“Intoxicado até a alma” pelo agronegócio
Na Nordeste da Argentina – região que mais se concentra glifosato no mundo – exposição diária ao pesticida levou camponês a perder massa óssea, até sobrar só pele e osso. Até sua morte, Fabián lutou para mudar modelo agrícola que o condenou
Publicado 12/11/2019 às 18:09
Por Mariana Simões, no Repórter Brasil
“Com o tempo ele foi deteriorando”, diz o médico clínico Dr. Roberto Lesacano, que atende no estado de Entre Rios, no nordeste da Argentina. “Foi uma coisa progressiva. Cada vez mais foi se deteriorando, até que chegou um momento em que ele não podia mais se mover.” Seu paciente era o camponês Fabián Amaranto Tomasi. Símbolo da luta contra os agrotóxicos na Argentina, Fabián faleceu em setembro do ano passado, aos 52 anos.
Durante quase uma década, Fabián trabalhou para a Molina & Cia.
SRL, uma empresa de pulverização aérea que tem uma base em Basabilbaso,
um vilarejo em Entre Rios com menos de 10 mil habitantes onde o camponês
nasceu e foi criado.
Fabián trabalhava na fumigação de plantações de arroz e soja com
agrotóxicos como endosulfan, 2,4-D, clorpirifos e glifosato. Entre as
tarefas, ele organizava o estoque, equipava os aviões com o veneno antes
de levantarem voo e trabalhava em campo como bandeirinha sinalizando o
melhor trajeto para as aeronaves.
Em 2007, Fabián começou a desenvolver machucados na ponta dos dedos e
foi até o consultório do Dr. Roberto Lescano. Na época, já sofria de
diabetes, e imaginava ser um desdobramento da doença. Mas não era isso.
“Era o início da perda de massa muscular,” diz o médico em entrevista à Agência Pública e Repórter Brasil. “À medida que aquilo foi evoluindo, me dei conta de que [os sintomas] tinham a ver com o histórico de trabalho dele. Foi quando eu o mandei para uma clínica especializada onde eles fizeram os estudos e confirmaram que ele tinha neuropatia tóxica”, diz ele. “Na análise apareceram vários agrotóxicos”. O distúrbio neurológico leva ao mau funcionamento dos nervos periféricos. Segundo o médico de Fabián, foi a contaminação por agrotóxicos foi o que levou Fabián a desenvolver a neuropatia tóxica.
Fabián viveu durante mais de uma década com o distúrbio e, como
consequência, sofreu problemas digestivos, dores nas articulações,
mobilidade limitada e perda de massa muscular excessiva.
“Eu estava secando”, disse o próprio Fabián, em um relato que foi
publicado no livro “Envenenados” do jornalista argentino Patricio
Eleisegui, em 2013. “Tenho o corpo seco da cintura para cima. Quase não
tenho músculo nenhum, só pele e osso”.
Quando começou a trabalhar na empresa Molina & Cia SRL, Fabián,
que tinha 1,70 de altura, pesava 80 quilos. No final da sua vida,
pesava 50.
Um ranking da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) feita pela Phillips McDougall em 2013, mostra quanto os 20 maiores mercados globais gasta com pesticidas tendo o tamanho da produção agrícola como referência. O cálculo é feito dividindo os gastos absolutos pelas toneladas de alimento produzidos. A Argentina aparece em 10º da lista (US$ 12 por tonelada) e ganha do Brasil que chega em 13º (US$ 9 por tonelada).
Um estudo estudo da ONG Naturaleza de Derechos conclui que são considerados cancerígenos 44% dos 82 agrotóxicos detectados em alimentos fiscalizados monitorados pelo SENASA, órgão de fiscalização do governo argentino. Entre eles estão todos os campeões de produção em Entre Rios: tangerina, laranja, arroz e soja.
Segundo o Ministério de Economia, Fazenda e Financias da Argentina, Entre Rios é o segundo maior produtor nacional de arroz e a quarta maior produtora de soja do país. O estado também é líder na produção de amoras e cítricos.
Fabián cresceu em meio à natureza e à agricultura. Nascido em 1966,
passou a infância tendo contato com as frutas que brotavam em
Basabilbaso. O Dr. Roberto Lescano, mais de dez anos mais velho que, era
seu vizinho. “Invadíamos as casas dos vizinhos para pegar uvas, peras,
laranjas e tangerina. Arrancávamos a fruta do pé e nos sentávamos para
comer, e os vizinhos nem reclamavam. Depois íamos jogar futebol”,
recorda o médico.
Foi apenas com o tempo que Fabián construiu uma outra relação com as
plantações – e tornou-se crítico. “Estão fazendo da agricultura um campo
de concentração”, disse, em seu relato de 2013.
Enquanto trabalhou para Molina&Cia SRL, Fabián teve cargos com
distintos graus de exposição aos agrotóxicos. “Quando trabalhava como
bandeirinha, os aviões passavam e o molhavam inteiro com o produto que
estavam fumigando. Ele ficava com aquela roupa até que o produto se
fixava no corpo. Foi isso que levou a tal grau de deterioração – porque
foi uma exposição muito violenta e consecutiva, sem cuidado nenhum”,
explica Roberto Lescano, acrescentando que a empresa não providenciava
máscaras de proteção e nem orientava os funcionários.
“Trabalhei para Molina & Cia SRL. sem carteira assinada e sem
qualquer proteção. Nunca nos protegíamos com nada e muito menos quando
começamos a usar o glifosato, já que vem com um aviso na embalagem que
diz que o produto é levemente tóxico”, afirmou Fabián em seu relato.
Um estudo de 2017 conduzido pelo Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas do governo argentino e a Universidade Nacional de La Plata, revelou que a concentração de glifosato em Entre Rios está entre as mais altas do mundo. A substância foi classificada em 2015 pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) como “provável carcinógeno humano”.
Procurada pela reportagem por e-mail e telefone, a empresa Molina & Cia SRL não respondeu às perguntas até a publicação.
Cerca de três anos depois de detectar os primeiros sintomas, Fabián saiu da Molina & Cia SRL e passou a trabalhar como taxista. “Ele assumiu a doença. Sua preocupação maior era como continuar sustentando a família. Era uma pessoa com uma fortaleza de espírito muito grande. Muito batalhador”, diz Roberto Lescano.
No final de 2014, Fabián se aposentou por invalidez. Mas ele e a família seguiram convivendo com a intoxicação.
“Quando o meu pai foi ficando mais doente eu abandonei os meus
estudos porque ficou complicado demais ir para a faculdade, que fica tão
longe,” diz Nadia Tomasi, filha de Fabián, hoje com 24 anos. Ela estava
estudando obstetrícia, mas a faculdade ficava a mais de 75 km de
Basabilbaso. À medida que seu pai foi perdendo a coordenação motora,
Nadia precisou estar por perto para cuidar dele. No final, Fabián não
conseguia nem se alimentar sozinho.
Intoxicado até a alma
“Fabián teve uma intoxicação massiva por agrotóxicos. Fabián estava
intoxicado até a alma. Ou seja, totalmente intoxicado”, explica o
terapeuta neural Dr. Jorge Kaczewer, que tratou do camponês de 2008 até o
fim da sua vida.
“Todo o seu organismo teve que armar fábricas ou depósitos de
emergência para manter todas aquelas substâncias químicas confinadas.
Por isso ele formava bolsões de líquido branco no corpo. Eram depósitos
de emergência que o sistema dele armava para seguir em frente sem falha
total até o final”, explica o Dr. Jorge. “Era como se o seu organismo
virasse um campo de guerra. Isso fazia com que ele fosse deteriorando e
parecesse cada vez mais pele e osso.”
Dr. Jorge foi um dos mais de 20 médicos que examinou Fabián por conta
da doença. Os primeiros estimavam que ele teria apenas 6 meses de vida
pela frente. Mas Dr. Jorge iniciou uma terapia neural, tratamento
homeopático que injeta procaína em áreas específicas do corpo para
provocar um estímulo do sistema nervoso, além de outros tratamentos
homeopáticos. “Tenho certeza de que esse coquetel de terapia neural com a
homotoxicologia foi o que fez ele viver tanto tempo”, afirma o médico.
Em agosto de 2012, Fabián decidiu parar com os tratamentos – mas
familiares dizem que ele não se entregou à doença. “Ele sempre teve bom
humor. Ele achava que tudo se podia solucionar com bom humor”, conta
Nadia. “Eu acho que foi bom humor que o manteve vivo durante tanto
tempo, e claro, ele também tinha a mim e a minha avó como motivo para
seguir vivendo.”
Outra razão levou Fabián a viver por mais de uma década com a doença:
ele queria mostrar para o mundo o efeito que os agrotóxicos tinham tido
no seu corpo. “Tenho certeza que o que o motivava fazer com que outras
pessoas não passassem pela mesma coisa”, diz o Dr. Jorge Kaczewer.
A luta de Fabián
“Ele não via somente o seu caso, mas entendia que o problema era o
modelo de produção agrícola na Argentina e na América Latina como um
todo. Tinha entendido que o problema não era somente o uso do glifosato,
mas outros produtos também”, afirma Eleisegui, o escritor que
acompanhou a história do camponês desde 2010 para contá-la em
“Envenenados”.
Apesar das dificuldades que tinha de locomoção, o camponês viajava
para contar a sua história, participava de congressos contra o uso de
pesticidas, ia para lançamentos de livros e chegou até a ser figurante
em um filme de ficção sobre a agroindústria.
“Ele passou por uma transformação. Deixou de ser uma vítima, um
afetado. E se deu conta de que poderia ser também um exemplo e mostrar
para o mundo o que os agrotóxicos produzem”, diz Patrício.
Em 2013, Fabián foi procurado pela Rede de Médicos de Povo Fumigados,
um grupo de cientistas e acadêmicos que lutam por uma produção agrícola
mais sustentável. Quando o coordenador do grupo, Dr. Medardo Avila
Vazquez, foi até Basavilbaso, Fabián se prontificou a dar um depoimento e
a contar a sua história em congressos organizados pelo grupo.
“Fabián é um dos afetados mais valentes que já tivemos. Porque em
geral as pessoas que ficam doentes, ou que têm filhos que adoeceram, não
querem falar sobre essas coisas. Principalmente quando vivem em um
vilarejo agrícola onde a economia toda depende disso e o poder político é
atrelado à agricultura. Porque quem se coloca contra o agronegócio
encontra resistência”, diz o Dr. Medardo.
Mas Nadia acrescenta que o pai não se curvava ao medo; pelo
contrário. “Ele que investigou tudo. Ele era muito inteligente. Sozinho
foi entrando em contato com as pessoas que o ajudaram a falar sobre a
sua situação”, diz. Nadia ainda destaca que o pai foi, e continua sendo,
uma fonte de inspiração para ela. “Ele tinha uma força muito grande.
Todos aprendemos muito com ele. Aprendi com ele a dar valor as pequenas
coisas na vida.”
A família de Fabián nunca recebeu indenização ou apoio financeiro da empresa Molina & Cia. SRL.