Em SP, novo caso de “revitalização” racista

A toque de caixa, prefeitura ameaça despejar 400 pessoas no Largo do Paissandu, território de resistência negra no centro. Moradores e defensoria são ignorados. O plano: colocar imóveis abaixo para beneficiar grupos privados de educação

Prefeitura quer fazer uma PPP para administrar uma espécie de centro cultural no Largo do Paicandu em quatro prédios da região, dois deles já ocupados (Foto: SP Negócios/YouTube/Reprodução)
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Por Clara Assunção, na Rede Brasil Atual

Pelo menos desde 2009, o prédio colorido do início da Avenida Rio Branco quase em frente ao Largo do Paiçandu, no centro da cidade de São Paulo, é lar de cerca de 400 pessoas. São adultos, idosos e crianças que movimentam os três pavimentos do chamado Complexo Boticário. Ali, décadas atrás, funcionavam dois hotéis – Lincoln e Visconde –, além do Cine América. Como é comum na região, o edifício chegou ao estado de abandono após o fechamento dos estabelecimentos, se não fosse pela ocupação popular. 

Passados 13 anos, a moradora Jomarina Fonseca, de 65 anos, ainda lembra o esforço que uniu um grupo de pessoas vulneráveis, sem teto e praticamente sem renda para reformar um dos blocos do que hoje tornou-se a Ocupação Rio Branco. “Era um prédio abandonado, todo quebrado, sem janelas e portas. Quando nós entramos, reformamos todo o imóvel. Colocamos piso, torneira e encanamento. Tivemos que reformar tudo para virar moradia”, comenta ela. 

Porém, apesar do endereço agora estabelecido, desde o início do ano os moradores da ocupação vivem sob clima de tensão. Eles temem ser despejados a qualquer momento. Isso porque a prefeitura de São Paulo quer construir o que chama de Núcleo Paiçandu Cultural no local e em outros três edifícios do entorno. As famílias denunciam, porém, que não foram levadas em conta na proposta que pretende retirar suas casas para a locação de apartamentos a estudantes. 

Tem alguém lá?

O projeto estava em fase de consulta pública desde o dia 9 dezembro do ano passado. Mas ele só chegou ao conhecimento das famílias quando, no dia 3 de janeiro, uma repórter do jornal O Estado de S. Paulo procurou Jomarina com a minuta da proposta, que estabelece que todos os quatros prédios sejam explorados comercialmente por meio de Parceria Público-Privada (PPP) por até 25 anos. 

“Não sabíamos de nada”, lamenta a moradora, que é também coordenadora do Movimento de Moradia Central e Regional (MMCR), que administra a Ocupação Rio Branco. “Como eles fazem um projeto para o prédio sem considerar as famílias? Não existe isso. Eles (da prefeitura) sabem o que querem fazer com os prédios, mas com as famílias eles não têm proposta”, contesta. 

Além da Ocupação Rio Branco, o Complexo Boticário também é sede de um centro de acolhida à população de rua, de uma segunda ocupação e cinco comércios no andar térreo. Segundo o plano do governo Ricardo Nunes (MDB), parcialmente exposto em uma audiência pública no dia 10 de janeiro, a ideia é transformar o local em um condomínio residencial com 308 apartamentos, de 28 metros quadrados cada, para serem alugados por estudantes.

Uma parceria privada

A PPP também poderá atuar sobre o próprio Largo do Paiçandu, previsto para receber quiosques para exploração comercial. Segundo a proposta, o local deverá ser adaptado para operação de um Centro Educacional de Ensino Superior para 3.100 estudantes. A iniciativa privada será responsável pelo equipamento, mas os quatro primeiros pavimentos deverão ser de gestão da Secretaria de Cultura. 

O prédio do cine Art Palácio, tombado pelos conselhos do patrimônio histórico do município (Conpresp) e do estado de São Paulo (Condephaat) também foi incluído na PPP. Ele deverá ser restaurado, mas será adaptado, segundo o governo Nunes, para a construção de 59 unidades de apartamentos para estudantes. A proposta também é restaurar o antigo cinema para se tornar um centro cultural com capacidade para receber até 3 mil pessoas.

A PPP inclui, por fim, o edifício Independência, famoso por abrigar o tradicional Bar Brahma no térreo. Seus pavimentos deverão ser remodelados pela parceria, para depois serem destinados à locação empresarial. 

Defensoria recomendou suspensão

Durante a audiência pública, na ocasião, os movimentos sociais, moradores, arquitetos e urbanistas tiveram um minuto e meio de fala cada para questionar a PPP planejada para Largo do Paiçandu. Dentro deste limite, tentaram apontar as contradições e a gravidade da ausência de uma proposta de moradia para as famílias. A expectativa de despejo sem alternativa dos moradores que há mais de uma década estão no local também foi destacada pelo Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo. 

No dia 19 de janeiro, o órgão chegou a emitir uma recomendação ao prefeito para que fosse suspenso o projeto. Segundo a Defensoria, faltou a apresentação de estudos fundamentando a PPP. Além disso, a administração municipal deveria contrapor o projeto com outras formas de intervenção que “privilegiem a permanência das famílias em suas moradias, associada a melhorias em condições de habitabilidade e segurança”, destacou os defensores. 

O ofício cobrou também a anulação da audiência pública do dia 10 de janeiro. De acordo com o documento, o evento “não permitiu a adequada contribuição do público”. Os moradores também se queixaram de que só souberam da audiência por conta da imprensa, sem nenhuma consulta ou comunicação por parte dos órgãos competentes. 

Prefeitura de São Paulo ignorou

Nesta quarta (15), a Defensoria Pública confirmou à RBA que o poder municipal recebeu o ofício do órgão, mas rejeitou as recomendações. Procurada, a prefeitura não comentou a decisão. A gestão Nunes destacou somente que a parceria público-privada “consiste em uma frente ampla para ativação e revitalização da região central do município”, argumento amplamente contestado. 

“Eu não sei para eles (da prefeitura) o que significa essa palavra, ‘revitalizar’ o Centro, porque o Centro já existe”, adverte Jomarina. “As famílias que moram ali no movimento de moradia já têm essa função, eles já fazem isso. Todo mundo estuda, trabalha, participa de tudo, ato cultural, tem movimentos com times de futebol, com escolinha. Isso o movimento já faz. O sentido de revitalizar para eles é tirar pobre e jogar na periferia? Porque eles querem fazer um projeto para estudantes e a gente sabe que esses estudantes não são pobres”, completa a líder comunitária. 

Desde 1997 acompanhando a luta por moradia em São Paulo, o advogado e coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP), Benedito Roberto Barbosa, o Dito, desconfia que a PPP deverá ser entregue a um grupo privado de educação. Durante a única audiência sobre o projeto, o governo municipal falou, por exemplo, na oferta de bolsas integrais que o parceiro privado deverá ofertar nos centros e com atividades gratuitas. Até 50% das moradias estudantis deverão também ser ofertadas para bolsistas. 

PPP é projeto de remoção

Dito observa que essas PPPs têm sido o principal eixo de política habitacional da cidade. Mas o resultado que elas mais produzem, em comum, são as remoções. Ainda em 2018, a prefeitura e a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) lançaram a parceria público-privada Casa da Família, abrangendo as comunidades Futuro Melhor e do Sapo, na zona norte. 

No local há 20 anos, as famílias descobriram apenas meses depois que o terreno onde moravam havia sido destinado a empresas privadas. Elas também foram desconsideradas na audiência pública. Dois anos depois, conforme reportou a RBA na época, pelo menos 5,5 mil pessoas já haviam sido removidas.

“É um projeto que a gente sabe que depois a maioria das famílias pobres não entram. Porque essas parcerias público-privadas são financiadas pelo setor privado, construídas e organizadas por ele, que depois vende literalmente esses espaços e as pessoas que não têm dinheiro não conseguem comprar. Outra coisa é que isso causa ainda um impacto no valor dos aluguéis no território e provoca um processo não só de remoção direta, mas também de remoção indireta”. 

Território negro de São Paulo

“No caso do Paiçandu é mais escandaloso ainda porque é um território popular com diversos grupos culturais. Tem também a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Lá é um território negro”, lembra o advogado. 

Foi nesse endereço na região central que, em 1978, em plena ditadura, o Movimento Negro Unificado passou a denunciar a violência policial contra a população e a questionar a celebração do 13 de Maio, data da assinatura da Lei Áurea, de 1888. Embora palco de uma série de manifestações do movimento antirracista há décadas, esse histórico cultural também não é contemplado na PPP que, segundo a administração Nunes, faz parte da iniciativa “Todos pelo Centro”. “Essa proposta vai levar ao embranquecimento do território e à exclusão de diversos grupos culturais”, acusa Dito. 

“Na verdade não é ‘Todos pelo Centro’. São todos empresários e especuladores pelo Centro. Porque se fosse pelo Centro, ele incluiria a população em situação de rua, as famílias sem-teto e os trabalhadores ambulantes. Mas, em geral, é para expulsar todo mundo o que eles estão fazendo. A prefeitura, com essa proposta, não disse como vai tratar e o que vai acontecer com os diversos grupos culturais. Os grupos de religiões africanas, a igreja, as ocupações que estão ali no entorno do Art Palácio, do Boticário e da Rio Branco, além de outras. Porque tudo isso acaba impactando nas outras ocupações”, conclui o advogado. 

De outros carnavais

Há 18 anos, o bloco afro Ilú Obá de Min encerra seu cortejo de carnaval pelas ruas do centro de São Paulo no Largo do Paiçandu, alvo do novo projeto de Ricardo Nunes. Mas, apesar do reconhecimento pelo território, ainda hoje a instituição de arte e cultura negra – e feminina – não tem uma sede própria e realiza seus trabalhos por meio de parceria com os movimentos de moradia do entorno. 

A ocupação cultural Ilú Obá de Min também vem se articulando contra a proposta de intervenção da prefeitura. Um dos edifícios, o Art Palácio, era reivindicado para sediar o grupo.

Nesta sexta (17), às 18h, quando o bloco participa da abertura oficial do carnaval de rua na capital paulista, o protagonismo da festa será da filósofa, escritora e uma das fundadoras do Geledés – Instituto da Mulher Negra, Sueli Carneiro. Depois de três anos sem desfilar, o Ilú homenageará uma das principais referências do país com o tema Akíkanjú que, em iorubá, significa bravura e coragem que serve a um coletivo. 

O que terá uma dimensão ainda maior neste ano diante da resistência que une movimentos contra a PPP do Paiçandu, como destaca a coordenadora do Ilú e arte-educadora, Daiane Pettine. “Revitalização para a gente é dar espaço digno para as pessoas morarem. É trazer cultura para essa área, uma cultura que tem uma ligação histórica de ancestralidade com aquele espaço. Nós entendemos que não há cultura sem educação, moradia e saúde. A cultura está dentro de um plano diretor de políticas públicas. E o Ilú não quer de forma alguma ser visto como uma instituição que está desassociada de qualquer luta social com dignidade da população”, defende a artista. 

O que dizem os citados

O Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública informou, em nota,  que “está agendando com os movimentos sociais e demais atores envolvidos uma reunião para deliberar as providências a serem tomadas”. 

Questionada sobre as críticas dos movimentos de moradia, o governo Ricardo Nunes respondeu apenas que está consolidando os apontamentos feitos em consulta pública aberta até o dia 15 de janeiro. “Inclusive aqueles relativos à habitação, e estudando a adequação e aperfeiçoamento para eventual lançamento de Edital final”, afirmou, por meio de assessoria de imprensa. “A Secretaria Municipal de Habitação (Sehab) tratará das ocupações dos edifícios e tomará todas as providências cabíveis para o tradicional atendimento das famílias envolvidas”, concluiu.

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