Governo e pandemia: os dados chocantes do descaso

Nem as crises sanitárias comovem os neoliberais. Nossas tabelas demonstram: governo retém 60% do orçamento de emergência aprovado pelo Congresso contra pandemia. Falta tudo: do auxílio pessoal de R$ 600 às verbas para hospitais universitários

.

Por Livi Gerbase e Luiza Pinheiro, do Inesc, na Le Monde Diplomatique Brasil

Após quatro meses de declaração de emergência nacional, apenas 40,1% do valor planejado no orçamento do governo federal para combater a pandemia do novo coronavírus foi de fato gasto: dos R$ 274 bilhões autorizados, somente R$ 110 bilhões foram pagos. A baixa execução dos valores orçamentários é sentida pela população, que, em grande parte, está sem acesso às políticas de enfrentamento à Covid-19.

Essa baixa execução do orçamento da União para garantia do bem-estar da população não é novidade. O governo federal vem há anos cortando despesas sociais e de garantia de direitos como consequência de uma política que prioriza metas fiscais às necessidades reais da população. Isso é a conclusão do relatório Brasil com Baixa Imunidade: Balanço Geral da União 2019, publicado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) no mês passado. A debilidade de recursos para apoio à população e enfrentamento à pandemia seria só a confirmação de um diagnóstico anterior.

Analisando os gastos com o enfrentamento à pandemia

As políticas do governo federal de combate à Covid-19 estão concentradas em cinco ações, como pode ser observado na tabela 1. É importante ressaltar que a tabela não abrange o total de ações implementadas pelo governo: estão fora as medidas de adiamento ou redução do pagamento de impostos e o orçamento das estatais, o que inclui as importantes ações promovidas pelo BNDES, como as linhas de crédito para empresas.

Todas as ações orçamentárias do governo estão padecendo na execução: é feita a promessa de realização do gasto, porém ele não é realizado com celeridade. A população já sente isso na prática quando 10 milhões de pessoas ainda estão em análise para o recebimento do auxílio emergencial (ação 00S4). E quando as empresas estão se recusando a pagar os custos de demissão dos funcionários, ao mesmo tempo em que a União executou apenas 8,8% do planejado com os benefícios do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (ação 21C2), que compensa o trabalhador pela redução de jornada de trabalho ou suspensão do contrato. Resumindo: não há para onde correr. 

Para além das ações orçamentárias, é necessária uma análise mais transversal da alocação e execução orçamentárias do governo, principalmente em duas áreas que concentram recursos: gastos com saúde e transferências a estados e municípios.

Saúde: até a área mais fundamental está com pouca despesa

Foram alocados R$ 19,3 bilhões em créditos extraordinários para a Função Saúde, cujo gasto está na ação orçamentária 21C0. A maioria absoluta foi destinada ao Ministério da Saúde. Mas, R$ 389,4 milhões foram destinados ao Ministério da Educação, mais especificamente para hospitais universitários e para a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), que faz a sua gestão. Este é só um exemplo de como as universidades brasileiras têm papel fundamental no combate à Covid-19.

Todavia, apenas 55% destes créditos extraordinários foram empenhados, ou seja, o governo já contratou o produto ou serviço, e 43% foram pagos. 

O recurso do Ministério da Saúde foi destinado para o programa de atenção especializada, por meio de duas unidades orçamentárias, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Fundo Nacional de Saúde.

À Fiocruz foram destinados R$ 477,7 milhões. Suas ações incluem a construção de centro hospitalar para pacientes graves em seu campus em Manguinhos (RJ). Ela também produz kits de diagnóstico pelo método PCR que o ministério distribui para todo o país, além de diversas outras ações, como campanhas de comunicação e disponibilização de informações confiáveis em seu site. A Fundação é denominada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o laboratório de referência para Covid-19 na América Latina e colabora com as ações do estudo Solidariedade, coordenado pela OMS, e que visa encontrar soluções contra o novo coronavírus. Os recursos para a Fiocruz tiveram um bom nível de empenho (reserva de dinheiro para efetuar um pagamento planejado), de 73%. Porém, apenas 28% dos recursos foram pagos.

A maior parte dos recursos destinados à saúde, 96%, o que equivale a R$ 18,5 bilhões, foram para o Fundo Nacional de Saúde. Destes, R$ 8 bilhões foram investidos de forma direta pela esfera nacional; R$ 800 milhões foram transferidos para a Organização Panamericana de Saúde (Opas) e R$ 12 milhões para instituições privadas sem fins lucrativos. O restante (52%) foi transferido para os estados e municípios. A aplicação direta teve um nível de empenho muito baixo (38%), e de pagamento ainda menor (7%). Este baixo nível de execução pode ser explicado, em parte, pela dificuldade dese encontrar fornecedores, e também devido à escassez de produtos no mercado causada pela pandemia. Mas também pode ser um sinal de que o governo federal está de fato deixando o combate à Covid-19 para os estados e municípios.

Isto não é necessariamente um problema, pois a lógica do SUS é de descentralização, para que cada região possa atender melhor às suas especificidades. Todavia, em meio a uma crise sanitária de abrangência mundial, o governo federal deveria assumir a liderança e a coordenação, tanto de atividades logísticas quanto práticas clínicas baseadas em evidências científicas. 

Um bom exemplo dessa apatia do governo federal é o da execução orçamentária do recurso para os hospitais universitários citados anteriormente. No complexo hospitalar da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) foram empenhados apenas 9% e pagos 0,7%, dos R$ 43,5 milhões destinados a ele. Enquanto isso, o estado tem uma das situações mais preocupantes no país. Para a EBSERH, que cuida de hospitais universitários em todo território nacional, apesar de ter sido dotada com R$ 288,9 milhões, só foram empenhados 48% dos recursos e pagos 4%. 

Por fim, é importante ressaltar que mesmo em meio ao desgoverno federal, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) continua exercendo seu papel de controle social e fiscalização. A sua Comissão de Financiamento e Orçamento publica semanalmente boletins com a execução orçamentária do recurso para a saúde. 

Estados e municípios: a linha de frente do combate à pandemia.

A disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores e prefeitos é um dos problemas centrais da luta brasileira contra o novo coronavírus. Essa disputa é refletida no orçamento da União destinado aos outros entes federativos, que não estão recebendo os recursos necessários ao enfrentamento à pandemia. A ação 00S3, que tem como objetivo assegurar os valores do repasse da União aos Fundos de Participação dos níveis subnacionais, está com apenas 12% de execução orçamentária, o que significa um repasse de R$ 1,93 bilhão.

Além da ação 00S3, as unidades federadas e as municipalidades estão recebendo recursos da União por outras ações orçamentárias, como, por exemplo, para compra de equipamentos de saúde e para os hospitais universitários, como registrado anteriormente. Existem ainda pagamentos menores referentes ao auxílio às instituições federais ligadas ao ensino e pesquisa. No total, segundo o portal Tesouro Transparente, até dia 24 de maio foram transferidos R$ 9,9 bilhões para os estados e municípios para o enfrentamento à pandemia, espalhados em diversas medidas provisórias e ações orçamentárias. Uma visão geral da alocação orçamentária total por região e estado pode ser vista na tabela abaixo.

Tabela 2. Transferências da União de recursos referentes ao enfrentamento da Covid-19, de março a 24 de maio, a estados e municípios e número de casos e óbitos, por região, valores pagos e correntes.

Ao analisarmos as transferências aos estados e municípios e compararmos com o número de casos e óbitos, podemos concluir, à primeira vista, que existe uma relação lógica entre os dois – as regiões que mais receberam recursos são aquelas com o maior número de óbitos, a ver, sudeste e nordeste. Existe, porém, um grande gargalo na região norte: ela possui número de óbitos num patamar parecido com o nordeste, mas um orçamento similar ao da região sul, estando muito atrás dos repasses para as regiões sudeste e nordeste. 

A distribuição entre os estados e municípios, até agora, estava organizada pela população e pela complexidade dos serviços de saúde oferecidos, contudo, a proposta de “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus” destina 60% do recurso de acordo com as taxas de incidência da Covid-19. Esse programa já foi aprovado no legislativo e está aguardando sanção do presidente, que afirmou que o aprovará, mas deixou explícita a sua insatisfação, declarando ser o último apoio aos governadores, e que estes precisam “começar a abrir o mercado” para recuperar a economia. 

A avaliação do indicador “transferência por caso” revela com mais clareza a discrepância entre as regiões: enquanto sul e centro-oeste receberam cerca de R$ 25 mil por caso, o sudeste, o norte e o nordeste foram contemplados, em média, com R$ 9,6 mil por caso. 

Comparações entre estados também apontam algumas distorções relevantes. Na região nordeste, a Bahia recebeu a maior fatia dos recursos, apesar de estar em uma posição mais confortável em número de casos e óbitos quando comparado com os estados de Ceará e de Pernambuco. Note-se que o Ceará é o estado a contabilizar o maior número de mortos pela doença em 24 horas. 

Quando comparamos o Amazonas com Santa Catarina, os dois estados receberam da União valores muito similares, porém o primeiro tem 16 vezes mais óbitos que o segundo. Parece que a crise sanitária em Manaus, que assustou o Brasil inteiro no mês passado, não ensinou muitas lições ao governo brasileiro. 

Brasil com baixa imunidade para enfrentar a pandemia

Além de um olhar específico para a execução orçamentária voltada para a contenção da Covid-19, precisamos saber em que pé chegamos na crise. Esse foi o objetivo central do “Balanço Geral da União 2019“, publicação recentemente lançada pelo Inesc. O estudo concluiu que, devido a anos de austeridade fiscal, que levaram a cortes principalmente em gastos sociais não obrigatórios, chegamos fragilizados para enfrentar o novo coronavírus, sem a estrutura de políticas públicas necessárias para apoiarmos uma sociedade que vivencia a maior confluência de crises, econômica, política e sanitária, dos últimos tempos. 

A área de saúde, por motivos evidentes, ganhou destaque no relatório. Os gastos com a área estão praticamente estagnados desde 2014, o que significa uma queda relativa, uma vez que a população cresceu em 7 milhões nesse período. Ademais, devido ao Teto de Gastos, a Saúde perdeu R$ 20 bilhões em 2019, segundo dados do Conselho Nacional de Saúde. A crise provocada pela Covid-19, nesse sentido, deixa expostas as mazelas de um setor cronicamente subfinanciado, que já não conseguia atender às demandas da população antes da crise.

O relatório vai além da área de saúde, com exemplos da “baixa imunidade” em outros setores sociais.  Assim, por exemplo, o desmonte das políticas para as mulheres tem como consequência a falta de preparo dos poderes públicos em dar respostas tempestivas ao aumento da violência doméstica decorrente do isolamento social. Os gastos das políticas para as mulheres caíram 75% em termos reais entre 2014 e 2019. O desmonte da institucionalidade voltada para a pesquisa, por sua vez, dificulta inovar e encontrar a vacina e os medicamentos para a Covid-19: o orçamento da Capes caiu pela metade entre 2015 e 2019, passando de R$ 9,6 milhões para R$ 4,4 milhões.

Teto de gastos

Diante desse cenário de baixa imunidade e corte de gastos, e projetando o esforço necessário para o enfrentamento das crises econômica e social que virão no pós-pandemia, a Coalizão Direitos Valem Mais, que reúne 192 organizações e redes de sociedade civil – entre elas o Inesc, Conselhos Nacionais de Direitos, entidades sindicais e instituições acadêmicas, apresentou à Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, um pedido de suspensão imediata do Teto de Gastos. O Teto é considerado por muitos especialistas a regra fiscal mais recessiva do mundo, por estancar por vinte anos a maior parte dos gastos do governo federal, deixando o Estado sem os recursos necessários para enfrentar uma crise econômica que já assombra o Brasil há sete anos, desde 2014.

A partir do documento da Coalizão, a Ministra fez perguntas sobre os efeitos da emenda nos gastos sociais, que foram respondidas pelas organizações da sociedade civil por escrito. A Coalizão apresentou ao STF um documento que contém não somente argumentos baseados em dados rigorosos aos questionamentos de Rosa Weber, mas também detalhada análise dos efeitos do Teto de Gastos em diversas áreas. Além disso, o texto reúne evidências jurídicas, sociais e econômicas para o fim da Emenda bem como alternativas concretas para que o Estado brasileiro supere o quadro de acentuado subfinanciamento das políticas públicas. O documento, que foi baseado, entre outras fontes, no relatório do Inesc, pode ser acessado aqui

Leia Também: