García Linera: O fim do “otimismo histórico”?

Até FMI e Banco Mundial projetam o fiasco da ordem liberal – leitura antes restrita aos marxistas. Agora, crise alimentada pelo colapso climático mostra: sistema tornou-se incapaz de lançar o mundo a um novo estágio de prosperidade

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Por Álvaro García Linera, no CELAG, com tradução na Revista Opera

Houve uma época em que o patrimônio das leituras terminais do capitalismo era dominado pelo marxismo. Durante as primeiras décadas do século XX, a crise do liberalismo do século XIX, a Primeira Guerra Mundial, a revolução soviética e a quebra da bolsa de valores de 1929 alimentaram um extraordinário debate econômico sobre a iminente derrocada da sociedade burguesa moderna. Para a grande revolucionária Rosa Luxemburgo (“A Acumulação do Capital”, 1913), a saturação dos novos mercados ocupados pelo comércio e pela produção capitalistas anunciava seu colapso iminente. Evidentemente, ela não conseguiu ver que o mercantilismo era capaz de intensificar o consumo nos mercados existentes e ocupar novos espaços “externos”, como as sociedades agrárias ou a unidade doméstica urbana.

Kautsky (“Teoria das Crises”, 1901), o pai da social-democracia europeia, anunciou que a dissociação entre a produção e o consumo mundiais, a chamada superprodução, era o sintoma decisivo da impossibilidade da continuidade histórica do capitalismo. No entanto, a devastação material provocada pelas guerras e as próprias depressões econômicas desempenharam o papel da “destruição criativa” schumpeteriana que voltou a acoplar produção e consumo. H. Grossman (“A Lei da Acumulação”, 1929), o grande economista polonês, acreditava que a superacumulação de capital, devido às constantes inovações tecnológicas que substituíam o trabalho humano, reduzia a quantidade de trabalho não remunerado apropriada pelos empresários em relação aos montantes de investimento feitos, o que acabaria levando ao colapso do sistema como um todo. Entretanto, como vem ocorrendo há décadas, essa tendência de queda na taxa de lucro também é acompanhada por um crescimento constante na massa de lucro absorvida pelo investimento, o que estimula o investimento.  P. Mattick, outro grande economista marxista dos EUA, considerava que a supersaturação do capital em escala mundial, somada à concorrência entre empresas, levaria a uma “crise mortal do capitalismo” ao restringir o nível de renda das classes trabalhadoras ( “A crise permanente”, 1933). Ele não levou em conta que a melhoria da produtividade geral do trabalho aumenta a renda das classes mais pobres, enquanto a mão de obra barata nas sociedades periféricas e o trabalho doméstico gratuito ajudam a sustentar o que U. Brand chama de “modo de vida imperial” do capitalismo desenvolvido.

Embora vários dos postulados dessas reflexões tenham acabado sendo superados pela própria realidade, a grande contribuição dessa polêmica foi chamar a atenção para a manifestação recorrente de limites no desenvolvimento histórico da sociedade capitalista. Embora todos esses autores incorporassem o fator decisivo das lutas sociais para derrubar a ordem econômica, eles consideravam que a eficácia dessas lutas exigia condições materiais de possibilidade que permitissem o colapso do capitalismo existente e sua substituição por uma outra organização econômica da sociedade.

Os “trinta (anos) gloriosos” que surgiram após a Segunda Guerra Mundial (1945-1975), que trouxeram as mais altas taxas de expansão econômica e bem-estar social para a Europa e os EUA, extinguiram o debate sobre o colapso capitalista. A implosão do chamado “socialismo real” em 1989 e o triunfo incontestável do capitalismo de livre iniciativa nos anos seguintes encerraram temporariamente qualquer referência aos limites do capitalismo. De fato, desde então, ele pôde ser apresentado como o fim intransponível do caminho do progresso humano. Mas a celebração do “fim da história” não durou muito tempo.

Primeiro, houve os alarmes sobre os impedimentos naturais a essa forma de produção baseada no lucro permanente. Os efeitos dramáticos sobre o meio ambiente, ou o que Marx chama de fratura da “troca metabólica” entre a natureza e os seres humanos, começaram a ser expostos, não apenas com o risco apocalíptico iminente da ruptura do clima, da biodiversidade e da vida terrestre, mas também com os limites materiais naturais à expansão contínua da produção e da acumulação capitalistas. Assim, emergiu um novo catastrofismo, agora centrado não tanto nas barreiras à acumulação empresarial, mas no esgotamento dos componentes materiais que possibilitam a produção e a acumulação burguesas. Não é mais a organização social capitalista que manifesta seus próprios limites (de acumulação, desigualdade, lutas sociais, etc.), mas sim a natureza que é o limite do lucro ilimitado.

Cada novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU é mais assustador do que o anterior, pois o Relógio do Clima indica que estamos a “segundos” de ultrapassar 1,5°C acima das temperaturas pré-industriais, o que levará a um turbilhão de efeitos ambientais e biológicos desastrosos e irreversíveis no mundo. Por enquanto, no entanto, esse neocolapsismo ambiental deu origem a um fatalismo impotente que não consegue vislumbrar uma ordem econômica e social diferente do capitalismo existente. A proposta é atenuar seu desenvolvimento, direcioná-lo ou, na melhor das hipóteses, desdesenvolvê-lo (Latouche, 2023), deixando de lado o fato de que, se algo caracteriza o capitalismo, é precisamente a tendência à acumulação perpétua, acima do bem-estar humano, do meio ambiente ou da própria vida biológica.

Uma contrapartida inicial a esse catastrofismo ambiental é o colapso induzido, chamado de aceleracionismo (Srnicek, Fisher), que propõe exacerbar ainda mais a expansão capitalista para que suas forças prometeicas, dissolventes e auto-organizadoras, explodam, criando condições para outra sociedade.

Mas o que é realmente impressionante nos últimos tempos é o catastrofismo analítico das instituições e dos “think tanks” do próprio capitalismo global. Eufóricos durante décadas com o imaginado triunfo definitivo do livre mercado, o FMI, o Banco Mundial, o BIS, a Rand Corporation, o Fórum Econômico Mundial, a McKensey, etc., nos últimos meses passaram do pessimismo temporário para o pessimismo catastrófico.

O FMI – aquele porta-aviões político, blindado com dinheiro e dados econométricos, que durante décadas se encarregou de enquadrar a América Latina e a Europa Oriental no inelutável destino “final” da humanidade: o livre mercado – agora lamenta o “desmoronamento” da ordem planetária liberal e prevê que a “fragmentação geoeconômica” em curso trará uma contração de até 7% do PIB mundial nos próximos anos (Geoeconomic Fragmentation…, janeiro de 2023). Por sua vez, o Banco Mundial, a cavalaria global do “consenso de Washington”, agora se assusta com o futuro incerto e prevê uma próxima “década perdida”, com o crescimento global caindo em um terço em comparação com os primeiros 10 anos do século XXI (Global Economic Prospects, junho de 2023).

E a  avaliação mais surpreendente sobre o futuro do capitalismo é a do McKensey Global Institute. Considerada a mais famosa e influente empresa de consultoria do mundo, e a que já treinou o maior número de CEOs de grandes empresas, ela acaba de realizar uma análise crítica e calamitosa do futuro do capitalismo mundial capaz de disputar limiares de fatalismo com as mais furiosas versões catastrofistas do marxismo do século XX. A empresa inicia seu estudo apontando que, nos últimos 40 anos, o capitalismo global se desenvolveu por meio de uma perigosa anomalia: o crescimento do valor dos ativos (ações, imóveis) e da dívida (estatal, corporativa, pessoal) foi mais rápido do que o crescimento do PIB. Ou seja, o valor do papel se desvinculou do valor real da economia. Para cada US$ 1 de ativos reais, os ativos fictícios cresceram 1,3 vezes. De 1993 a 2021 – diz o documento – o capital não buscou investimentos produtivos, mas riqueza de papel: o valor dos imóveis cresceu 33% acima do PIB. Ativos 100%; dívida 90% e depósitos 124% (The Future of Wealth and Growth…, maio de 2023).

Para agravar os males endêmicos, o investimento produtivo diminuiu como porcentagem do PIB. Na União Europeia, 55% menor do que entre 1995-2008. E nos EUA, 40% menor. A produtividade, por sua vez, diminuiu sua taxa de crescimento. Se entre 1980 e 2000 ela aumentou 1,8% ao ano, entre 2000 e 2021 ela teria aumentado apenas 0,8% ao ano. A esperança de que a digitalização e a P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) revolucionariam a produtividade fracassou devido à ausência das “habilidades necessárias” na força de trabalho e, acima de tudo, porque essas são tecnologias com ciclos de vida curtos que “podem absorver poupanças apenas por períodos muito limitados” antes de se tornarem obsoletas ou transferirem o conhecimento para os concorrentes. Essa desaceleração na produtividade do capitalismo tardio, um antigo bastião de sua superioridade histórica, não é um problema passageiro: é um limite estrutural do próprio capitalismo. Assim, criou-se um círculo vicioso: a participação dos grandes proprietários na riqueza global aumenta; a participação dos trabalhadores diminui, o que reduz o consumo proporcional, e o valor “de papel” dos ativos aumenta devido à poupança dos ricos. Esse é um problema de superprodução com efeitos especulativos de desvio de riqueza, que o próprio Marx subscreveria (O Capital, Volume III).

 Diante desse desastre, que opções temos pela frente? O instituto mais desejado por todos os graduados em ramos econômicos das universidades mais prestigiadas do mundo vê quatro opções, cada uma mais problemática que a anterior. A primeira, manter as coisas como sempre: crescimento fictício, aumento do PIB abaixo de 1%, demanda fraca, baixo crescimento da produtividade, maior desigualdade. Em suma, um retorno à estagnação secular.

A segunda, políticas de defesa nacional (nacionalismo econômico): aumento do investimento público, crescimento moderado dos salários e do consumo, inflação acima de 4%, declínio do valor das ações e dos imóveis, aumento da dívida e redução da riqueza das famílias em 8,5%.

A terceira, uma recessão prolongada: política fiscal austera, forte aperto fiscal e contenção da inflação, altas taxas de juros, queda no valor dos ativos, crise de liquidez, crise da dívida global, demanda fraca, zombificação das empresas; crescimento do PIB 1 ponto percentual menor do que na década anterior, queda de 30% ou mais no valor real das ações e dos imóveis. 

Finalmente, o produtivismo baseado no aumento do investimento em novas tecnologias: crescimento do PIB de 1% acima da década anterior, inflação controlada, políticas públicas industriais, valores imobiliários estagnados e em queda em relação ao PIB, nova onda de economias emergentes. Essa última opção, a menos conflituosa, é muito parecida com a apontada há mais de 100 anos por Luxemburgo, só que ela já viu a saturação desse caminho. E quanto à produtividade, não há caminho para superar os limites estruturais que o próprio Instituto menciona com relação às tecnologias de rápida obsolescência.

Em suma, os fanáticos do capitalismo perderam seu otimismo histórico. Eles não apenas nos mostram com dados um modelo de desenvolvimento neoliberal em declínio, mas também um capitalismo estruturalmente cansado, fissurado, sem um horizonte de esperança capaz de lançar o mundo em um novo estágio de prosperidade. Quase como uma fera irracional que devora a si mesma. Portanto, não há dúvida de que, nestes tempos de incerteza pessimista, deveríamos mais uma vez tirar a poeira e enriquecer os debates marxistas de longo alcance sobre as condições do “colapso” capitalista.

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