Dowbor: Não chame de capitalismo – é muito pior
Economista faz diagnóstico da revolução digital, em que riqueza é mero sinal magnético. Como sistema de dreno financeiro, com proprietários ausentes, captura dados e patentes? Que danos socioambientais e vítimas já causaram – tudo com remunerações fabulosas e livres de impostos?
Publicado 14/05/2025 às 19:10

Ladislau Dowbor em entrevista a Paulo Silva Junior, no blog da Elefante
O termo parece defasado. Chamar de capitalismo já não dá conta de descrever o sistema em que estamos inseridos. Precisamos aprofundar as noções da revolução digital, do conhecimento como fator de produção e do rentismo, esse mecanismo de exploração por excelência. Quem sabe aí, para além do diagnóstico, podemos elaborar melhor os desafios a serem enfrentados, já que eles são novos, mais perversos e estão aí, nos atropelando.
Leia a entrevista
O senhor começa o livro dizendo que nas últimas décadas as coisas mudaram, se referindo ao funcionamento daquilo que a gente se acostumou a chamar de capitalismo. E as coisas mudaram, então, muito por conta dessa revolução digital que tornou a lógica muito mais dura, acelerando a desigualdade e numa base pouco produtiva. Que novo sistema é esse? Qual é o centro da ideia desse livro?
Você sabe que nós temos uma mudança profunda que a gente pode pegar, por exemplo, através do trabalho do André Gorz, sobre o imaterial. O dinheiro hoje é essencialmente um sinal magnético. O dinheiro, esse papel impresso pelo governo, representa no mundo cerca de 5% apenas da chamada liquidez. 95% são apenas sinais magnéticos, anotações em computadores. Isso permite o dinheiro circular na velocidade da luz, enfim, em todo o planeta, praticamente sem controle.
Isso muda profundamente, porque se eu voltei de Angola e o pessoal queria saber, na alfândega, se eu estava com mais de 5 mil dólares na mala. Mas você vai no BTG Pactual e pede para transferir milhões para um paraíso fiscal, só aperta enter. De certa maneira, nós estamos em outra dimensão. Então, o dinheiro é imaterial.
A outra dimensão é que o conhecimento, o conjunto das informações que a gente tem, o mundo da informação, ele se tornou essencialmente também um sinal magnético. É imaterial. Todo o sistema de informação que a gente usa, hoje o Facebook, o Amazon, o Google, a Microsoft, enfim, o chamado GAFAM, todo esse sistema lida essencialmente com o imaterial. Então, de certa maneira, temos uma desmaterialização da economia no geral, e isso está levando a outras regras do jogo, outra forma de organizar a economia, porque quando você está online não existem fronteiras, não existe de que lado você está, territórios, coisas do gênero. É interessante o título de um livro americano: O Espaço Morreu. Na realidade, você está no mundo.
Um segundo eixo é a conectividade global. Em poucos anos praticamente todo mundo terá acesso, através do celular no bolso, do computador, de diversos meios. Eu posso puxar um artigo de um amigo do Japão em frações de segundos, ele está aqui no ar, meu celular pega. Ou seja, o conhecimento banha o planeta, são sinais magnéticos, e nós temos as gigantescas infraestruturas, que são tanto os satélites em volta da Terra, como a rede de cabos e de fibra ótica que está em todo o planeta, que atinge praticamente, ou está em vias de atingir, todos os lugares do mundo.
Então você gerou uma conectividade planetária, e isso desloca radicalmente a visão de economia. Não é mais o cara que faz a fábrica naquele bairro — tem o dono da fábrica, que contrata trabalhadores e paga mal os trabalhadores, mas para lucrar com os trabalhadores ele tem que pelo menos gerar emprego para eles, tem que gerar produtos. Agora, esse sistema imaterial é diferente. Quando, por exemplo, uma empresa está em Genebra, tem uma Asset Management (gestão de ativos) dessa empresa que pega o empréstimo no Japão a 3% ao ano, compram títulos do governo aqui no Brasil a 14,25%, e, sem sair de Genebra, sem sair da frente do computador, ganha rios de dinheiro, desviando parte dos nossos impostos para lucros financeiros. De certa maneira, se você junta o imaterial com a conectividade planetária e a capacidade de grandes grupos internacionais controlarem o conjunto do sistema dessa conectividade, que é justamente o GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, e hoje se acrescentam alguns), você mudou o sistema.
E do que a gente está chamando isso agora?
Por exemplo, a Mariana Mazzucato chama isso de capitalismo extrativo, porque o pessoal que ganha esse dinheiro dessa maneira, sem produzir, está extraindo riqueza simplesmente. Você vai ter um trabalho de Shoshana Zuboff que mostra que essa conectividade global permite a grandes grupos internacionais puxar informações nossas, informações privadas, do nosso computador, dos nossos celulares, e criou o que ela chama de capitalismo de vigilância. O Robert Reich chama de capitalismo corporativo, o Bauman chama de capitalismo parasitário, o Varoufakis chama de tecnofeudalismo.
Quer dizer, você tem um conjunto de pesquisadores de primeira linha internacional, por exemplo, o Stiglitz, que é um prêmio Nobel de Economia, que foi economista-chefe do Banco Mundial, e chama isso de diversos adjetivos, porque o sistema mudou. Agora, a minha visão nesse livro é o seguinte: eu pego e sistematizo as diversas mudanças e vejo que isso está criando uma outra coisa. Ou seja, a forma de apropriação do excedente social, do que as populações produzem pelas elites, mudou.
Não é mais um cara que tem uma fábrica e está explorando os trabalhadores através da mais-valia. Hoje são sistemas financeiros que exploram de maneira absolutamente radical, como o exemplo que eu dei de especulação financeira. E se trata também de uma economia oligopolizada. A gente usa o exemplo do Paxlovir, que é um medicamento, não é vacina, é um medicamento para a Covid, e esse medicamento está sendo vendido pela Pfizer a US$1.390 a caixinha. A Universidade de Harvard fez a pesquisa, viu que o custo de produção desse medicamento é de US$13. O comentário da empresa é que você precisa ver o valor que você dá à sua vida, e não o custo da nossa produção. Estamos nesse nível diferente, que não é voltar a regular o capitalismo, porque o que a gente está enfrentando não é mais capitalismo, é um sistema global de dinheiro imaterial, extremamente fluido, controlado por um oligopólio planetário, que exige outras medidas, outras formas de enfrentar o sistema.
E nessa área do conhecimento, o livro vai chamar de “conhecimento como principal fator de produção”, e a gente vai passar por temas como esse controle da produção, por exemplo, na área de entretenimento, onde quem produz o filme é também dono dos meios de comunicação e distribuição, ou mesmo tratar, na universidade, do custo de acesso a livros e textos. Enfim, conta um pouco como é que tem se relacionado esse controle do campo das ideias a esse sistema novo que a gente está tratando.
Hoje nós estamos enfrentando um oligopólio planetário. Eu fiz um artigo para a Universidade da Califórnia, a pedido deles. Não me pagaram nada, me convidaram porque eu tenho currículos, conhecem os meus trabalhos, é investimento meu. Eles navegam nisso, pedem o artigo, eu escrevi o artigo, publicaram. Mas eles terceirizam a publicação dos artigos com a Sage, que é um grupo internacional de publicação de artigos científicos. A Sage me manda o artigo dizendo que eu posso acessar durante 24 horas. O meu artigo que eu escrevi, que não me pagaram, mas que se eu quiser ler amanhã eu tenho que pagar US$34 por 24 horas. Depois eu recebi uma sugestão para recomendar aos meus amigos que leiam o meu artigo. Ou seja, para ler o meu artigo a cada 24 horas, sem poder gravar no seu computador. Uma fortuna. Na realidade, por que é isso? Porque você coloca entraves ao acesso.
Isso aí tem uma batalha contrária, que é o Open Access, que é o Creative Commons. Por exemplo, você pega o meu site, tem cerca de 1.500 títulos, nós somos uma rede que disponibiliza tudo online gratuitamente, o que não me gera custos, mas que permite que mais gente acesse esse conhecimento. O conhecimento, uma vez criado, pode ser generalizado para todo o planeta sem custos adicionais. Os chineses traduziram o livro meu, A era do capitão improdutivo [no Brasil, por Autonomia Literária e Outras Palavras], e não me tira a pedaço o fato de um monte de gente na China ler o meu livro.
Se eu pego o meu celular, eu tenho lá, quando muito, 5% de trabalho físico e de matéria-prima. Quer dizer, a indústria. 95% do valor do celular é conhecimento incorporado, são ideias. Essas ideias podem circular pelo planeta. Daí a batalha dos grandes grupos internacionais, pega Ed Server, por exemplo, de dificultar o acesso para poder cobrar.
Agora o conhecimento pode ser generalizado. Por que a China acelerou de tal maneira os seus progressos científicos? Na China, o cara que tem uma ideia, que desenvolveu uma tecnologia na universidade, ele não sai da universidade para abrir uma startup e esperar que alguém compre a ideia. Ele recebe um bônus e o avanço científico dele é repassado para todo o sistema universitário da China e os centros de pesquisa. Está entendendo? Ou seja, se adquire um efeito multiplicador do conhecimento absolutamente brutal. E ninguém fica reinventando a roda. Porque o progresso de qualquer parte da China é repassado para o conjunto.
Ou seja, o conjunto evolui. Por que isso é tão importante? Porque, na realidade, esse sistema na China se chama ORE, Open Resource for Education. O MIT nos Estados Unidos adotou o mesmo sistema, se chama OCW, OpenCourseWare. Outros já estão adotando. Porque nós podemos generalizar um processo colaborativo planetário de avanço científico fenomenal.
O que fazem os grandes grupos? Tentam impedir isso. Dizem que é pirataria, enfim, tudo o que a gente ouve no rádio, essas coisas. Então, você tem uma tensão entre os avanços científicos e tecnológicos que são de cientistas, essencialmente, que permitem imensos avanços e imensas possibilidades de progresso. Você tem uma batalha dos grandes grupos, das corporações, que querem colocar pedágio em cada conhecimento para mamar simplesmente sobre o trabalho dos outros. É uma imensa transformação porque, justamente, as ideias estão no centro da economia. Por que tem essa batalha dos grandes grupos internacionais de privatizar a educação no Brasil? Isso faz parte dessa tensão. O pano de fundo é que, antigamente, a briga era quem controlava, quem era dono da fábrica. Hoje, na realidade, é quem controla o sistema de comunicação, de informação e de conhecimento.
E tem saída para a gente retomar um pouco o controle sobre isso, sobre o dinheiro? O senhor vai falar do rentismo, vai tratar desse dreno rentista e vai trazer depois, para citar aqui um exemplo muito palpável, que há poucas décadas um executivo recebia cerca de 30 vezes o salário médio pago por suas empresas. Hoje, isso bate 300, 400 vezes. No exemplo do livro, até 680 vezes. E aí é interessante pensar essa diferença, hoje, obscena do salário de um executivo, de um líder da empresa, de um CEO, para um operário. Como a gente trata, então, desse tema se a diferença está desse nível, de perder de vista para um trabalhador comum?
Você sabe que, em grande parte, isso depende do fato de que quando você tem exploração através da mais-valia, que continua, mas é muito menor, se numa empresa o patrão está pagando mal ou tem condições de trabalho ruins, as pessoas estão ali juntas, se organizam, brigam, fazem greve e se ajeitam de alguma maneira. É claro, para um trabalhador, digamos, o fato de que ele está sendo mal pago ou que não recebeu aumento frente à inflação, coisas do gênero. Agora, o sistema financeiro as pessoas simplesmente desconhecem, não entendem como se dá o processo.
A lógica do processo decisório na empresa, nas grandes corporações atualmente, é diferente, porque antigamente, o que se chamava capitalismo industrial, você tem uma empresa, você conhece o proprietário da empresa, ele mora em tal lugar, enfim, você tem coisas bastante claras. Hoje, pego, por exemplo, a Samarco, com o desastre de Mariana, ligada e controlada pela Vale, pelo Bradesco, pela Billiton Internacional e outros grupos. Você não tem um proprietário claro da Samarco, você tem um conselho de administração que é nomeado através dos grandes acionistas, a Billiton, a Vale, o Bradesco, etc.
Então, a gente chama eles internacionalmente de absentee owners, de proprietários ausentes. Quando começou a vazar a barragem da Samarco em Mariana, eles viram, já sabiam, havia dois anos que estava vazando. Agora, a opção deles era entre consertar a barragem, que significava investir dinheiro na própria empresa, ou pagar mais dividendos. Eles optaram por pagar mais dividendos, pagando mais dividendos para gente ausente, que está na Austrália, que está em diversos lugares do mundo, que são acionistas. Quando você privatiza uma empresa, você desnacionaliza também. Qualquer grupo internacional compra essas ações e passa a controlar.
Eles passam a ter, digamos, uma capacidade de extração dentro do país. Agora, se essa Samarco, o conselho de administração, não paga mais dividendos para os proprietários nacionais e internacionais, para o pessoal da área de finanças, o que acontece? O próprio bônus deles vai ser reduzido. Resultado? Você não tem mais uma gestão na empresa pensando no futuro da empresa, no desenvolvimento do país, em gerar emprego ou produto útil, coisa do gênero. Eles pensam simplesmente em como maximizar a extração financeira. Isso foi ajudado porque esses grupos têm suficiente poder para eliminar os impostos. Simplesmente um dreno financeiro.
Por que é tão importante isso? Porque é diferente um capitalista, digamos, tradicional, o cara, sei lá, tem uma fábrica de bicicletas. Esse cara, se ele reinveste na empresa, ele está interessado nisso, está aumentando o capital. Aqui não, é um sistema de dreno. Então, isso muda o caráter do que a gente chamava de capitalismo, porque no centro do capitalismo tem o conceito de acumulação de capital. O cara tem uma empresa, ele explora os trabalhadores, investe em mais empresas, compra mais máquinas, e isso vai aumentando o capital do país. Agora, esse dreno financeiro, através da Billiton, dos acionistas do Bradesco e de outros, que lucram simplesmente exportando o recurso natural de um país e nem sequer pagam impostos, isso naturalmente gera um sistema muito falho, que deforma e que permite essas remunerações fabulosas de executivos, para mais de 300, e alguém, no caso da empresa britânica que eu menciono, mais de 600 vezes o salário médio da empresa. Porque isso está junto, é dinheiro que eles extraem da empresa e que se transforma em lucros de acionistas, em dividendos, em vez de ser reinvestimento.
Por exemplo, quando você tem a decisão da Petrobras, absurda, de elevar os preços do petróleo para um nível de preços internacionais que não era necessário, porque o petróleo está no Brasil, é nosso. O lucro é superior, porque um monte de gente passou a pagar mais pelo botijão de gás, para encher o tanque de gasolina, etc. Todo esse dinheiro nosso, de toda essa população, vai para alguém. Então, esse lucro a mais da Petrobras, que você podia melhorar a situação dos trabalhadores, você podia reinvestir na empresa para gerar maior capacidade produtiva, você podia pagar mais impostos para esse produto que é da nação, que está na terra, servir para financiar infraestrutura, saúde, etc… Mas você pode aumentar o lucro dos que compraram as ações da empresa, os dividendos, o sistema extrativo. No caso, claro, grande parte de todo esse empobrecimento da população que pagou muito mais caro pelo gás, pela gasolina… Todo esse dinheiro foi essencialmente para dividendos. Dividendos pagos a quem? Aos acionistas. Acionistas que são nacionais, mas também internacionais. Isso se chama financiarização. Isso deforma profundamente todo o sistema, porque fragiliza o crescimento.
Por que a China se desenvolve tão rapidamente? De um lado, aquilo que eu mencionei, ela segura um sistema colaborativo de construção de ciência e tecnologia, mas, por outro lado, ela tem um sistema extremamente forte de controle de agiotagem. Para pegar um empréstimo na China, você vai pagar 4,6% ao ano. Desconto a inflação de 2%, é um juro real de 2,6% ao ano. No Brasil, eu tenho os dados do Banco Central, o juro para a família, em média, é 54%. Isso sem falar do rotativo do cartão, que está 430%. Eu apresento esses números em reuniões internacionais e o pessoal sorri, porque não acreditam que não estamos na Idade Média. No século XXI tem um país que faz agiotagem dessa maneira. O Brasil não é um país pobre, mas se trata de resgatar tanto o uso do conhecimento como o uso do dinheiro, que são motores que ajudam a dinamizar o desenvolvimento. Tem que se resgatar para as necessidades da sociedade. Nós temos que assegurar uma sociedade que seja economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. É um tripé básico, aceito mundialmente. E nós temos o dinheiro necessário.
Eu faço um cálculo muito simples, que apresento também no livro. Você pega o PIB do Brasil, 12 trilhões de reais, dividido pela população de 215 milhões. Isso dá 17 mil reais por mês por família de 4 pessoas. O que a gente produz de bens e serviços dá para todo mundo viver de maneira digna e confortável. É só reduzir um pouco a desigualdade.
De certa maneira, nosso problema não é econômico, nosso problema é de organização política e social. Nós temos que assegurar que o dinheiro, a ciência, a tecnologia, todas as nossas capacidades produtivas, sirvam para desenvolver o país e não sejam extraídas pelo sistema financeiro ou sistema de controle de ciência e tecnologia.
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