Transparência: o que muda com dados públicos disponíveis

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Agora é lei: no Brasil, governos devem colocar  bases de dados na rede. Desenvolvedores e ativistas podem abrir caminhos para aplicativos que ajudem a democratizar sociedade

Por Patricia Cornils, em ARede

O Brasil caminha a passos de tartaruga para conseguir o que países como os Estados Unidos e a Inglaterra já fizeram há alguns anos: colocar na internet as bases de dados de seus órgãos públicos. Somente no estado de Nova York (EUA), há mais de 800 bases de dados, com todo tipo de informação, para qualquer cidadão baixar, consultar, cruzar com outros, republicar: listas de pontos WiFi, de bebedouros em parques, de escolas, censo de cães e gatos, de  atropelamentos. Resultado de relações mais transparentes entre poder público e cidadãos? Sem dúvida. Mas não apenas. Esses serviços foram possíveis porque os governos acreditaram na capacidade criativa da população. A partir das informações oficiais, desenvolvedores criaram aplicativos para melhorar a qualidade de vida das pessoas, para fundamentar políticas públicas, para permitir a participação popular na administração de cidades, estados e até das nações.

Para se ter uma ideia do potencial desses instrumentos de cidadania, o Brasil, mesmo na lanterninha, já tem bons exemplos de soluções criadas com base em informações públicas no setor de transportes. Um é o Cruzalinhas (www.cruzalinhas.com.br), que surgiu porque seu desenvolvedor, Carlos Duarte do Nascimento, há alguns anos decidiu parar de usar seu carro particular e passou a usar o transporte coletivo para suas idas e vindas pela cidade de São Paulo. Chester, apelido de Carlos, trabalha com desenvolvimento de software desde o início dos anos 1990 e se formou no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP). Logo se deu conta de que não havia, na internet, um site que mostrasse simultaneamente as linhas de metrô, trem e ônibus que passavam por perto de onde ele precisava. Então fez, ele mesmo, esse mapa, e colocou na rede para todos usarem.

Depois de um trabalhão para encontrar, na web, as informações publicadas pelas empresas, o site entrou no ar no final de maio de 2010. Até hoje, no entanto, os dados para download, que facilitariam a criação de serviços como esse, não estão disponíveis. Já o código desenvolvido por Chester é livre e está no GitHub. O site que Chester desenvolveu foi apresentado no 11º Fórum Internacional de Software Livre (Fisl), em Porto Alegre, em julho de 2010. “Me surpreendi com o interesse de pessoas de outras cidades como Manaus, Campinas, Florianópolis e da própria Porto Alegre em fazer a mesma coisa, já que, segundo esse pessoal, a dificuldade em obter informações sobre o transporte público é a mesma”, escreveu ele, na época.

O gaúcho Bruno Jurkovski, estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, assistiu a palestra de Chester no Fisl e se animou. Desenvolveu e colocou no ar, na última semana de março de 2011, o PoaBus (www.poabus.com.br). Não se falou em outra coisa, naquela semana, nas redes sociais da cidade. Na terça-feira, dia 29, o site recebeu 6 mil visitas e não suportou a demanda. Ficou horas fora do ar. Mas voltou e permanece funcionando até hoje – com interrupções, porque é mantido com recursos do próprio Bruno e de doadores.

Nos dois casos, a empresa pública que gera os dados não contribuiu em nada com os desenvolvedores. A EPTC, empresa de transportes coletivos de Porto Alegre, não forneceu a Bruno, para download, as informações necessárias para criar o serviço – apesar da solicitação de Jurkovski. Aos cidadãos, na internet, a EPTC informava os itinerários dos ônibus, em uma lista de ruas. O estudante queria colocar isso em um mapa, para facilitar a vida das pessoas – em uma lista de ruas, não se sabe até que altura o ônibus trafega, por exemplo. Jurkovski lançou o PoaBus com 80 das 364 linhas que funcionavam na época, e pediu ajuda aos demais habitantes da cidade para, colaborativamente, cadastrarem o que faltavam.

Nove meses depois, em dezembro do ano passado, a empresa criou sua própria ferramenta de busca, a Poa Transporte, desenvolvida pela Procempa. O diretor-presidente da Procempa, André Imar Kulczynski informou, no lançamento, que todas as informações da cidade foram geoprocessadas. “Não é um trabalho fácil, foi necessário organizar um elevado número de dados, como as mais de 5,5 mil paradas de ônibus do município. Mas temos informações qualificadas, confiáveis e vamos melhorar ainda mais”. Esses dados, ao contrário do que Kulczynski avalia, não pertencem à Procempa. Não são estatais, são públicas. O fato de estarem à disposição dos cidadãos contribui para melhorar os serviços e não significa qualquer concorrência com os serviços prestados pela Procempa.

Como se viu no Reino Unido: quando a base de dados com os pontos de ônibus de todo o país foi publicada, descobriu-se que 18 mil pontos existiam somente no papel ou estavam em lugares diferentes dos registrados. Os próprios cidadãos apontaram os erros ao Departamento de Transportes – e ajudaram, coletivamente, a atualizar os dados. “A divulgação de informações detalhadas sobre impostos, gastos, educação, transporte, energia, ambiente, crimes, saúde etc. torna os cidadãos mais informados, e permite que façam comparações entre o que desejam de sua cidade, o que existe de fato e o que acontece em outras”, constatou Nigel Shadbolt, um dos responsáveis pela criação do Data.uk. Indiretamente, essa construção faz os serviços públicos evoluírem.

Nos Estados Unidos, a Metropolitan Transport Agency, que cuida dos transportes públicos do estado de Nova York, tem uma página somente para desenvolvedores e curiosos baixarem suas bases de dados, publicadas em formatos livres. No Reino Unido está no ar, desde 2010, o banco de dados nacional de transportes, no qual constam todos os pontos de ônibus, estações de trem, pontos de táxi do país. No Brasil, onde, de acordo com pesquisa divulgada em dezembro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o transporte público é o principal meio de locomoção para 44% da população, não há bases de dados de transporte públicas e abertas. Ao contrário.

O desenvolvedor Luciano Santa Brígida resolveu criar o site Linha Urbana, para mapear as linhas de ônibus da cidade de Belém (PA) e descobrir pontos de deficiência a serem atendidos pelo poder público. Quando o Linha Urbana foi concebido, em abril de 2010, a prefeitura de Belém oferecia, em seu site, uma seção de serviços na qual se podia pesquisar as linhas que passavam por determinada rua. E ver, em um mapa, o trajeto de cada uma delas. A partir dessas informações, obteve o nome das ruas por onde passa cada linha e a geolocalização de cada trajeto. Em meados de 2011, contudo, a página da qual Luciano retirava os dados foi removida. Em seu lugar, hoje há apenas as linhas de ônibus por ordem alfabética e sem informações de geolocalização. Todo o trabalho de programação para garimpar as informações no site e publicá-las foi perdido.

Cada empresa, cidade, estado, coloca no ar as informações que desejar – o que limita o uso da rede pela população. Apenas 2,6% dos brasileiros usam a internet para se informar sobre o transporte de sua cidade, de acordo com a pesquisa do Ipea. A maior parte (31%) se informa nos pontos de parada; pela televisão (17%) ou perguntando a alguém (12%). A web ainda é um privilégio no Brasil. De acordo com a Telebrasil, em estudo realizado com base no Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pouco mais de 30% dos 57,3 milhões de domicílios brasileiros têm acesso em banda larga. Ainda assim, é enorme a diferença entre as pessoas que usam a rede e as que a levam em consideração na hora de buscar informações sobre um serviço tão fundamental – os governos anunciam investimentos em inclusão digital, mas ainda não se deram conta de que estimular o desenvolvimento de soluções para facilitar a vida dos cidadãos faz parte desse processo.

A dificuldade de formatar os dados para publicá-los, pelo menos nos casos de São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro, não é grande. Essas cidades têm acordos com o Google para ceder suas bases de dados de transporte público ao Google Maps. Fazem isso no formato usado pela empresa – o General Transit Feed Specification Reference (GTSR). Se oferecessem essas informações para download, nesse formato, qualquer desenvolvedor poderia usá-las.

Além disso, pelo menos nas cidades onde haverá jogos da Copa do Mundo, as prefeituras estão criando centros de controle integrado, nos quais reúnem dados sobre segurança, trânsito, habitação, saúde, defesa civil, serviços de energia. As bases publicadas pela prefeitura do Rio de Janeiro, para o concurso Rio Apps, são exatamente as usadas pelo seu centro de controle integrado. As demais cidades poderiam ignorar a iniciativa de publicar essas bases, mas os precedentes indicam que não acontecerá nada sem pressão.

A TRANSPARÊNCIA HACKER

ENVIOU À PREFEITURA DE SÃO PAULO

UM PEDIDO QUE FOI INDEFERIDO

Em São Paulo, a Central de Zeladoria da prefeitura criou, em 2011, um aplicativo para o prefeito acompanhar, de seu iPad, os serviços de manutenção nas regiões da cidade por onde transitar. Por que a sociedade não pode ter algo desse tipo?, perguntaram-se participantes da Transparência Hacker, comunidade de ativistas pela transparência pública. Animados, enviaram à prefeitura paulistana um pedido de abertura desses dados. O pedido foi indeferido em despacho do próprio prefeito – o que impossibilita recurso administrativo, pois ele é a autoridade máxima.

A decisão foi publicada no Diário Oficial, em junho de 2011: “Transparência Hacker – Requerimento de informações relacionadas aos serviços de zeladoria do Município de São Paulo – Em face dos elementos de convicção constantes do presente processo, em especial o parecer da Assessoria Jurídico-Consultiva da Procuradoria Geral do Município, às fls. 12/13, devidamente acolhido pelo Senhor Secretário de Negócios Jurídicos às fls. 15, INDEFIRO o pedido formulado, por falta de amparo legal”. Na época, a Lei de Acesso à Informação (ver página 18) ainda não havia sido aprovada. Agora, o pedido será refeito.

Em Brasília, desde 2010 os ativistas do Adote um Distrital, iniciativa da sociedade para fiscalizar o Poder Legislativo, tentam acompanhar a votação das emendas parlamentares ao orçamento do Distrito Federal. Cada um dos 24 deputados distritais tem direito a propor emendas no valor de até R$ 12 milhões. Em 2010, o Adote um Distrital conseguiu obter o texto das emendas, mas os autores não estão identificados. Em 2011, durante o debate das emendas ao orçamento deste ano, enviaram um requerimento a todos os deputados para que divulgassem os projetos em formatos abertos, a fim de serem publicados na internet. Somente seis, dos 24, responderam ao pedido, mandando cópias em papel das  emendas propostas.

Apesar de ter trabalhado com antecedência, para a população conhecer, antes da votação, o que propôs cada deputado, o grupo só teve acesso à informação depois da votação do orçamento. E pelo Diário Oficial. “Aí veio a dor de cabeça”, conta Diego Ramalho, do Adote Um Distrital. Precisaram baixar cerca de 801 emendas em páginas web, em formato PDF. Depois, converter os textos para que pudessem ser lidos pelo computador. Aí, redigitar os que não puderam ser convertidos. E colocar as informações em um site que mostre, em cada região do DF, o que cada deputado conseguir aprovar no orçamento. A dor de cabeça foi transformar a informação publicada no Diário Oficial, em PDF, em um formato que pudesse ser “usado” pelo site, para mapear as emendas.

Felipe Permino passou dias testando ferramentas de Optical Character Recognition (OCR), para leitura de textos por computador, que transformassem em letras de editor de texto as emendas publicadas no Diário Oficial da Câmara. O Demoulidor, também ativista, varou noites para encontrar padrões nos textos, a fim de costurar códigos em Phyton para extrair o máximo de informação, de cada emenda. Cerca de 20% delas não tinham padrão algum que pudesse ser programado num extrator. Eram cerca de 121 páginas, muito mal escaneadas, que OCR nenhum deu jeito de traduzir. Esse trabalho seria desnecessário se as emendas fossem publicadas em formatos abertos. Mas os ativistas não desanimaram. E o Olho nas Emendas está no ar (http://cldf.thackdaydf.com.br/emendas). Agora, o Adote Um Distrital está fazendo oficinas para ensinar alunos de escolas do DF a acompanhar a execução orçamentária, para verificar se esses recursos serão gastos da maneira aprovada. Descobriu-se, por exemplo, que

R$ 70 milhões, ou 24,1% do valor total das emendas para o orçamento do Governo do DF em 2012, foram alocados para eventos culturais e festas – e será necessário verificar se os recursos serão realmente gastos nessas atividades.

Em Nova York, em vez de dificultar o trabalho da população, o poder público estimula. Um exemplo de solução criada a partir de dados públicos é o Não Coma Aí (Don’t Eat At, ver página 14). O site recebeu dois prêmios, em abril de 2011, no Big Apps 2.0, um concurso para desenvolvedores de aplicativos com dados oficiais do estado de Nova York, que está na terceira edição.

O Big Apps inspirou, aqui no Brasil, uma ótima iniciativa: o Rio Apps (www.rioapps.com.br),

concurso de desenvolvimento de aplicativos promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro. No site de dados públicos de Nova York há mais de 800 bases à disposição dos desenvolvedores (http://nycopendata.socrata.com). No Rio, são 46. Informações valiosas, no entanto, que estão no ar de uma maneira que facilita a vida de quem quer usá-los. Há desde mapas de alagamentos até representação geográfica das favelas da cidade, unidades de saúde, escolas, delegacias, obras em andamento.

As inscrições para o Rio Apps vão até 3 de abril. Os selecionados vão receber prêmios em dinheiro: R$ 30 mil para o primeiro colocado, R$ 20 mil para o segundo, e R$ 10 mil para o terceiro, além de menções honrosas e premiação para o aplicativo com melhor potencial de comercialização, para o escolhido por votação online, para o desenvolvido por estudantes. É o primeiro concurso desse tipo no Brasil, criado depois de a prefeitura realizar um festival de ideias de ferramentas, o Desafio Rio Ideias. Promovido entre outubro e novembro do ano passado, seu objetivo foi recolher sugestões de aplicativos que melhorem o funcionamento da cidade e as condições de vida da população. Nesse primeiro concurso, foram enviadas 1.876 ideias nas áreas de transporte (576), turismo (371), lazer e diversão (306), saúde (169), projetos sociais (92), gastronomia (92) entre outros temas. Do total, foram selecionadas 30 sugestões. Os dez primeiros colocados receberam R$ 1 mil; cerca de 20 ideias ganharam R$ 500. A lista de vencedores do Desafio Rio Ideias é uma pequena amostra do que as pessoas podem criar em suas próprias cidades.

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