Futebol: vitrine para ditadores e fascistas?
De Ruanda aos Emirados Árabes, regimes envolvidos em massacres brutais usam times europeus para lavar imagem e criar vantagens políticas e econômicas com o Ocidente. Até Trump usa o populismo do esporte enquanto caça imigrantes. Como os torcedores podem reagir?
Publicado 16/10/2025 às 16:03

Por Andy Storey, na Jacobin Brasil
O ditador de Ruanda, Paul Kagame, é famoso por prender seus opositores (os menos afortunados são assassinados). Mas por que ele supervisionaria o patrocínio estatal ruandês ao Arsenal, um dos principais times da Premier League inglesa, classificado em oitavo lugar na lista da Forbes dos clubes de futebol mais valiosos do mundo?
Este não é o primeiro exemplo de “sportswashing”, então vale a pena fazer alguns questionamentos mais amplos também. Por que empresas, indivíduos e Estados buscam vincular seus nomes a clubes e eventos esportivos? Que benefícios esperam obter com isso? E como os torcedores devem reagir?
Cabeças de ponte
Começando pela pergunta “por quê?”, dois conjuntos distintos de motivações estiveram em evidência na final da Liga dos Campeões da Europa deste ano, entre Paris Saint-Germain (PSG) e Inter de Milão. Uma diferença resumida em uma manchete do Guardian — “Despotismo vs. Capitalismo”.
A Inter é de propriedade da Oaktree Capital, uma empresa estadunidense especializada em “ativos problemáticos”. Eles adquiriram o clube quando os antigos proprietários deixaram de pagar as dívidas e estão ansiosos para lucrar com isso, pura e simplesmente. O PSG, por outro lado, foi adquirido pelo governo do Catar em 2011 e recebeu grandes quantias de dinheiro injetadas por vários órgãos do Estado catariano, culminando na vitória sobre a Inter e na conquista do seu primeiro troféu da Liga dos Campeões.
Claramente, tanto para o Catar quanto para o PSG, os fatores motivacionais por trás da propriedade e do patrocínio não se reduzem à obtenção imediata de lucro. De fato, injetar dinheiro no PSG pode ter sido uma ação deliberada e deficitária do Catar. Inicialmente, fazia parte de um pacote de incentivos (alguns chamariam de suborno) que persuadiu o governo francês a apoiar a candidatura do Catar para sediar a Copa do Mundo masculina de 2022.
Pode haver uma estratégia econômica de longo prazo em ação por parte do Catar, cujo vizinho e rival, os Emirados Árabes Unidos (EAU), já havia adquirido o Manchester City Football Club e começado a transformá-lo em uma potência esportiva de enorme sucesso. A aquisição do clube pelos Emirados Árabes Unidos motivou investimentos maciços por parte de agentes de Abu Dhabi, a capital dos EAU, na construção e no desenvolvimento imobiliário de Manchester. Isso incluiu o acesso a terrenos públicos em condições muito favoráveis e lucrativas.
Os Emirados Árabes Unidos alavancaram a boa vontade gerada pelo sucesso esportivo em uma estratégia mais ampla de penetração econômica regional. O Catar pode ter planos semelhantes para Paris; certamente não hesita em investir estrategicamente grandes quantias de dinheiro em busca de favores e ganhos a longo prazo, como evidenciado pela doação de um avião de luxo a Donald Trump.
Sportswashing
A realização da Copa do Mundo pelo Catar é comumente citada como um exemplo clássico de sportswashing — patrocínio esportivo com o objetivo de limpar uma reputação, mais ou menos por si só. Como afirma o jornalista Miguel Delaney em seu livro “States of Play” [A Situação do Jogo], “a associação com algo tão popular traz influência e legitimidade”. Pode, pelo menos em teoria, encobrir uma infinidade de associações menos sadias. Nas palavras de Jules Boykoff, oferece um caminho para a “renovação da reputação”.
No entanto, no caso da Copa do Mundo de 2022, os ganhos de relações públicas para o Catar podem ter sido mais do que compensados pelas críticas ao tratamento profundamente abusivo do país anfitrião aos trabalhadores migrantes que construíram a infraestrutura do torneio. Relações públicas negativas também resultaram de alegações absurdas (e posteriormente desmentidas) de que o torneio tinha zero emissões de carbono, vindas de um país cuja riqueza se baseia predominantemente na extração de combustíveis fósseis e na aceleração do aquecimento global.
O sportswashing também pode ter saído pela culatra no caso de outra ditadura do Oriente Médio, a Arábia Saudita, cujo patrocínio ao LIV Golf Tour, uma organização separatista, apenas chamou a atenção para os abusos que o regime buscava ocultar. A Arábia Saudita sediar a Copa do Mundo de futebol masculino em 2034 já gerou polêmica sobre uma série de questões, incluindo, mais uma vez, a exploração de trabalhadores migrantes (os quais somam treze milhões).
Os EUA estão co-organizando (com Canadá e México) o torneio masculino de 2026 e já sediaram a primeira Copa do Mundo de Clubes deste ano. O evento de 2026 potencialmente conferirá capital político a Trump, embora altos funcionários do governo tenham brincado sobre deportar torcedores de futebol visitantes que ultrapassarem o prazo de seus vistos, enquanto jogadores e funcionários de países sujeitos a proibições e restrições de viagem terão que solicitar isenções para participar.
Os sociólogos Heba Gowayed e Nicholas Occhiuto pediram um boicote ao torneio de 2026, observando como Trump já usou o Mundial de Clubes para aumentar seu prestígio:
Nenhum país deveria mandar seu time para jogar quando os cidadãos de 12 deles estão banidos. Ninguém está seguro quando agentes circulam pelo país e seus estádios mascarados, pedindo às pessoas que mostrem seus documentos com base na cor da pele.
O candidato democrata socialista à prefeitura de Nova York (e fã de futebol de longa data) Zohran Mamdani falou sobre quantos torcedores terão medo de ir aos jogos por causa da ameaça da polícia de imigração aproveitar a oportunidade para prender suspeitos.
Embora um boicote pareça improvável, a estratégia de impulsionar o MAGA pode acabar saindo pela culatra, pelo menos em parte. Trump pode tentar deportar estudantes que condenam o genocídio israelense, mas o que ele poderia fazer com um craque do futebol que aproveitou a oportunidade para se manifestar sobre o assunto ou sobre a brutalização de migrantes?
Além disso, a previsível autopromoção narcisista de Trump em todas as oportunidades inevitavelmente atrairá o escárnio global. Afinal, o Mundial de Clubes terminou com a cena cômica do presidente dos EUA comemorando com os jogadores e se recusando a deixar o pódio após entregar o troféu aos vencedores.
O Arsenal e Ruanda
O sportswashing nem sempre é bem recebido, mesmo por seus aparentes beneficiários, como podemos ver no caso do Arsenal, cujas camisas agora ostentam o slogan “Visite Ruanda”. A questão aqui não é apenas a promoção de um regime repressivo que assassina e aprisiona seus oponentes. É também uma questão do próprio dinheiro do patrocínio e de como ele foi obtido — por meio de roubo e fomento ao conflito e à catástrofe humanitária na República Democrática do Congo (RDC).
Nos primeiros meses de 2025, ataques da milícia rebelde M23, apoiada por Ruanda, no leste da República Democrática do Congo (RDC), resultaram em cerca de três mil mortes (a maioria civis), no deslocamento de mais de setecentas mil pessoas e em aumentos acentuados na incidência de execuções sumárias, estupros e violência sexual, além de sequestro de pessoas (incluindo crianças) para trabalhos forçados. Milhões ficaram sem acesso a alimentos, água potável e assistência médica, o que provocou surtos de doenças como malária e sarampo.
Esta foi a fase mais recente dos conflitos que afligem a RDC desde pelo menos 1996, resultando na morte de cerca de seis milhões de pessoas e no deslocamento de outras quase sete milhões de suas casas. Diversos atores externos desempenharam seu papel nesses conflitos, mas a vizinha Ruanda se destacou entre eles. Isso incluiu o apoio direto ao M23 em troca de minerais como coltan (usado em diversos dispositivos eletrônicos), tungstênio e ouro. Ruanda vende os recursos da RDC roubados dessa maneira como se fossem suas próprias exportações.
Nesse contexto, o ministro das Relações Exteriores da RDC descreveu a promoção do Arsenal em Ruanda como um “acordo de patrocínio manchado de sangue”. Um grupo de torcedores do Arsenal se uniu para se opor a isso, chamando a si mesmos de “Gunners for Peace” [Gunners pela Paz] (“Gunners” é o apelido do Arsenal).
Eles sugeriram, maliciosamente, substituir o slogan “Visite Ruanda” por “Visite Tottenham”, em referência aos rivais do Arsenal no norte de Londres — a implicação era que seria melhor visitar até mesmo seu pior inimigo do que promover o turismo em Ruanda. Como disse um porta-voz da torcida: “Não queremos que nosso clube venda sua alma a quem pagar mais.”

Os Emirados Árabes Unidos
Infelizmente, Ruanda não é a única candidata — e as propostas foram aceitas. O Arsenal também é patrocinado (embora não seja de propriedade exclusiva, como no caso do Manchester City) pelo governo dos Emirados Árabes Unidos, por meio da empresa estatal Emirates Airlines. O logotipo da Emirates é exibido na camisa do Arsenal (com muito mais destaque do que a promoção turística de Ruanda), e os jogos em casa do Arsenal são disputados no Emirates Stadium.
Um porta-voz da Anistia Internacional descreveu os Emirados Árabes Unidos como “o Estado policial mais brutal do Oriente Médio” — um grande elogio, dado o histórico saudita. Sua elite governante firmou recentemente um acordo corrupto multibilionário de criptomoedas com a família Trump. Assim como Ruanda, os Emirados Árabes Unidos estão profundamente envolvidos em um conflito africano que causa enormes danos humanos, ambientais e econômicos. O conflito em questão ocorre no Sudão.
A fase mais recente da guerra no Sudão deixou a cifra impressionante de 150 mil mortos em apenas dois anos e treze milhões de pessoas deslocadas de suas casas. Dois terços da população — mais de trinta milhões de pessoas, incluindo dezesseis milhões de crianças — dependem de assistência humanitária inadequada. Vinte e cinco milhões sofrem de insegurança alimentar extrema. Os cortes de ajuda humanitária promovidos por Trump, que levaram ao fechamento de refeitórios de emergência, agravaram uma situação já grave.
Os Emirados Árabes Unidos são os maiores apoiadores de um dos dois principais grupos que travam a guerra civil, as Forças de Apoio Rápido (FAR). As FAR massacraram mais de 1.500 civis em um único ataque ao maior campo de deslocados do Sudão em abril deste ano, uma das muitas atrocidades desse tipo. Os Emirados Árabes Unidos fornecem a essa milícia assassina armas, dinheiro e apoio político em troca de ouro sudanês saqueado, com o objetivo de adquirir terras agrícolas potencialmente lucrativas, bem como um porto no Mar Vermelho.
Como Joshua Craze observa, “os petrodólares dos Emirados lubrificam as engrenagens das redes de negócios: todos os países em sua esfera de influência se beneficiam do ouro que sai do Sudão, quase todo o qual flui para os Emirados Árabes Unidos”. Em uma demonstração de cinismo e venalidade de tirar o fôlego, os Emirados Árabes Unidos também compram ouro de seus principais rivais, o exército oficial sudanês.
É aqui que a ligação com o sportswashing se torna evidente, já que seria razoável acrescentar “todos os clubes de futebol” à lista de beneficiários. Não é exagero dizer que as extravagantes taxas de transferência e salários de craques do Manchester City e do Arsenal são parcialmente financiados pelo ouro saqueado do Sudão.
O papel dos torcedores
Como relata Miguel Delaney, muitos fãs de esportes infelizmente se transformaram em torcedores acríticos dos regimes que injetam dinheiro em seus times, independentemente de quanto sangue mancha esse dinheiro. Conseguir o apoio apaixonado desses torcedores é, obviamente, uma das razões pelas quais esses regimes se envolvem em sportswashing.
“As poderosas empresas e governos que vendem armas para a Arábia Saudita são muito mais moralmente culpados pelos crimes daquele regime do que o Newcastle United ou seus torcedores.”
Mas nem todos são torcedores. Assim como alguns torcedores do Arsenal estão furiosos ao ver o clube que amam aceitar o dinheiro sujo de Ruanda, alguns torcedores do Newcastle (embora sejam minoria) também protestam contra o uso de seu time para limpar a reputação da vil ditadura da Arábia Saudita, um braço da qual agora detém uma participação majoritária no clube. Quanta responsabilidade se pode razoavelmente esperar que os torcedores assumam aqui?
Não é a maior parcela, certamente. A União Europeia, tendo negociado um acordo sujo para garantir seu acesso a matérias-primas vitais, tem muito mais responsabilidade pelos crimes de Ruanda na RDC do que o Arsenal Football Club. O ouro que os Emirados Árabes Unidos arrancam do Sudão enriquece indivíduos e instituições muito além (e acima) do Manchester City. As poderosas empresas e governos que vendem armas para a Arábia Saudita são muito mais moralmente culpados pelos crimes daquele regime do que o Newcastle United ou seus torcedores.
A questão não é afirmar que os torcedores de futebol têm alguma responsabilidade especial — mas sim destacar como o esporte está inextricavelmente ligado às formas mais violentas e exploradoras de política. Podemos certamente esperar que os torcedores de futebol estejam, no mínimo, cientes disso, da mesma forma que deveriam estar cientes (e se opor) ao sexismo, ao racismo e à homofobia dentro do próprio esporte.
Eduardo Galeano, historiador socialista uruguaio, poeta e fanático por futebol, certa vez comentou que “o futebol nunca deixa de ser surpreendente”:
Ainda que os tecnocratas o programem nos mínimos detalhes, que os poderosos o manipulem, o futebol continua sendo a arte do imprevisível. Quando menos se espera, o impossível acontece: o anão dá uma lição no gigante.
É esperar demais que apenas os torcedores comuns consigam resgatar o futebol das garras dos monstros que atualmente o dominam e exploram. Mas, embora tal transformação possa parecer imprevisível no momento, como diz Galeano, às vezes o impossível acontece — tanto dentro quanto fora de campo.
Enquanto isso, sempre surgem oportunidades para atos de resistência e protesto. Em meio ao triunfo do PSG na Liga dos Campeões, torcedores do clube exibiram faixas de apoio a Gaza e entoaram gritos de condenação ao genocídio de Israel. Aproveitaram o novo perfil e o sucesso do time para amplificar mensagens de solidariedade àqueles que sofrem com a violência imperial: gritos de “Nous sommes tous les enfants de Gaza” [Somos todos filhos de Gaza] podiam ser ouvidos por todo o estádio em Munique.
Alguns podem acusar os torcedores do PSG de hipocrisia por não protestarem também contra os abusos de direitos humanos e a destruição ambiental perpetrados pelo patrocinador do seu próprio clube, o Catar. No entanto, ainda devemos aplaudi-los por priorizarem uma questão urgente que precisa desesperadamente ser destacada em todas as oportunidades (e que, para ser justo, o governo do Catar buscava resolver ou aliviar por meio de mediação, antes de Israel bombardear seu território para sabotar as negociações). Foi uma ação ocasional e improvisada por parte dos torcedores do PSG, mas é assim que o progresso político normalmente é feito e foi, à sua maneira, um gesto profundamente esportivo.
Andy Storey é ex-professor de economia política na University College Dublin.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.