Ensino superior à distância: um debate inadiável

Multiplicam-se cursos EaD oferecidos por corporações privadas. Muitos são caça-níqueis, com até 2,6 mil alunos por professor. Portaria do governo Temer isentou-as de supervisão – e segue em vigor, produzindo precarização do ensino e do trabalho docente

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Por Dyogo Patriota, no Le Monde Diplomatique

O setor de educação superior, do modo como está constituído, dificilmente formará um consenso sobre o ensino a distância. Interessa entender se seu crescimento nos últimos anos foi ou não um erro e se tal modelo deve ser extinto. Dados concretos demonstram que o EaD está profundamente relacionado à precarização do trabalho dos professores. Uma parte dos integrantes do setor diz que o modelo serviu à captação de alunos pobres moradores de regiões nas quais não há IES próximas. Entretanto, tais localidades, no momento presente, são poucas e não justificam a difusão ingente dessa modalidade de ensino.

O ensino superior surgiu no país por uma necessidade de letramento dos filhos dos colonos e de religiosos em instituições, principalmente, confessionais. A estatização dessa política dependeu da chegada da família real ao Brasil em 1808. Houve a criação de faculdades isoladas de medicina e de direito, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e em São Paulo. Com isso, o setor de educação superior foi engendrado para ser “não lucrativo ou não empresarial”, havendo uma forte similaridade entre as instituições públicas e as confessionais e comunitárias, que pareceram todas as demais.

No fim do século XX, a Constituição e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) permitiram a exploração da atividade de educação pela iniciativa privada. O setor adquiriu conotações de livre mercado. Decorrente disso, porém de forma não previsível, houve a financeirização do ensino superior (principalmente nos últimos 20 anos), com a constituição de sociedades anônimas de capital aberto; criaram-se os grandes Conglomerados Empresariais Educacionais. Pode não ser claro, mas há poucas semelhanças entre uma empresa de educação comum e um Big Player Educacional, embora ambas trabalhem conforme a lógica do lucro.

Os Big Players Educacionais são produto da “financeirização da educação superior” e causam o maior tensionamento já visto com o Ministério da Educação, que tem sido constantemente fragilizado. O EaD, que é uma das premissas para compreender essa conjuntura, é hegemonicamente ofertado por essas sociedades anônimas. A Portaria MEC n.º 11/2017 (conhecida como “bônus regulatório”), permitiu a abertura de 50, 150 e 250 polos a distância sem supervisão prévia. Na prática, o MEC abriu mão de auditar essa atividade. O resultado disso foi auferido pela apresentação dos dados do “Censo da Educação Superior-INEP” (ano base 2022). Ali, há informações relevantes, como o fato de quatro IES reterem 23% dos alunos nessa modalidade e da proporção de professor por alunos, que chega a 1 para cada 2.594 graduando em alguns casos.

O setor de educação superior traz as entidades estatais, as comunitárias e as confessionais como líderes no ensino presencial. Já os Big Players dominam o ensino a distância. No ano 2000, havia 1.682 matrículas nessa modalidade. Foram necessários 10 anos para alcançar cerca de 1 milhão de alunos. Após o bônus regulatório o crescimento do EaD foi exponencial.

Mas, afinal, quem são os alunos do ensino a distância? São pessoas mais velhas, de classes sociais menos favorecidas, divididos entre a primeira e a segunda graduação. Isso explica a agressividade nos preços das mensalidades tendo em conta o público alvo. No entanto, a redução da contraprestação financeira vem com cortes de custos em instalações físicas, monitorias, professores e materiais didáticos. A fórmula para isso é a padronização da educação e a autoaprendizagem superlativada.

Os EUA e Austrália têm amplos programas de financiamentos estudantis, com bilhões de dólares envolvidos; Israel financia quase 70% do custo das Universidades e de seus estudantes; o Tribunal Constitucional Alemão criou, ainda nos anos 1970, o instituto “a reserva do possível” para limitar o direito dos cidadãos de dispor do orçamento público para o ingresso ao ensino superior, já que não havia recursos suficientes para abarcar todos os pretendentes. Então, como é viável ofertar cursos de EaD com qualidade por R$49,99 ou R$99,99 no Brasil?

O Ministério da Educação é outro dos sujeitos centrais que compõem essa equação. Existem indícios de que esse órgão tenha tido uma forte perda de credibilidade. Um dos motivos para isso está no fato de que diversas matérias de sua competência foram levadas ao Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade, isso é um indício da perda de capacidade dele de resolver os temas educacionais de modo administrativo e definitivo. Entre os casos mais recentes que podem ser citados estão a redução compulsória de mensalidades (ADPF n.º 706-DF), a discussão sobre o total de bolsas que podem ser concedidas via PROUNI (Reclamação Constitucional 57.525-DF) e as autorizações de cursos de graduação em medicina (ADC n.º 81-DF e ADI n.º 7.187-DF).

A intenção é conclamar o Ministério da Educação a proporcionar igualdade aos sujeitos dessa relação. Não há, aqui, uma condenação a priori do EaD. Mas a maneira pela qual está sendo desenvolvido o ensino a distância não atende aos interesses nacionais do Brasil. O país não se desenvolve, o PIB cresce aos solavancos e não há influência relevante no processo de letramento de seu povo.

Dyogo Patriota é assessor jurídico do Crub e da Abruc.

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