Democracia, detalhe incômodo

Silvio de Almeida, professor e ativista negro, examina a aliança entre ultra-capitalistas e ultra-conservadores, que elegeu Bolsonaro. Para ele, casamento vai durar

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Silvio de Almeida, professor e ativista negro, examina a aliança entre ultra-capitalistas e ultra-conservadores, que elegeu Bolsonaro. Ele avalia: casamento vai durar

Entrevista a Katia Mello, no portal Geledés 

O livro O ódio como política – A reinvenção das direitas no Brasil (Ed. Boitempo), organizado pela professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo, Esther Solano, e que acaba de ser lançado, tem como objetivo apresentar um panorama diversificado sobre a consolidação da direita pós-ditadura no Brasil.

São múltiplas as análises de autores distintos, entre eles a de Silvio Luiz de Almeida, pós-doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), professor, advogado e presidente do Instituto Luiz Gama (SP). Almeida escreve um capítulo do livro sobre a distinção entre o conservadorismo clássico e o neoconservadorismo atual, para o qual a democracia não passa de um detalhe incômodo.

Nesta entrevista à coluna Geledés no Debate, o autor de várias obras, entre elas Racismo Estrutural ressalta a condição em que chegamos de extremismo e a tentativa de se compreender as várias faces desse fenômeno.

Quais reflexões o livro O ódio como política, do qual faz parte com um capítulo, nos traz ?

O livro fala fundamentalmente sobre a ascensão de um pensamento de extrema direita no Brasil. Ainda que não seja um fenômeno recente e novo, é inédita a potência que ele alcança, a maneira com que vem minando as formas de mediação política que o Brasil, de um jeito ou de outro, construiu ao longo de sua história. Ou seja, cada vez mais estamos nos afastando de algo parecido com um consenso, e a capacidade política das lideranças políticas de estabelecer formas de mediação está cada vez mais débil e diluída. O livro fala sobre como a vocalização do ódio, do extremismo, das formas de discriminação e racismo foram elevados a dados centrais da retórica e da prática políticas. É uma tentativa de compreender as várias faces desse fenômeno, que tem uma relação direta com a crise econômica que o mundo atravessa hoje, com a ascensão das novas tecnologias e como tudo isso vai interferindo nas questões centrais da política.

Seu artigo fala sobre neoconservadorismo e liberalismo. O que pretendeu destacar desses fenômenos?

O artigo é para apontar três coisas que considero essenciais: o fato de que o conservadorismo e o neoconservadorismo são configurações ideológicas reacionárias a movimentos de transformação social dentro da lógica do capitalismo. O segundo ponto é que não dá para entender conservadorismo e neoconservadorismo fora da economia política. Então não adianta ficar fazendo avaliações meramente ideológicas, falando sobre como pensam os grupos liberais, conservadores ou socialistas. Ou seja, a compreensão está na economia política e temos que entender como os movimentos dessa economia política, os interesses materiais e as questões relacionadas à distribuição de renda e à organização do trabalho estão relacionadas com esses movimentos, que podemos chamar de práticas ideológicas. A ideologia está relacionada a uma prática concreta, às questões relacionadas ao poder e à divisão do trabalho social. Portanto, tento colocar, nas poucas linhas do artigo, dentro do âmbito da concretude histórica, o neoconservadorismo. O terceiro ponto é a questão da democracia, que afirmo ser um dado meramente conjuntural dentro da lógica do capitalismo. A democracia é quase sempre bem vinda porque é um processo de legitimização do poder político. Porém sabemos que do ponto de vista histórico, por diversas vezes já se abriu mão da democracia para que projetos políticos e econômicos do interesse de grupos específicos fossem implementados ou tivessem continuidade. A democracia não é um valor universal, como muita gente acredita, pois é deixada de lado nos momentos de disputa intensa pelo poder e pela economia. Os colonialistas e seus “aprendizes”, os nazistas, não eram contrários à economia de mercado. Muito pelo contrário.

Como explica o chamado “bolsonarismo” nas periferias? E por que, mesmo com um discurso de ódio, uma parcela de negros, mulheres e LGBTs se identifica com o candidato de extrema direita?

É uma pergunta complexa. Precisamos lembrar que o que chamamos de políticas identitárias não são e nunca foram algo pertencente apenas ao discurso das esquerdas. A direita e a extrema direita sempre se apoiaram em pautas identitárias. Ou seja, a revindicação sempre foi vocalizada e capturada por essa extrema direita. Isso é uma forma de fragmentação política, uma forma de se estabelecer hierarquias sociais a partir das identidades. É também uma forma de defender nacionalismos, como na Europa e Estados Unidos, e lá isso acontece em relação às questões de imigração. A defesa do nacionalismo no contexto europeu é algo típico da extrema direita. Alguns autores como Stuart Hall falam disso desde o final dos anos 70 e início da década de 80, quando se discutiu os efeitos da crise econômica e do tatcherismo, com a destruição dos direitos sociais na Inglaterra. Lá também a crise foi ladeada por um discurso de ódio contra os caribenhos que se transformou em um racismo manifestado pelos trabalhadores, os operários, que viam nos imigrantes e nas minorias as causas de sua depauperação, de seu declínio econômico.

Criou-se uma política do medo contra as minorias, da perda de uma identidade nacional que precisa ser forjada, e que tem que ser a todo momento criada e recriada pelo Estado, pelas instituições políticas, que está relacionada diretamente à economia.

Então, como vê a questão da identidade?

A identidade não é necessariamente um fator revolucionário ou progressista. Pode sê-lo, obviamente, mas desde que seja possível estabelecer uma relação entre identidade e as questões que chamo de natureza estrutural. A identidade é uma questão estrutural, é a maneira com que a gente se coloca no mundo, mas tem relação direta com a política, com a economia, e como historicamente fomos construídos no mundo. Não existe identidade natural. Portanto, ela é uma criação política. É interessante falar sobre identidade no campo da transformação social e da afirmação política, quando assumir a identidade se traduz em reconfigurar o significado do grupo ao qual você pertence a fim de promover as transformações necessárias para que a emancipação social, a liberdade, a luta contra as formas de opressão e dominação, se tornem possíveis. Vimos isso na África no contexto das revoluções africanas, na América Latina, com a afirmação da identidade indígena, no movimento negro nos Estados Unidos, com o Black Power, na luta pelos Direitos Civis, no movimento negritude da França. O pan-indigenismo, o feminismo, a luta LGBTI também se enquadram nisso.

E no Brasil?

Desde 2013, existe a construção de uma narrativa simplória para alienar as pessoas, com explicações que dispensam complexidades e que são mais emocionais e passam pouco pelo racional, de forma até pueril, sobre os motivos da crise econômica brasileira. Primeiro, criou-se uma ideia de que essa crise econômica tinha como resultado central as questões morais, de corrupção, que é um dado existente, obviamente, mas não é o motivo central. Segundo, deliberadamente instalou-se um pânico generalizado como se não houvesse instrumentos para que pudéssemos, se não sair da crise, colocá-la ao menos sob controle. Houve todo um processo de inviabilização do governo de Dilma Rousseff, com as pautas-bombas. E isso, considerando-se os erros cometidos por aquele governo, com as desonerações fiscais, que os empresários muito bem aceitaram e depois os mesmos saíram às ruas para pedir o impeachment da presidente. Criou-se um pânico de que não haveria outros meios senão as políticas de austeridade fiscal. E o governo embarcou nisso, promovendo uma série de cortes orçamentários, que depois se revelaram desastrosos, aprofundando ainda mais a crise, tornando-a de fato insustentável. Esse tipo de coisa chegou à população sem nenhum tipo de mediação, sem nenhum tipo de racionalidade. E o que a gente viu, portanto, foi uma destruição progressiva da esfera pública. A nocão de “verdade” se tornou inviável e, assim, foi-se para o espaço com o debate racional.

Por em que em momentos de crise, como menciona em seu texto, os liberais podem se tornar reacionários? Isso acontece ou aconteceu no Brasil? De que forma?

Qual é o interesse dos liberais e dos conservadores no fim das contas? É o mesmo. É manter as formas sociais do capitalismo. Manter o Estado funcionando, as instituições jurídicas que garantam a forma do contrato e propriedade, a troca mercantil e o dinheiro como equivalente geral das mercadorias. Então, toda vez que há uma ameaça sobre essas formas que são essenciais para o capitalismo, os liberais, a fim de proteger essas formas, tornam-se conservadores. E se a ameaça for muito grande, se tornam reacionários. No final das contas, eles se dão as mãos. No Brasil, muitos liberais de carteirinha, defensores ardorosos do livre mercado estão apoiando o candidato mais violento e antidemocrático, porque sabem que, diante de um contexto de crise, a única forma de se manter as formas sociais se reproduzindo, sem que haja consenso mínimo na sociedade, é por meio do autoritarismo e da violência. O que estamos vendo no Brasil é uma espécie de pinochetismo fora de hora e lugar: autoritarismo e ultraliberalismo. É isso que está em questão; é a tentativa de se destruir os últimos resquícios do Estado social brasileiro. Quando se fala em reforma da Previdência, das privatizações, se clama pela inviabilização do SUS, das universidades públicas, venda de empresa estratégica de energia como a Petrobras, de soberania nacional, o que está sendo feito é abrir mão do Estado social e das garantias dos mais pobres.

Em seu livro Racismo Estrutural, coloca o racismo como um conceito “normal”, uma forma de racionalidade. Por favor, explique.

O racismo é uma forma de racionalidade porque não é um elemento estranho às relações sociais. É um elemento constitutivo das relações políticas, econômicas e sociais. A desigualdade social no Brasil tem a raça como um marcador fundamental e um elemento de legitimação. E não é só no Brasil, mas no mundo todo. Do ponto de vista político, a violência, que serve para a manutenção da desigualdade social, se dá também por marcadores raciais.

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