As redes invisíveis que humanizam a Cracolândia

Na história e na ação de Janaína, um sinal dos laços solidários tecidos pelos moradores para assegurar saúde e moradia. A saga é diária: governo e prefeitura encerram canais de diálogo e impõem PPPs que segregam e expulsam

Ilustração de Carol Ito
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O ambiente em que estamos é um apartamento dentro de um prédio ocupado. Somos recebidas por Janaína e sua família: as filhas, uma delas bebê de colo, que mama enquanto conversamos, cachorros que ouvimos ao fundo e um filhote de gato, que se aninha no sofá, ao lado dela. 

“A saúde não vem na ocupação”. É assim que começamos a falar sobre como foi passar a pandemia no centro de São Paulo, na região da Cracolândia. Quando estávamos marcando a entrevista, Janaína não conseguiu no dia combinado, porque passou mal, ficou com medo de estar com COVID-19 e foi tentar atendimento no hospital. Antes de mudar para essa ocupação, era atendida em uma UBS também no centro da cidade, mas a mudança de endereço mudou sua referência para outro local, mais longe e mais difícil de ir, fazendo com que perdesse o dia, um luxo que quase nunca pode se dar, para acessar um direito básico que é a saúde. 

O medo de ser COVID-19 era porque, durante a pandemia, já havia ficado doente duas vezes. Se tratou em casa, porque não tinha com quem deixar os filhos. Esse foi o único período em que conseguiu fazer o isolamento indicado pelos órgãos de saúde. Também foi neste entremeio que engravidou e teve a filha que carregava no peito enquanto falava conosco. 

Todo o resto da pandemia, Janaína passou saindo, sempre para ajudar alguém. Isso acontecia desde antes, mas com a crise sanitária nos contou que a demanda aumentou muito. Ela é uma figura conhecida na região da Luz. Liderança comunitária, referência na atuação com pessoas em situação de rua e usuárias de drogas, principalmente ali na denominada Cracolândia. 

A rede que construiu durante anos de trabalho voluntário e coletivo, segundo ela, foi essencial nesses últimos anos: “se falta algo, tem sempre alguém para estender a mão”. Apesar disso, quando o assunto é contar com serviços da saúde, por exemplo, para atender essa população, a situação é oposta. Ela nos contou de um caso recente em que tentou ajudar um homem, alcoolizado, que quase convulsionava na rua. Tentou acionar algum serviço de saúde para buscá-lo, mas disseram que não poderiam ir até ele. Ela, então, só conseguiu levá-lo ao CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] por ter tido ajuda de outra pessoa para carregá-lo até lá.

Outra luta de Janaína é em relação à moradia. Quando a Cracolândia foi concentrada, em 2021, na praça Princesa Isabel, que fica na frente do prédio onde mora, ajudou diversas famílias a se juntarem a ocupações como a dela.

A importância da luta por direitos e dessa rede construída na região é presente nas falas de muitas pessoas que vivem e frequentam o território. A importância dela nessa rede e nessa luta também. Janaína nos falou sobre uma máxima importante para o trabalho da redução de danos, que é a identificação. “As pessoas que orientavam a gente durante a pandemia não falavam nossa língua”. Ela, como alguém que já foi usuária de drogas, conhece e é reconhecida por seus pares. Assim, foi capaz de também ser uma fonte de informações e construção conjunta de estratégias que fizessem sentido para aquela realidade. Isso tudo junto de outras pessoas voluntárias e movimentos do território. 

Apesar de potente, essa rede não é a única atuante na região. As forças de segurança pública sempre estiveram e seguem presentes ali, representando as intenções dos governos municipal e estadual para o território. Isso pode ser visto com as escolhas de intensificar as operações policiais ao mesmo tempo em que serviços de saúde e assistência foram sendo fechados. “O Atende ser fechado foi a pior besteira que esse governo já fez”, afirmou Janaína. 

O movimento de concentrar o fluxo da Cracolândia na praça Princesa Isabel se transformou, em 2022, na expulsão dessas pessoas da praça, quando ela foi cercada por grades. Essa movimentação não foi espontânea: com as operações policiais espalhando as pessoas pelo centro de São Paulo, de acordo com ela, ficou mais difícil ajudá-las com encaminhamento para abrigos ou ocupações e para atendimentos de saúde. 

A tentativa dos governos de acabar com a Cracolândia, no entanto, não é história nova. Janaína é conselheira da quadra 36, alvo de especulação imobiliária, e que foi pauta de movimentos como o Fórum Aberto Mundaréu da Luz por anos. Em 2018, enfim, pessoas que moravam e trabalham ali foram desapropriadas para dar lugar a um prédio, fruto de uma Parceria Público-Privada (PPP) do então programa Minha Casa, Minha Vida. “Tiraram as pessoas das suas casas para levantar a PPP, mas quem era dessas quadras ficou sem nada”. Ela mesma está na fila do programa há anos, mas os prédios da região são destinados à faixa de três salários mínimos, valor que não abarca as pessoas que há anos viviam na região. O mesmo aconteceu com as quadras 37 e 38 nesse ano.

Enquanto isso, Janaína vive com medo das crescentes reintegrações de posse, que deixam famílias, que não têm como pagar aluguel, desamparadas. Além disso, as violações de direitos que atingem quem ainda está no território, pessoas indesejadas pelo poder público, seguem sendo testemunhadas por Janaína, por sua família, por todas as pessoas e movimentos que resistem ali, mas têm medo de denunciar pelos canais oficiais, por medo de retaliações. 

No meio disso tudo, a construção de novas estratégias de resistência parece ser comum a quem vive o território, e a principal delas é a atuação em coletivo. Como Janaína nos disse: “Às vezes a gente só consegue resolver no grito, e eu tô na briga”. 

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