Crise na Venezuela: Mujica tem uma proposta

Às vésperas de uma rodada de negociações em Montevidéu, ex-presidente uruguaio afirma: para sair do impasse, e desarmar intervenção dos EUA, é preciso convocar eleições gerais

.

José Pepe Mujica, entrevistado por Gerardo Lissardy em BBC Mundo | Tradução: Marianna Braghini

O ex-presidente uruguaio, José “Pepe” Mujica acredita que a crise da Venezuela levanta um dilema dramático: “paz ou guerra”. E afirma que a fórmula para evitar o caminho das armas passa por eleições gerais no país, com um forte monitoramento internacional que garanta a participação de todas as correntes políticas.

Segundo Mujica, os Estados Unidos estão dispostos a intervir na Venezuela no âmbito de sua queda de braços geopolítica com a China, e para impedir que o gigante asiático controle o petróleo do país sul-americano.

Embora o ex-guerrilheiro tupamaro mantivesse uma relação estreita com o falecido líder venezuelano, Hugo Chávez, ele evita se posicionar acerca de seu sucessor, Nicolás Maduro. Na realidade, Mujica fala do “regime venezuelano” e admite que a crise neste país prejudicou a esquerda latino americana.

Mujica evita também julgar as intenções do líder da oposição, Juan Guaidó, que preside a Assembleia Nacional e se autoproclamou presidente interino venezuelano com o reconhecimento dos EUA, Canadá e outros países latino-americanos e europeus. Porém, o ex-presidente uruguaio faz referência a uma tentativa frustrada de golpe por Adolf Hitler, na Alemanha de 1923: “Não me recordo de governos que se autoproclamaram (…) Me lembro de uma cervejaria em Munique, onde alguém disparou um tiro e se autoproclamou”.

O que segue é uma síntese do diálogo por telefone com o ex presidente uruguaio (2010-2015), antes da reunião inaugural do Grupo Internacional de Contato sobre a Venezuela que seu país irá receber na sexta [07/02/2019] com a presença da União Europeia, Estados europeus e alguns latino-americanos.

Você tem dito que deve haver eleições gerais na Venezuela. Por que?

Porque no pior dos casos é o mal menor. Estou convencido e tenho elementos, de que em ultima instância, se os EUA não tiverem outro remédio a não ser intervir, irão intervir. O tema central para mim, é evitar a guerra. Porque eu sabia qual era o eixo da política norte americana em relação à Venezuela em tempos de Obama: eles apostavam que se desgastaria sozinha. Mas a política atual mudou. Decidiram frear o desenvolvimento da China; isto tem que ser visto de forma geopolítica no contexto. Por isso as medidas econômicas contra Pequim.

E sei que o pessoal em torno de Trump assusta os diplomatas de carreira norte-americanos, porque tem uma posição intervencionista há muito tempo. Portanto, se o grande império não vai aceitar de braços cruzados que o petróleo venezuelano seja administrado pela China, estamos diante de uma eventual guerra.

A discussão jurídica, de legitimidade eetc, é absolutamente secundária frente ao problema de fundo: o monstro decidiu pagar o preço político que for preciso e também criou todo um ambiente a partir desta perspectiva, para ter opinião favorável.

Não estou julgando a intenção do presidente autoproclamado. Estou convencido de que, com a polarização atual, é impossível fazer eleições na Venezuela se não houver forte monitoraramento; se as Nações Unidas lavarem as mãos. Em vez de tantas declarações, cercos e tantas ameaças, é preciso garantir um processo eleitoral onde todos possam participar.

Até agora Maduro tem rechaçado qualquer possibilidade disso…

Mas o que estão oferecendo ao regime venezuelano? Renda-se e depois vemos. E neste ínterim, um importante personagem do governo norte americano aparece para prognosticar que vão levá-lo a Guantánamo. Se você quer evitar uma guerra, tem que criar alternativas. Porque na toada atual estão provocando a guerra. Você pode ir à guerra porque está convencido, mas pode ir a guerra porque não há mais solução. Ninguém vai se render assim, botando as mãos na cabeça e esperando que ser levado à cadeia.

O problema é ver a realidade de fundo, diante desta nuvem de declarações que encobre o essencial, que é o tema da guerra. Nessa região da América sabe-se quando começa a guerra, mas nunca se sabe quando termina.

Qual seria sua mensagem à Maduro para que aceite convocar eleições gerais?

Se lhe cuspo na cara, se reconheço seu inimigo, perco até a capacidade de diálogo. Creio que a posição de meu país é correta porque não está querendo definir uma legitimidade. Está lutando entre um paradigma crucial: guerra ou paz. A proposta precisa ser construído com apoio de muitos países, e ao fim levar a um acordo. É extremamente difícil. Mas qual é a alternativa que deixam ao regime venezuelano hoje?

Alguém pode dizer que na Venezuela, para uma parcela da oposição, há tempos que existe uma guerra: há repressão, presos políticos, tortura…

Há uma guerra sem tiros. Mas não é o centro do assunto. Porque presos políticos, violação de direitos humanos, falta de garantias jurídicas — tudo isso sobra em muitos países no mundo. Os EUA, neste exato momento, negociam com os talibãs. Aí temos a Arábia Saudita e tantos outros países. Se vamos romper relações e julgar por estas questões, pobre mundo: teremos que romper com metade da humanidade.

Não é o fundamental. Porque, que paradoxo! Os EUA convivem com Cuba há quase um século, de alguma forma. Mas não suportam a realidade na Venezuela. Por que? Para mim, é de uma evidência muito clara. Mas a realidade é a realidade. Essa vontade política existe, vão levá-la até o fim e como tal. Por isso, é preciso encontrar uma alternativa que possa ao menos garantir a paz.

O senhor tem se mostrado disposto a oferecer uma espécie de mediação. Tem falado concretamente com alguém?

Não falei com ninguém. Nada disso é legítimo desde a perspectiva legal, porque há um intervencionismo brutal. Não me recordo de governos que se autoproclamassem. Estive pensando… Me lembro de uma cervejaria em Munique, onde alguém disparou um tiro e se autoproclamou.

Mas me parece que a discussão jurídica é uma trapaça. A grande potência está disposta a intervir. Não quer que a Venezuela permaneça no contexto de uma luta geopolítica. O mínimo agora possível é a convocação de eleições com garantias para que todas as correntes políticas subsistam e que o processo possa se transformar em diálogo.

Mas as eleições também podem ampliar a polarização, se ninguém estiver disposto a ceder. Eleições entre Maduro e Guaidó? Ou o senhor descarta que eles vão sair como candidatos?

Não, eleições com todas as correntes políticas. Nisso que se chama oposição, existem vários níveis. Inclusive há um chavismo opositor. Todos têm que se expressar. E terão que sair coalizões. Mas em um jogo democrático mais ou menos liberal que permita se livrar do perigo dos tiros.

Naturalmente, é possível que surja um governo muito opositor ao que tem sido a política de Maduro e todos os demais. Não tenho dúvidas. Mas é melhor que isso tenha um respaldo eleitoral e exista um jogo democrático, do que venha a lâmina de ferro. Porque quando o pêndulo do golpe vai ao outro extremo, o que vem é o esmagamento.

Você fala de um “regime de Maduro”. Então está claro para você neste momento que é uma ditadura?

Não vou entrar neste tema, porque se quero negociar não posso insultar. Tenho que reconhecer a realidade. Tampouco vou insultar ao senhor presidente autoproclamado. Para encontrar uma saída é preciso ter a delicadeza necessária.

Entendo perfeitamente, por exemplo, a atitude do México. O México vai ver o mundo através dos cristais de sua história. Nunca endossou qualquer tipo de intervencionismo. Perdeu meio país aos EUA, o que lhe custou 12 mil soldados, e essas coisas estão latentes na cultura de um país. Essa é um pouco a realidade. Pode ser que algumas pessoas não compreendam; não sabem o que é uma guerra.

Ao mesmo tempo em que a crise da Venezuela foi se aprofundando, vários governos de esquerda na América Latina perderam por voto popular. Há uma conexão? O que acontece na Venezuela provoca dano à esquerda latino-americana?

Sim, seguramente. Há uma velha confusão entre socializar e estatizar, que desemboca no burocratismo, uma enfermidade humana muito antiga que até Roma sofreu. E há uma parte da esquerda latino-americana e mundial que não aprende as lições da história.

Isso não significa que se deva baixar as bandeiras da luta para reduzir as desigualdades. O crescimento substantivo vai a favor da economia transnacional e do mundo financeiro, e as classes médias estão congeladas e em perigo no mundo inteiro. A luta pela igualdade justifica-se mais do que nunca, não pela igualdade absoluta e sim para reduzir as distâncias sociais.

Eu não posso crer que o México, de repente, passou a votar na esquerda. Não, o México votou contra o que havia. As pessoas estão votando no contrário do que têm, porque há uma inconformidade brutal nas classes médias. Isso está complicando tudo.

Um ex chanceler do México sinalizou que o Uruguai está prisioneiro dos negócios que fez com a Venezuela, e o Secretário Geral da OEA, seu ex-chanceler Luis Almagro, sugeriu que o Uruguai esclareça estes negócios…

Essa é mais uma infâmia que se lança. Estes temas foram parar na Justiça e as decisões têm respaldo judicial. Se querem questionar a Justiça uruguaia, que a acionem. Que curioso! Pedem esclarecimentos para um lado, e não dão esclarecimentos para o outro.

O Uruguai assumiu uma posição que não é de apoio, nem de condenação. O Uruguai teme pela possibilidade de guerra. Eu também poderia dizer: são gigolôs gratuitos de Washington, se acomodaram na onda oportunista etc. Mas não falo.

O Uruguai é um país insignificante, tem 3 milhões de habitantes. Mas amanhã, no Uruguai, estarão representações de muitos governos, mais do que parece, porque esta preocupação existe. E a causa da paz está acima das outras causas.

Leia Também: