel, a maioria dos quais foram interceptados por sistemas de defesa aérea israelense.

Sendo assim, as operações militares que ocorreram no campo de Jenin em janeiro de 2023 fazem parte de uma escalada das tensões e das agressões militares israelense em andamento contra a Cisjordânia, especialmente direcionadas às cidades de Jenin e Nablus, gerando, consequentemente, um aumento das reações e da violência dos grupos armados palestinos. O Exército israelense, que ocupa a Cisjordânia desde 1967, realiza operações quase diárias por esses territórios, que reúnem alguns dos principais grupos armados palestinos. No campo de Jenin, que data de 1953 e abriga mais de 23 mil habitantes, segundo a Unrwa –  agência da ONU responsável pelos refugiados palestinos –, as paredes de alguns edifícios trazem as marcas históricas dos incêndios e das balas. São os registros de muitos confrontos gravados nas casas e nos corpos palestinos há mais de setenta anos.

A cortina de fumaça de Bibi?

Além de estarem inscritos na história dos confrontos e agressões no conflito Israel-Palestina, os acontecimentos do final de janeiro de 2023 precisam ser situados no contexto imediato do recém-formado governo em Israel, sob o comando, novamente, do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. A volta de “Bibi” ao poder não tem sido sem percalços, pois vem no bojo de anos de instabilidade política em Israel.

Logo nos primeiros dias do novo governo, um imenso protesto, com estimadas 110 mil pessoas, tomou as ruas de Tel Aviv, em uma das maiores demonstrações antigovernamentais em Israel nas últimas décadas. Tal manifestação de insatisfação popular abalou uma coalizão governamental considerada a primeira “estável” formada no país em três anos. O primeiro-ministro atribuiu papéis proeminentes a membros da extrema-direita israelense, incluindo Itamar Ben-Gvir, atual ministro da Segurança Nacional, e Bezalel Smotrich, que recebeu o controle do corpo do Exército israelense encarregado de administrar a Cisjordânia.

Dentre os principais motivos das manifestações contra o governo, destaca-se o repúdio às reformas jurídicas planejadas pela coalizão. Para a oposição, a proposta de reforma prejudicaria a independência judicial, fomentaria a corrupção, violaria os direitos de minorias e privaria os tribunais de Israel da credibilidade que ajuda a evitar acusações de crimes de guerra no exterior.

As mudanças buscadas pelo ministro da Justiça de Netanyahu, Arye Deri (membro do Shas, partido de ultradireita), despertaram o alarme entre os oponentes que as veem como uma “sentença de morte” para o sistema de freios e contrapesos de Israel e, portanto, da sua democracia. Uma das medidas defendidas pelo ministro é a possibilidade de que o Knesset (o Parlamento israelense) possa derrubar decisões da Suprema Corte.

Os críticos também afirmam que essas reformas visam a atender aos objetivos pessoais de Netanyahu, que está sendo julgado por corrupção e vem tentando controlar os juízes para evitar sua ida à prisão. O presidente de Israel, Isaac Herzog, alertou que o país enfrenta uma “crise constitucional histórica” sobre o contestado plano de reforma judicial e disse que estava fazendo a mediação entre as partes relevantes.

A crise institucional tem gerado tensões como a decisão da Suprema Corte, tomada no dia 18 de janeiro de 2023, de que Deri fosse destituído do cargo por causa de uma condenação anterior por fraude fiscal. Netanyahu não se manifestou sobre o caso, mas aliados próximos saíram em defesa de Deri com o argumento de que se trata de perseguição de uma Suprema Corte supostamente elitista e corporativa. Os argumentos das forças de extrema-direita israelenses contra a Suprema Corte não são estranhos aos levantados por outros grupos ou movimentos semelhantes em países como o Brasil, a Argentina e a Itália.

Como pano de fundo, a crise institucional israelense expõe a cada vez maior polarização entre distintas perspectivas ético-políticas no país. De um lado, forças sociais e políticas associadas ao campo “progressista”, defendendo valores liberais como o multiculturalismo, a solução política para o conflito israelo-palestino e os direitos de minorias. Do outro, posições ultranacionalistas, xenofóbicas, misóginas, homofóbicas, centradas em interpretações intolerantes do judaísmo e contrárias à causa palestina.

A “cara política” do novo governo tem gerado, também, preocupações no entorno israelense, tanto entre palestinos, como entre países árabes vizinhos, em especial, o Líbano. Isso acontece porque, além do histórico posicionamento de figuras como Itamar Ben-Gvir e o próprio Netanyahu, o governo declarou em seus primeiros dias direitos judaicos “exclusivos” a “todas as áreas” da terra, incluindo os territórios palestinos ocupados. Em declaração à Qatar News Agency (QNA), o escritor e analista político palestino Mustafa Ibrahim disse que o pior ainda está por vir e que as repercussões serão mais perigosas nos próximos dias, à luz do alerta de Ben-Gvir e das tentativas da ocupação de isolar os palestinos em suas áreas.

Dentre as propostas de Ben-Gvir, destacam-se o fortalecimento das forças policiais israelenses e o estabelecimento de uma Guarda Nacional, formada pela transferência de membros das forças existentes da Polícia de Fronteira para a Cisjordânia, pelo recrutamento de novos policiais e pela utilização de 10 mil soldados voluntários para “garantir a ordem e o combate a células terroristas”. Além disso, o governo proporá a promulgação de uma normativa para proteger e apoiar os soldados israelenses, isentando-os de responsabilidade em casos de ações violentas contra a população palestina.

Em síntese, a onda de violência de janeiro de 2023 é o desdobramento atual de um processo que se iniciou sob o governo da coalizão anterior e que tem se intensificado após o retorno de Netanyahu, que conta com a aliança com partidos ultranacionalistas que incluem na pauta do novo governo as suas conhecidas bandeiras pela expansão dos assentamentos na Cisjordânia e pela repressão intensa aos grupos armados palestinos. Avalia-se, portanto, que não seja coincidência o presente aumento da violência contra palestinos e a eclosão de ondas de manifestações populares que eclodiram em Tel-Aviv. Em um governo formado por coalizão entre direita e extrema-direita, o aumento das ações armadas em territórios ocupados e contra a Autoridade Palestina não chega a ser surpresa, pois faz parte da agenda política eleita. No entanto, a intensidade e a letalidade das ações do começo de 2023 acontecem tendo como pano de fundo uma instabilidade política em Israel que é particularmente severa.

Netanyahu teria, então, enveredado pela antiga tática adotada por governos em crise: envolver-se em uma guerra. No caso do conflito Israel-Palestina, logicamente, não se trata de fomentar uma “nova guerra”, mas de intensificar um conflito permanente que oscila, tão-somente, entre ondas de violência extrema e momentos de guerra de baixa intensidade. Se essa foi a intenção, pelo menos no plano internacional ela tem sido bem-sucedida.

Nos informes e reportagens dos principais meios internacionais, os ataques e contra-ataques entre israelenses e palestinos têm recebido maior atenção do que as demonstrações de insatisfação popular e o choque entre os poderes constitucionais israelenses. A “cortina de fumaça” de Netanyahu – composta pela fumaça dos incêndios e explosões provocada pelas forças em conflito – parece estar funcionando. Daí a importância de que a comunidade internacional esteja atenta ao que acontece sob a névoa da guerra.

Segundo a ONU, 2022 foi o ano mais letal para os palestinos desde 2006. Contudo, pelos dados deste ano que apenas começa, a probabilidade de um período extremamente mortal torna-se uma possibilidade real. Seguindo a lógica da recorrência entre violência e morte do conflito israelo-palestino, pode-se esperar mais sofrimento e dor dos dois lados, porém, com incidência – como costuma ser – muito mais intensa para lado palestino.

A novidade parcial do presente momento é a crise político-institucional israelense. Quanto mais ela se aprofunde é de se esperar um acirramento dos ataques israelenses contra a Cisjordânia, Gaza e os territórios ocupados. A volta de Netanyahu ao poder veio, assim, acompanhada de crise política, instabilidade social e, não surpreendentemente, mais violência contra vidas palestinas.

Thiago Rodrigues é professor associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do grupo de pesquisa Segurança e Defesa nas Américas (SeDeAMERICAS). Twitter: @DefenseAmericas, Instagram: @sedeamericas, website: www.sedeamericas.com

Karime Cheaito é mestranda em Estudos Estratégicos (INEST) na UFF e pesquisadora no Laboratório Nexus (associado ao SeDeAMERICAS e ao grupo de pesquisa NEA/UFF). Twitter: @NexusPesquisa, Instagram: @laboratorionexus.

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