Existem ultraprocessados “menos piores”?
O que é pior: consumir refrigerante ou pão de forma? Salsicha ou sorvete? Onda recente de reportagens tenta minimizar uma crise de saúde pública propondo “soluções” fáceis e usando “pesquisas” ligadas às corporações. Tudo tem cara de negacionismo soft…
Publicado 25/03/2025 às 17:14

Por João Perez, em O Joio e o Trigo
Poderia ser um debate saudável em vários sentidos. Bom para a ciência. Bom, diretamente, para a saúde das pessoas. Reportagens sobre a existência de “ultraprocessados menos piores” foram se multiplicando nos últimos meses. Matérias e artigos no New York Times, no Washington Post, no The Atlantic, no UOL…
Será que todos os ultraprocessados são tão ruins?
Afinal, todo ultraprocessado é ruim?
Quão ruim é um ultraprocessado?
As perguntas oscilam em torno de um mesmo tom. Afinal, será que no meio de uma inundação de produtos péssimos, a gente consegue encontrar categorias particularmente benéficas ou, ao menos, razoáveis? Tem como salvar alguém nesse navio?
A exemplo dos produtos que buscam discutir, esses textos parecem muito diversos entre si, mas não são. O que está em jogo é a tentativa de transmitir uma mensagem de que está tudo bem. De que quase nada precisa mudar no nosso sistema alimentar.
Ao mesmo tempo, o surgimento desse debate é sinal de que não dá para ignorar o elefante na sala. Sinal de que o avanço das evidências científicas mostrando a ligação entre ultraprocessados e impactos terríveis para a saúde soterrou o negacionismo raiz, tão forte lá no comecinho da década.
Todo o zumzumzum busca endereçar uma questão legítima: e agora? Se sabemos que os ultraprocessados são um problema dos grandes, o que fazer? É o próprio aumento da percepção pública negativa sobre esses produtos que dá combustível a essa discussão. Mas, na minha opinião, ficar buscando atenuantes não resolve – e pode atrapalhar.
Entre o conformismo e o negacionismo soft
Via de regra, os pesquisadores responsáveis por artigos que estimularam essa discussão poderiam ser divididos em duas vertentes. Aqueles que admitem que os ultraprocessados existem – e são um problema –, mas não concebem que a alimentação humana possa prescindir desses produtos. E aqueles que migraram do negacionismo raiz para um negacionismo soft.
É possível notar que, por bem intencionados que sejam os integrantes do primeiro grupo, muitas vezes eles estão oferecendo uma nova rota de fuga à acomodação dos interesses corporativos. E esse é um aspecto inescapável da discussão: desde a criação da Classificação NOVA, e com força crescente à medida que a teoria avançava, as críticas estiveram entrelaçadas aos interesses de corporações.
Uma brevíssima recapitulação: integrantes do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da Universidade de São Paulo, criaram há 15 anos uma classificação que divide os alimentos de acordo com o grau e o propósito do processamento.
Em vez de se concentrar na tradicional divisão por nutrientes, eles sugeriram olhar para aquilo que poderia estar mudando num país como o Brasil, onde os casos de doenças crônicas (diabetes, hipertensão, enfermidades cardiovasculares) vinham crescendo. Foi com base nisso que criaram quatro grupos. O mais inovador e estridente deles é o grupo 4, dos ultraprocessados.
O termo “alimentos processados” existia desde os anos 1960 para agrupar tudo o que era industrializado. Mas, vendo que o grau e o propósito do processamento de um macarrão era bem diferente do que acontecia com um Miojo, eles separaram o joio do trigo. Ou melhor: os alimentos processados desses outros. E criaram o termo ultraprocessados.
Ultraprocessados podem ser comidas e bebidas. Não são propriamente alimentos, mas formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos integrais. Essas fórmulas incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados ou concentrados proteicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada, amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial.
Nos primeiros anos, basicamente os integrantes do Nupens testaram a teoria. Mas o crescimento do volume de evidências foi chamando a atenção de outros pesquisadores ao redor do mundo: os ultraprocessados talvez fossem a resposta que se procurava há décadas para o agravamento das condições de saúde em virtualmente qualquer lugar do planeta. O vetor por trás do crescimento dos índices de diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Afinal, dos três primeiros grupos os humanos já vinham se alimentando há muito tempo, sem grandes problemas.
Nessa etapa, as críticas mais duras eram francamente negacionistas – e desqualificadas. A grande maioria dos pesquisadores era direta ou indiretamente vinculada à indústria. Essa é uma mudança interessante: buscamos por eventuais conflitos de interesses de alguns dos pesquisadores mais mencionados em reportagens. Existem, mas não são tão numerosos quanto na fase anterior.
Aparentemente, o que nutre as críticas deles à NOVA é uma visão de mundo de que não devemos empreender grandes mudanças. Tudo se resolve colocando o espinafre para fazer amizade com o Doritos.
Boa parte das evidências mais fortes em torno da NOVA foi produzida ao longo dos últimos cinco anos, e é nesse período que o tema ganha tração na opinião pública nos países do Norte. Começam, então, a surgir críticas mais diversas. Algumas delas tentam melhorar a NOVA ou lidar com angústias reais. Afinal, se num país como os Estados Unidos há quem tire 80% das calorias diárias desse tipo de produto, a mensagem de que eles são inerentemente nocivos pode ser desesperadora. O que essa pessoa comerá daqui por diante?
Sorvete e salsicha são irmãos
Imagine que a sua tarefa seja encontrar políticos do Centrão “menos piores”. Entre Hugo Motta e Gilberto Kassab, Arthur Lira e Eduardo Cunha, você enxerga uma grande diferença? Claro que entre centenas de parlamentares haverá nuances. Pessoas mais cordiais, pessoas mais sedentas por dinheiro, pessoas mais ávidas por cargos. Mas, a menos que você seja o ministro de articulação política do governo Lula, essas diferenças importam pouco ou nada.
Você poderia alegar que essa analogia padece de uma falha monumental: humanos – especialmente políticos do baixo clero – não são alimentos. Bom, ultraprocessados também não. Ultraprocessados são um corpo estranho dentro do sistema alimentar, criado à base de muito dinheiro público desviado da finalidade real de produção de alimentos. Exatamente como o Centrão, são uma captura de dinheiro.
Uma boa parte da construção da existência de “ultraprocessados menos piores” se baseia no lugar comum de que o grupo 4 da NOVA é muito vasto. De jeito nenhum um sorvete e um Miojo podem ser comparados. Reconhecer esse argumento seria negar justamente a genialidade dos cientistas brasileiros. Não era trivial enxergar semelhanças entre um biscoito doce e uma salsicha. Mas, ao final, todos eles seguem uma fórmula batida.
A engenhosidade da NOVA consiste em evidenciar que as corporações alimentícias de qualquer subsetor desenvolveram um método de produção que se assenta sobre a substituição de ingredientes integrais por fragmentos de ingredientes que só se transformam em algo palatável, com cheiro e com estrutura porque se somam a aditivos.

É compreensível querer entender se há categorias menos piores de ultraprocessados. Isso talvez faça uma diferença no dia a dia das pessoas. Por exemplo, ir até a prateleira do pão de forma sem medo de escolher uma grande tragédia seria bom.
Nesse sentido, é verdade que existem ultraprocessados menos piores. Um alimento que tenha como primeiro item da lista de ingredientes aquilo que seria o seu equivalente em uma lista de ingredientes caseira ou menos processada oferece um bom indício de algo que pode ser menos pior. Mas isso, ainda assim, seria insuficiente. O próprio pão de forma oferece algumas reflexões nesse sentido.
Normalmente, farinha de trigo será o primeiro ingrediente, e esse também será o primeiro ingrediente de um pão feito em casa. Isso me faz pensar em quão rebaixada é a nossa expectativa em relação aos ultraprocessados: só de usar algo banal, como farinha de trigo, já parece ótimo.
Mas, daí por diante, as quantidades e os tipos de gorduras, o uso ou não de ovos e leites, e especialmente a quantidade de aditivos podem fazer desse pão algo bem diferente. Para além da análise nutricional, interessa ver que há, no caso do pão de forma abaixo, uma estratégia corporativa que busca enganar as pessoas. Se nos centramos numa discussão meramente no nível dos nutrientes, estamos tirando de foco o fato de o ultraprocessado ser, política e ideologicamente, uma enganação.

Lista de ingredientes: Farinha de trigo fortificada com ferro e ácido fólico, açúcar, óleo vegetal de soja, glúten, vinagre, sal, emulsificantes: mono e diglicerídeos de ácidos graxos, estearoil-2-lactil lactato de cálcio e polisorbato 80, conservadores: propionato de cálcio e ácido sórbico, melhoradores de farinha: fosfato monocálcico, cloreto de amônio e ácido ascórbico e acidulante ácido cítrico e espessante carboximetilcelulose sódica
Em um artigo que será publicado em breve, Carlos Monteiro, autor principal da NOVA e ex-coordenador do Nupens, elenca perigos na mensagem sobre “ultraprocessados menos piores”. Ele dialoga com a crítica muito comum de que, ao colocar todos esses produtos no mesmo balaio, podemos estar tirando das pessoas nutrientes importantes.
“Para isentar esses ultraprocessados das listas daqueles cujo consumo deve ser reduzido, é necessário ter evidência de que sejam tão saudáveis quanto as versões caseiras ou menos processadas. Atualmente, essa evidência não existe. Uns poucos estudos que tentaram isolar o efeito de produtos densos em nutrientes dos padrões dietéticos de ultraprocessados usaram modelos analíticos que compararam eles com a média da dieta, excluindo ultraprocessados, sem correspondência com versões caseiras ou alternativas processadas ou minimamente processadas”, reflete o pesquisador.
Os vilões de sempre
O estudo disparador da recente série de reportagens sobre ultraprocessados menos piores foi conduzido nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, conhecidos pela sigla em inglês NIH. Basicamente, os pesquisadores cruzaram toda a evidência disponível sobre ultraprocessados e saúde do coração. Olhando apenas para doenças cardiovasculares, a conclusão é de que a evidência disponível permite dizer que dois grupos de ultraprocessados em particular (refrigerantes e carnes) estão ligados a um maior risco.
A maneira como a pesquisa foi divulgada deu lastro a que se pense que essas duas categorias – e apenas elas – são particularmente nocivas. Ah, vá. Então, todo esse carnaval em torno dos ultraprocessados só para chegar à mesma conclusão de sempre? É do senso comum que refrigerantes fazem mal à saúde. E há pelo menos uma década há consenso em torno dos problemas causados pelos embutidos, como salsichas, bacon e presunto. Não precisávamos da NOVA, então?
Calma que não é bem assim. Primeiro, no estudo em questão, um único desfecho em saúde apresentou resultados sólidos. Doenças cardiovasculares são, sem dúvida, uma preocupação das maiores quando se fala em alimentação. Mas sabemos da associação entre ultraprocessados e 32 condições diferentes de saúde.
Além disso, para algumas categorias de ultraprocessados, a evidência científica disponível em torno de determinadas condições de saúde é pequena. E é difícil de medir. Os refrigerantes são os vilões habituais, em parte, porque é mais fácil produzir evidência. Primeiro, nós não temos muitas categorias de bebidas. Segundo, o consumo de refrigerantes ao longo da segunda metade do século passado foi o que cresceu a olhos vistos.
Terceiro, a gama de alimentos sólidos é muito maior, ou seja, não é trivial isolar determinados fatores. É inviável fazer com que mil pessoas comam apenas Miojo durante uma década para depois tirar conclusões. Porém, o estudo clínico que temos, ao manter um grupo reduzido de pessoas confinado durante quatro semanas, chegou a resultados alarmantes quanto aos problemas causados pelos ultraprocessados – como um todo, e não como uma categoria isolada.
Nas mãos dos especialistas
Uma reportagem do UOL nos ensina que as “opções melhores são aquelas que possuem uma lista de ingredientes menor ou que não contêm aditivos químicos, conservantes ou corantes artificiais em excesso”. Bingo! Achamos os ultraprocessados do bem? Não. Achamos os processados. Todos os exemplos listados pelo texto são tipicamente processados.
O mesmo acontece em uma reportagem publicada em janeiro no The Washington Post. O jornal anuncia orgulhosamente ter testado dez categorias de ultraprocessados para descobrir quais são as menos piores. Adivinha. Sim, os menos piores são, de novo, produtos processados. Faltou aos repórteres entender que um ultraprocessado feito de ingredientes integrais e sem aditivos não é um ultraprocessado. Em resumo, essa discussão não precisaria nem existir.
As reportagens sobre ultraprocessados menos piores repetem quase sempre a mesma dinâmica. São entrevistados dois pesquisadores: um francamente crítico à NOVA, outro ligeiramente crítico (uma pessoa que está buscando refinar a teoria ou a nossa compreensão sobre a teoria). Uma brincadeira típica de bad cop, good cop que busca afastar a reportagem em questão dos artigos de primeira hora contra a NOVA, abertamente negacionistas.
Ainda assim, essa abordagem tenta restituir a primazia dos especialistas sobre as escolhas alimentares de todo mundo. São eles que devem nos orientar. Leiam os rótulos! Não caiam em pegadinhas! Tentem comer algumas frutas e verduras! Esse é mais um ponto contrário à essência da NOVA e, mais importante, à essência do Guia Alimentar para a População Brasileira, que busca devolver às pessoas a autonomia em torno do que devem comer.
Para isso, aposta-se em romper com a abordagem reducionista em torno dos nutrientes – o chamado “nutricionismo”, fusão de nutrição com reducionismo. Uma das reclamações frequentes nessas reportagens é de que a NOVA passa à margem dos nutrientes. A julgar por essa visão, deveríamos todos continuar enlouquecidos contando calorias, carboidratos e proteínas, independente do produto que seja o carreador desses nutrientes.
Devemos passar horas lendo rótulo por rótulo. De novo, a discussão se resume à prateleira do supermercado. A uma perspectiva individual de que “bom, se eu resolver minha parte do BO, os outros que se virem”. Resumindo, a abordagem sobre “ultraprocessados menos piores” se baseia em premissas reacionárias.
“Se você come regularmente alimentos ultraprocessados nas refeições — como uma barra de frutas embalada no café da manhã ou uma refeição congelada no jantar — continue fazendo isso”, diz uma reportagem do The New York Times. “Mas adicione uma fruta ou vegetal ao seu prato. Pode ser uma maçã no café da manhã ou um pouco de brócolis no jantar.”
Em resumo, a proposta feita pelo McDonald’s vinte anos atrás segue vigente: coloque uma maçã ao lado do Big Mac para expiar sua culpa. A questão é que não somos crianças. Podemos perfeitamente lidar com a ideia de deixar de comer uma lasanha congelada da Sadia no jantar. E comer frutas porque são gostosas, e não porque precisam ser uma companhia desagradável para um congelado qualquer.
Todo esse somatório de abordagens nos conduz ao incômodo maior, pelo menos da minha parte, com essa discussão sobre ultraprocessados menos piores: o conformismo. Esse é um tema que, como tantos outros no século 21, nos coloca diante de uma enorme encruzilhada. Escolher a rota das pequenas mudanças não altera o status quo, o que pode até ser bom do ponto de vista do conforto de sociedades que ao longo de décadas se acostumaram a comer o que não é comida. Podemos trocar o Arthur Lira pelo Hugo Motta. Claramente não é o suficiente.
Não é normal defender que a gente continue comendo o que faz mal. Isso soa particularmente sinistro quando se trata de crianças, que, segundo um corpo crescente de evidências científicas, podem sofrer com dependência de ultraprocessados. Nós defenderíamos que as crianças continuem fumando vape, desde que somem a isso uma maçã? Ou que coloquem uma folha de alface dentro do copo de rum?
Essa mensagem conformista retira pressão dos atores que criaram o problema. Estamos absolvendo as corporações que têm sistematicamente defendido que seus produtos são melhores, mais gostosos e irresistíveis. As forças econômicas que foram, dia após dia, trocando ingredientes integrais por fragmentos de ingredientes. Que somaram milhares de aditivos às nossas dietas sem pedir autorização.
Unicamente na base do “nós somos especialistas e sabemos o que estamos fazendo”.
De fato, existe algo que apenas as corporações podem fazer: contar qual a função de cada um desses milhares de aditivos agregados aos produtos. Essa, sim, seria uma boa maneira de transformar o mundo dos ultraprocessados. Se retirarmos os aditivos que entram em um produto para conferir sabor, cor e cheiro, ou seja, para tapeação, teremos um consumo alimentar muito mais próximo do desejável. Os ultraprocessados passariam a ser os processados de sempre, e aí, sim, talvez pudéssemos discutir quais são melhores e piores. Enquanto isso, no final das contas, um ultraprocessado é só um ultraprocessado.
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