Dorothy Stang, viva na memória e nas lutas

Missionária, assassinada há vinte anos, “está plantada, não sepultada”, dizem os camponeses que lutaram com ela. Sua presença concreta é sentida nas terras conquistadas e na resistência organizada a fazendeiros e grileiros. Mas há quem queira apagar seu legado…

Foto: Brasil de Fato/Flickr.com
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Por Maíra Mathias, em O Joio e o Trigo

Uma chuva fina – mas consistente – cai no Centro de Formação São Rafael, em Anapu (PA), onde está enterrado o corpo de Dorothy Stang. É a manhã do dia 12 de fevereiro, data que marca os 20 anos do assassinato da missionária americana que protagonizou a luta por terra numa das cidades que, até hoje, é das mais violentas do Brasil. Na véspera, assentados mataram um boi para o almoço que se seguiria à missa em homenagem à memória da freira. Eram esperadas 200 pessoas. Metade disso apareceu.

“ Há uma tentativa muito forte de apagar a memória de irmã Dorothy”, denuncia o procurador-regional Felício Pontes numa das poucas falas com teor político da cerimônia. “E depois de tudo que nós vimos aqui, a pergunta que fazemos  é: quem poderia querer apagar a memória de irmã Dorothy?”

A resposta para a pergunta parece ser mais complexa do que soa à primeira vista. Em Anapu, a força dessa presença é sentida até hoje. Não de forma mística; é uma presença muito concreta que se mede em alqueires conquistados à força de suor e sangue da mão de fazendeiros e grileiros.

Ao mesmo tempo, dentro dos próprios assentamentos, os ares do conservadorismo sopram forte, segundo moradores do local. Afinal, Anapu não é só um dos palcos principais da luta por reforma agrária no país. É também uma cidade brasileira do agronegócio no século 21.   

“Anapu é do senhor Jesus”

Quem passa pela Transamazônica vindo de Marabá se depara com lojas novinhas da DJI Agriculture, empresa chinesa de drones de pulverização de agrotóxicos e mapeamento agrícola. Na entrada da cidade, uma placa “Anapu é do senhor Jesus” recepciona quem chega.

Semanas antes da celebração, a Repórter Brasil noticiou a colocação de um pano no fundo do altar da Igreja Santa Luzia, a poucos metros do Centro São Rafael. O tecido ocultou um painel com a figura da missionária.

“Ela deixou a batata quente com a gente”, brinca a missionária Jane Dwyer, que junto com a também religiosa Katy Webster pegou o bastão que a morte violenta de Dorothy derrubou no chão e assumiu os trabalhos da Comissão Pastoral da Terra na cidade. Aos 84 anos, irmã Jane – como é conhecida em toda a parte – dá bom dia aos agricultores de Anapu por WhatsApp pontualmente às 5 da manhã. E boa noite às 6 da tarde.

“Quando as irmãs vêm aqui, elas dormem do lado de fora. A gente fala para elas passarem pra dentro, mas elas acham aqui mais fresquinho”, conta Vanessa Lima, apontando para uma pequena varanda que fica na frente da casa de madeira. Ela é uma das centenas de pessoas que chegou em Anapu, lutou por terra e, hoje, tem um lote pra chamar de seu no assentamento criado pelo Incra em 2022 e batizado com o nome da missionária morta.

Comento com Jane a história contada por Vanessa. “Nós dormimos na casa de todos os agricultores”, ela responde. As missionárias acompanham com particular atenção a situação dos assentamentos recém-criados –, além do Dorothy Stang, Mata Verde e Mata Preta. Neles, tocam o projeto Pomares e Florestas, para a implantação de sistemas agroflorestais, os SAFs, unindo reflorestamento e geração de renda.

Mas também estão atentas aos locais onde os conflitos por terra se desenrolam, como nas ocupações de terra das glebas 44 e 183. “Nenhum pedaço de terra aqui foi ganho sem violência”, constata Jane. “Apesar de toda essa violência dos fazendeiros, aqui nunca morreu até hoje um fazendeiro pela mão de um trabalhador. Embora o contrário…”

Do alto dos seus 84 anos, irmã Jane dorme na casa de todos os agricultores acompanhados pela CPT de Anapu. Foto: Cícero Pedrosa Neto

A luta sobreviverá, é claro

Na manhã do dia 12, irmã Jane tinha sido mordida por um cachorro. A água do Centro Rafael tinha acabado na véspera, deixando a situação dos banheiros impossível e atrasando o almoço. Nada disso abalava a sua disposição. Andou de lá pra cá ao longo de toda a manhã. Conversou com praticamente todos os presentes. É evidente que parte da memória de Dorothy está viva em Jane. E também Katy, “a irmã Kátia”, que tem 72 anos.

A idade avançada da dupla é um dos fatores que pairam sobre a cidade. A luta sobreviverá, é claro. Mas de que forma? Com que força?

A CPT – não só a de Anapu, tocada pelas missionárias, mas de toda a região – foi fundamental para a conquista dos assentamentos de terra – mais de 500 no Pará. Contudo, Jane está convicta de que, hoje, os agricultores sabem se virar. “A gente era do computador e do telefone, hoje não. Hoje a gente já entregou os números de telefone e o nosso pessoal liga até para Brasília, não tem problema de autoestima aqui não.”

Ao mesmo tempo, o futuro foi forjado lá atrás. E a memória de Dorothy Stang – ou, poderíamos dizer, seu legado – não se apaga num piscar de olhos.

Uma das frases mais repetidas ao longo da missa em memória da freira foi: “Dorothy está plantada; não sepultada.” Garanto que dá para ir além: Dorothy Stang plantou muitas sementes na terra. Eudson Carlos da Silva foi uma delas.

Missa em homenagem à memória de Dorothy Stang foi esvaziada e teve baixo teor político. Foto: Cícero Pedrosa Neto

Estradas, café e boi assado

“Eud”, como é conhecido, é um homenzarrão de 52 anos, de semblante sério e generosidade infinita. Depois de passar dias inteiros rodando as estradas horrorosas da cidade com jornalistas variados – dentre eles, o fotógrafo Cícero Pedrosa e eu –, recebê-los em casa e dar janta e café, ele passou a manhã inteira assando o boi do almoço da missa.

Mas ele não é churrasqueiro, e sim técnico em agropecuária. Presta assistência técnica aos assentamentos atendidos pelo Projeto Pomares e Florestas.

A família de Eudson chegou em Altamira em 1979. Vinha de Imperatriz, no Maranhão. Seu pai não buscava o Eldorado – como tanta gente que migrou para a Transamazônica naquela época. Veio por uma razão mais singela: um concurso público no órgão que fiscaliza o trânsito. Chegando na região, se empolgou com a lida na terra e deixou o cargo público de lado.

Em 1981, comprou uma propriedade em Anapu – que, então, era um distrito da cidade de Senador José Porfírio, um ajuntamento de comunidades esquecidas à beira da rodovia. “Aqui meu pai comprou uma terra onde a gente ficou morando. Era no travessão do Centro de Nazaré, na comunidade de São Sebastião, primeiro lugar onde irmã Dorothy se estabeleceu em Anapu.” Esse encontro marcaria a vida de Eudson. “Eu conheci ela com nove anos, desde o primeiro dia em que ela chegou.”

Eudson Carlos conheceu Dorothy com nove anos e foi enviado a Macapá para estudar; hoje é técnico em agropecuária. Foto: Cícero Pedrosa Neto

Isolamento brutal

Pequeno, ele acompanhava a atuação da missionária. Pergunto o que ele pensava observando as ações dela. “Olha, bastante esperança de que um dia a nossa comunidade, a nossa região, ia melhorar.” E emenda: “A gente sofreu muito na Transamazônica.”

A começar pelo isolamento de Anapu, que era brutal. Eudson conta que no inverno – período que, na região, vai de novembro a meados de maio, onde as chuvas se concentram – demorava até cinco dias para chegar em Altamira, cidade-polo da região. Para comprar um café ou um açúcar, andava-se até dez quilômetros.  “Aí ela dizia: ‘Um dia isso vai melhorar. Nós vamos melhorar.’”

Não só disse. Fez acontecer. O primeiro passo nessa direção foi a formação da Associação Pioneira Agrícola da Transamazônica, com a intenção de reunir os agricultores da região.   

O primeiro projeto da associação foi comprar uma máquina de pilar arroz. A única do tipo que existia por aquelas bandas ficava distante das comunidades do entorno de São Sebastião. “Ela via os filhos dos agricultores socando arroz no pilão e tinha dó de ver aquelas crianças fazerem aquilo. Ela teve uma ideia: colocar uma máquina comunidade. Ela chamou os agricultores chegados com ela e cada um doou quatro sacas de arroz. Ela pegou esse arroz, levou pra Altamira e vendeu. Aí foi nos Estados Unidos, trouxe um dinheiro de lá, arrecadado. Aí comprou uma máquina para os agricultores e botou lá no São Sebastião.”

Sacas de arroz

A ideia atraiu gente para a associação. “Quando a máquina chegou, aqueles que não eram sócios disseram: ‘eu quero me associar também!’ Ah, tu quer te associar? Quero. Então você vai doar também quatro sacas de arroz pra ser sócio. E aí foi indo”.

O dinheiro da venda do arroz vindo das doações era usado para comprar óleo e outros insumos para a máquina funcionar. Mas não parou por aí. Eudson conta que os agricultores iam para Altamira vender não só esse arroz pilado, como todo o resto produzido. “O milho, a galinha, vender o porco. Era a maior peleja para ir pra Altamira, tinha que pagar caro uma passagem de ônibus, a companhia não carregava galinha nem porco. ‘Então nós vamos comprar um caminhão!’, ela disse”.

Para juntar o dinheiro da compra do veículo, a associação uniu esforços de novo. O combinado era que os agricultores juntariam metade do dinheiro e Dorothy conseguiria arrecadar a outra metade.  E foi o que ela fez. Enquanto o pessoal se mobilizava, ela voou para os Estados Unidos. “Voltou com o dinheiro da metade do caminhão, chegou em Belém e ligou pra turma.”

Depois do caminhão, Dorothy uniu duas pontas – mulheres e comércio – para, de uma tacada só, dinamizar a economia comunitária e articular grupos de discussão. “Ela disse: ‘vamos reunir as mulheres. Cada comunidade faz um grupo de mulheres, vamos em Altamira comprar um bocado de mercadoria, fazer uma barraquinha aqui no meio da comunidade”, lembra Eudson. A ideia era que cada um dos grupo elegesse uma liderança que ficaria responsável por ficar na vendinha. O dinheiro arrecadado seria usado para comprar mais produtos em Altamira.. “Funcionou, aí foi aumentando nas comunidades da região os grupos de mulheres.”

Na sequência, os vários grupos se articularam em um só tendo como missão administrar um barracão, espécie de depósito comunitário. “Ela disse: ‘não está bom porque a mulher tem que ir em Altamira comprar essa mercadoria. Vamos juntar o dinheiro de todas as revendas, vamos comprar em Altamira, botar num barracão – e o barracão é que vai fortalecer, vai fornecer todas as mercadorias’. Funcionou também.”

Pontes e estradas

Na memória de Eudson, irmã Dorothy não parava nunca. Uma ideia se seguia à outra – e todas elas acabavam sendo bem-sucedidas. Nessa época ele era novo e tudo que a missionária pensava em fazer, funcionava. “Todo plano dela. Ela juntava a equipe dela todinha, passava dois, três dias batendo cabeça pra botar em prática aquele plano. E dava certo.”

Jovens, como ele, eram incentivados a se reunir também. E lutar por melhorias concretas, como pontes e estradas. “Ela sempre estava incentivando a gente, os movimentos sociais. E, de fato, hoje, graças a Deus, nós temos asfalto na Transamazônica. Nós temos energia na Transamazônica. Tudo graças aos movimentos sociais – muitos deles movimentados por ela.”

A próxima ideia de Dorothy mudaria a sua vida. A missionária queria implantar uma rede de assistência técnica para as comunidades rurais, que não havia na região. “Quando vinha um técnico, vinha uma vez por ano – e olhe lá! Era a coisa mais difícil. Eles passavam num agricultor, não passavam no outro. Foi quando ela pensou em mandar uns alunos para estudar.”

Os dois primeiros foram enviados para Fortaleza e Santa Catarina. Eudson e outro filho de agricultores seriam os próximos, enviados a Macapá (AP) em 1991, para estudar na Escola Família Agrícola do Pacuí. “E me formar em técnico.” Eudson abriu a fila para muitos que seriam enviados para outros estados com a missão de voltar e ajudar as famílias da região a se fixar na terra com qualidade.

“Eu sempre fui um caboclo meio espoletado quando eu era mais novo. Teve umas enroladas por lá e eu não concluí.” Em Macapá, Eudson se casou e foi trabalhar. “Eu precisava sustentar a minha família. Tirei um pedaço de terra pra mim e a gente ficou fazendo farinha, trabalhando com horta. Eu com minha esposa. A gente vendia na feira do estado do Amapá.”

Voltaria a estudar nove anos depois e se formaria técnico agropecuário em 2009. Seu retorno a Anapu se daria cinco anos depois para ocupar uma vaga no Idecan, o Instituto de Desenvolvimento Educacional, Cultural e Assistencial Nacional, ONG que, em Anapu, trabalhava dando assistência técnica para dois assentamentos: o PDS Virola Jatobá, atual foco dos conflitos na região, e o PDS Esperança, onde Dorothy foi assassinada. Durou pouco. “Aí entrou o Michel Temer e ele cortou a assistência técnica da região.”

O casal Agnaldo e Vanessa Lima, do assentamento Dorothy Stang, recebem a visita técnica de Eudson mensalmente. Foto: Cícero Pedrosa Neto

Restabelecido em Anapu, voltou a fazer feira. Mas seguia em contato com os colegas que se formaram técnicos em agropecuária por incentivo da irmã Dorothy. E pintou uma ideia: fazer um viveiro de mudas de plantas.

Para isso, contou com Jane Dwyer e Katy Webster. “Elas tiveram a ideia de montar um grupo. Aí nós reunimos mais outras pessoas e montamos o viveiro.”

O viveiro é a base do projeto Pomares e Florestas, que, no entendimento de Eudson, fecha esse ciclo da sua vida, que começou lá atrás, quando conheceu Dorothy Stang.

No jantar servido na sua chácara, ele e a mulher, Norma, contam que fazer feira era mais vantajoso economicamente. Mas Eudson queria honrar o plano traçado lá atrás, voltar pra Anapu e ajudar a construir alternativas de geração de renda para quem lutou tanto tempo por terra. Não queria ficar na promessa, assim como Dorothy Stang nunca ficou no discurso. 

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