Hora de recuperar a Base de Alcântara

País perde muito em acordo com Washington. A base espacial brasileira tem inúmeras vantagens em relação a qualquer outra posição no planeta. Além da questão de defesa, é vital para a soberania digital. Diante dos ataques de Trump, é uma das grandes cartas de Lula

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Por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva, no GGN

Desde a Constituinte de 1988, por conta de um militarismo fracassado, o Brasil vem adotando uma posição pacifista que perde o sentido na exata medida em que o país ganha relevância internacional. Quanto mais perto se chega do topo, mais os que estão adiante plantam obstáculos ao avanço. Ao mesmo tempo, maior será o número de competidores tentando ultrapassá-lo. Os fatos recentes, advindos da traição a que o Brasil sujeitou-se pela família Bolsonaro, a ideia de que o Brasil não possui contencioso com país algum ficou no passado.

Foi a pequenez imperante na política brasileira que nos fez afastar da confecção da bomba atômica, da mesma forma que nos induziu a assinar acordos deletérios como MTCR (Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis) em 1995, limitando o desenvolvimento de foguetes com capacidade de cargas úteis acima de 500kg para mais de 300km. Isso afeta diretamente o VLS (Veículo Lançador de Satélites, razão de ser da Base de Alcântara). Essa limitação foi estendida ao acordo de cooperação tecnológica com os Estados Unidos em 2019, mantendo as restrições aos lançamentos feitos pelos estadunidenses a partir dali. Esse acordo, aliás, deu a volta no art. IV da CF88 que, praticamente, proíbe a construção de bases militares em território nacional, assim como a concessão de bases já existentes a potências estrangeiras. No caso de Alcântara o drible se deu pelo contrato com três empresas privadas, a Northroph, Hyperion Orion AST e Virgin Orbit. Esta última fica com a administração do aeroporto de Alcântara, o que dá pleno controle do que entra e do que sai da base.

Até Musk quer lançar satélites a partir de lá, pois é de longe o melhor sítio para atividades espaciais. Como o litoral é voltado simultaneamente para o norte e para o leste, os foguetes podem ser lançados com um ângulo de 95°, contra os 102° obrigatórios em Cabo Canaveral. Isso se deve a que, pela proximidade com o Equador, a velocidade escalar da Terra é mais de 100 m/s maior na latitude de pouco mais de 2° S de Alcântara, comparando com os 28° N de latitude  da base da Flórida. É ainda mais rápido do que os 373 m/s obtidos na base francesa da Guiana. O lançamento mais vertical se dá por conta do efeito catapulta aliado ao fato de que não há risco de estágios caírem sobre áreas habitadas. O resultado prático é que os foguetes lançados da base brasileira podem levar ao espaço 35% mais carga útil do que o mesmo foguete, com a mesma quantidade de combustível lançado da base estadunidense.

Mas as vantagens não param aí. Nunca se registrou temperatura inferior a 18°C em Alcântara de sorte que não há interrupções de lançamentos por intempéries tão frequentes na Flórida que, além de estar no caminho de furacões, ainda registra temperaturas congelantes como a que provocou a explosão da Challenger em 1986. Por causa disso, os foguetes construídos para serem lançados do Brasil eliminam o peso e o gasto de energia para os equipamentos anticongelantes de seus congêneres lançados de Cabo Canaveral.

Se as empresas licenciadas para lançar foguetes de Alcântara vão pagar por lançamento, o Brasil tem a ganhar com o acordo? Nada, porque os US$5 bilhões previstos para faturamento não remuneram o fato de que os engenheiros e militares brasileiros ficam confinados a 5 km de distância da base, sempre que ela for usada por uma empresa estadunidense. Nem mesmo os comandos dados para o lançamento serão compartilhados, porque haverá criptografia de ponta a ponta do processo, quase como se essas empresas estivessem fazendo seu trabalho em território dos Estados Unidos. Ademais, não há limite de lançamentos anuais de sorte que, se a frequência, que é uma das principais vantagens da base, for impeditiva do uso pelos programas públicos ou privados brasileiros, a área fica virtualmente nas mãos de um Estado estrangeiro.

O Brasil tem um programa espacial a cumprir em acordo com a Alemanha sobre o desenvolvimento conjunto e o lançamento de veículos lançadores de microssatélites, que se poderão destinar à comunicação em órbita baixa, assim como geolocalização, concorrendo, quando não substituindo, o GPS, que é um programa militar estadunidense, cuja precisão e disponibilidade estão sujeitas a decisões políticas alheias ao nosso controle. Além disso, a China tem interesse em desenvolver programa espacial com o Brasil, especialmente porque sua principal base, a de Wenchang, além de ficar a 19° N, situa-se na ilha de Hainan. Situar-se numa ilha visa a não pôr a população em risco em caso de falha, mas traz o inconveniente de se transportar material estratégico por mar.

Não importando por qual ângulo se analise, Alcântara sempre apresentará vantagens em relação a qualquer outra posição no planeta. Não é de espantar que seja alvo de extrema cobiça. Para a soberania digital, é ouro puro, pois não se conseguirá estabelecer uma verdadeira fronteira digital sem que o espaço sobre nosso território esteja sob nosso controle. Mesmo a Starlink precisa cumprir nossas leis, o que só acontecerá se tivermos meios de lançar satélites de órbita mais alta capazes de “abafar” o sinal de seus dispositivos em caso de não cumprimento de nossas regras. É justamente por causa disso que o acordo deve ser questionado, haja vista que já não se pode considerar os Estados Unidos como país amigo.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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