Gilvan, trabalho e sono no capitalismo periférico

“Trabalhador de estacionamento, operava, como tantos, em ‘modo de hibernação’ — como um urso, escapava para o seu buraco, de onde saía, porém, a qualquer hora da noite. O ‘sleep mode’ me remeteu às ideias de Crary sobre o capitalismo tardio”

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Por Priscila Figueiredo* | Imagem: Billy Shannon, “Sono nebuloso”

Algumas vezes fiz expediente até a madrugada na redação de um jornal no qual trabalhei certo período de tempo. Por sorte, foram apenas algumas vezes, mas nunca esqueci o rapaz que me atendia no estacionamento da rua de trás, onde ia pegar o carro. Vinha sempre alegrinho abrir a porta depois de ter sido visivelmente despertado pelos meus socos na placa mole do portão descido (duas, três da manhã), pois o local, por segurança, já estava fechado naquela hora e não havia campainha. “Sujo de sono”, saltava do nicho da parede cheia de espirros de óleo automotor, onde cabia um colchão que parecia de criança e em que ele não devia poder ficar completamente estirado. Ele de fato era pouco mais que uma criança, e, numa das conversas, vim a saber que tinha deixado a terra natal, Rio Grande do Norte, para vir trabalhar em São Paulo e assim enviar dinheiro para a família recém-formada depois que tinha engravidado uma moça. Embora estivesse muito cansada naquela hora da noite, em geral não estava com sono, pela própria natureza do trabalho, que, aliado ao café, me deixava invariavelmente desperta depois que reprimia o primeiro impulso de dormir. Ele, no entanto, vinha me atender em estado de letargia, os olhos vermelhos, sorrindo mansamente, meio que se desculpando pela situação, que no entanto certamente era prevista no acerto que fizera com o patrão, daí a caminha improvisada num rasgo da parede semi-iluminada por uma lâmpada que descia do teto, quase rente a ele e num fio desencapado; do nicho vinha uma música baixa de alguma rádio insone também.

O estacionamento não oferecia serviço de manobrista, e uma vez que eu e outros do jornal pagávamos um valor mensal fixo, independentemente da hora que saíssemos, a única função dele naquele momento era abrir a porta e depois fechá-la quando o cliente fosse embora (pois não teria que lidar com dinheiro, fazer contas). Algo que se pode fazer de fato até em estado de sonambulismo, e com o mínimo de capacidade motora e perceptiva. Um dia eu disse a ele para fazê-lo ver que eu não achava a sua vida tão miserável: mas então, quando chega de manhã, você vai pra casa e dorme como uma pedra, né? A resposta foi perturbadora: eu durmo aqui sempre – você mora aqui? – é, pra não pagar aluguel. Tenho de mandar o que eu ganho pra minha família. Então girei em 180 graus o olhar pelo galpão imundo e escuro que eu já conhecia, mas dessa vez sua vida me pareceu ainda mais lamentável com a informação nova de que ela era transcorrida boa parte do tempo naquele lugar praticamente sem ventilação (a não ser quando o portão estava levantado), sob monóxido de carbono constante e em estado de permanente alerta, com um canto improvisado para largar o corpo, não completamente, claro, porque tinha que exercitar a prontidão. Ele era jovem, mas a experiência de um sono profundo devia estar ausente há muito tempo de sua rotina. Seu corpo devia ter se reorganizado pra isso, embora, se continuasse a viver assim por mais tempo, talvez começasse a apresentar alguma sequela, além da aparência abatida que mesmo durante o dia se podia perceber, embora sem a vermelhidão dos olhos.

Como os cachorros, ele dormia de fato com um olho aberto e outro fechado – nessa imagem, há uma dissociação entre o que vigia e o que descansa. Ele tinha feito do seu corpo dois funcionários. Um trabalhava sob uma pequena luz ligada enquanto o outro dormia mais próximo da escuridão, e, assim repartida, a potência não podia ser absoluta em nenhum: a atividade de um estava bem ralentada, mas existia, e a parte recolhida dentro da (semi) escuridão estava num repouso também de baixa intensidade. Rituais básicos de separação da vida onírica e da vida em vigília (lavar o rosto, gargarejar, ajeitar os cabelos) são evidentemente impossíveis nessa situação. A escuridão o preservava um pouco, mas é sempre constrangedor para quem está acordado perceber que o outro diante de si está sob um feitiço – o de Morfeu – não exorcizado por completo; tem algo de profano estar nesse domínio. Trata-se de uma relação assimétrica e mesmo antissocial, mas a extrema informalidade do trabalho (e do convívio social nele previsto) não vê problemas nisso. O cliente pode ser atendido com os olhos meio fechados em certa hora do dia, e estes podem estar ainda com aquela cola própria secretada, como restos de uma placenta – a remela. O cabelo desfeito, a camiseta amarfanhada, a fisionomia descomposta só deveriam aparecer sob a luz violenta da exceção , daí que reintegrações de posse que vêm ao amanhecer arrancar da casa os assentados que deveriam estar em paz parecem muito mais desenraizantes, pois no recolhimento do sono a pessoa estaria tão arraigada como uma árvore.

Em certo sentido, o rapazinho, enquanto dormia, estava trabalhando e, por isso, dormir não era infringir regra alguma, como seria o caso do zelador que cochila, ainda que se possa “fechar os olhos” para isso de modo que, quando se propuser pagar menos, não “fechá-los”. No caso do Gilvan (era o nome dele), o estado semidesperto correspondia bem a uma atividade que não requeria muita atenção, pois, durante um período de tempo (toda a madrugada), se limitava a abrir a porta, esperar que o carro saísse, voltar a fechá-la para não por o lugar em risco e fazer que as quatro paredes, uma vez descida uma delas, o ajudassem a proteger — a ele, cujos olhos semifechados não podiam nem deviam fazê-lo por si sós — o bem móvel alienado por um tempo a ele e ao dono do local. E assim devia “agir” a cada vez que aparecia o proprietário de um veículo ali estacionado (e velado) até o amanhecer do dia. Portanto, o modo em que ele operava parte do tempo era justamente o “modo de hibernação” — como um urso ele escapava provisoriamente para o seu buraco, de onde saía, no entanto, antes amável que violento. É também o modo próprio a um regime do tempo em que se borram as diferenças entre dia e noite, sono e vigília etc. Como observou Jonnathan Crary no estudo que fez sobre a degradação do sono no capitalismo tardio: “Ao contrário, e como tantas outras coisas, [o sono] é tratado como uma função variável, mas controlada, que só pode ser definida instrumental e fisiologicamente. Pesquisas recentes mostram que cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para checar mensagens ou informações. Uma figura de linguagem recorrente e aparentemente inócua é o ‘sleep mode’, inspirada nas máquinas. A ideia de um aparelho em modo de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em uma mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade e acesso”, ou “Ela supera a lógica do desligado / ligado, de maneira que nada está fundamentalmente ‘desligado’ e não há nunca um estado real de repouso” (trad. de Joaquim Toledo, editora Cosac&Naify, 2014).

24/7 é de certo modo o “espetáculo” de Guy Debord, cuja reflexão o livro de Crary parece retomar e ampliar em certo sentido (com a ajuda do próprio Debord, inclusive, do inicio dos anos 90). De fato, o olho de Gilvan tinha algo a ver com o “sol que não tem poente” do espetáculo, mesmo quando na escuridão. O que Crary nem Debord imaginariam era que na periferia do capitalismo o regime 24/7 pode se dar com uma única pessoa, sem revezamento para manter abertas as pálpebras do serviço ou do estabelecimento. Para a função que exercia, era cômoda a situação de migrante, jovem (por volta de 18), abnegado (abrindo mão pela família de pagar por um quarto). Esse atributo convinha ao seu patrão, e, trabalhando e morando num estacionamento “dia e noite”, misturado aos carros, podia-se dizer que ele efetivamente trabalhava 24h. Não é só que todo o seu “tempo de trabalho era “tempo de produção” –suprimindo aquela distância que o capital nunca pôde totalmente suprimir pela existência de uma jornada de trabalho, e a acumulação flexível efetivamente o faz, dissolvendo também o local de trabalho. Sendo um vigia 24h que graduava o zelo de sua atividade conforme a hora do dia, morando no trabalho, como a empregada doméstica que a qualquer momento da madrugada deve se mostrar solícita, sendo como é um avatar do trabalho escravo, todo o tempo de sua vida era tempo de trabalho, que era tempo de produção – sim, devia haver folgas, acertos, mas… .

Jonnathan Crary: “A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono” – por isso ele é também resistência ao regime de trabalho 24/7. Mas o Gilvan era alguém cujo sono, escandido nas partes que lhe compunham a fisiologia universal e humana, não constituía propriamente um antivalor (como diria Francisco de Oliveira), ou uma antimercadoria. Tendo- se programado para estar em atenção permanente, menos ou mais intensa, ele mal devia sair dos estágios iniciais do chamado sono REM, e acessar camadas mais profundas, para além desse ponto, significaria um grau de autonomia e liberdade que não estava mais previsto em seu caso.

*Esse texto é parte de um ensaio maior e foi apresentado em 2016 no seminário “Neoliberalismo e subjetividade”, que teve lugar na Universidade de São Paulo foi coordenado por Vladimir Safatle, Christian Dunker e Nelson da Silva Jr.

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