Crise argentina e a nova farsa do macrismo

Governo insinua calote com FMI por torrar bilhões com especuladores, que poderão deixar o país em seguida. Possível plano: jogar dívida para sucessor, que assumirá em condições dramáticas. Esta será principal “herança” aos argentinos

Maurício Macri recebe Christiane Lagarde, atual Diretora-Gerente do FMI, para renegociar prazos dos vencimentos da dívida
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Por Juan Guahán, na Carta Maior

A realidade começa a desgastar as políticas negacionistas do macrismo. Esta semana foi marcada pela moratória (não pagamento) “seletivo”, “parcial”, “leve”, ou como sequeira chamar, mas moratória enfim. Trata-se de um estreito caminho sobre a beira de um precipício que seria bom não dissimular, e atuar de acordo com essa realidade.

Esteve em Buenos Aires, nesta semana, uma delegação do Fundo Monetário Internacional (FMI). O governo gostaria de seguir mentindo, e mostrando caras e dados agradáveis ao público, mesmo que fossem falsos. Dessa vez, essa estratégia não foi possível. A realidade foi mais forte, e o governo teve que terminar reconhecendo, ao menos em parte, uma situação da qual vinha se falando, mas que o macrismo se negava a admitir: o dinheiro emprestado pelo FMI nos últimos meses foi quase todo ele usado em operações financeiras que tentaram, sem sucesso, manter o preço do dólar controlado, o que significa dizer que foi jogado quase todo ele no saco sem fundo da especulação financeira.

A situação econômica, nacional e internacional, se misturou com a de um povo que pedia justiça. Os governistas asseguraram que sua política impediu danos maiores, e que já não acontecerão – apesar do que digam as instituições, cada dia mais distanciadas do povo. Agora, este mesmo governo começa a reconhecer que tem um abismo diante dos seus pés, e tenta abraçar o opositor que o sucederá para enfrentar, junto com ele, os perigos desse infestado caminho que o país terá pela frente.

O cenário internacional

No horizonte internacional, crescem as dúvidas sobre a evolução da situação mundial. Suas principais manifestações surgem das incertezas sobre o modo em que se resolverão as contradições entre o poder mundial emergente (a China) e as reações do velho poder imperial expressado pelos Estados Unidos. Não são menores os temores pelo possível início de uma recessão global nos próximos anos, uma crise que poderia ter efeitos ainda mais desastrosos que os observados desde a de 2008.

Neste contexto, o FMI, que tem por objetivo “assegurar a estabilidade do sistema monetário internacional”, aceitou entregar à Argentina, em 2018, um voluminoso crédito de 57 bilhões de dólares, o maior da sua história, e que torna a Argentina o destino de mais da metade do total dos créditos outorgados pelo FMI.

A explicação para esta medida é que o FMI – majoritariamente controlado pelos Estados Unidos, agora governado por Donald Trump – vê a Argentina como um protagonista necessário, devido à sua vontade de assegurar o controle estadunidense sobre esta região, que é vista historicamente como o seu “quintal”. Isso começou a ter um peso maior sobre a já citada crise internacional, e pela disputa entre os Estados Unidos e a China.

As mencionadas razões estratégicas do FMI o levaram a agir apara manter sua aliança com Mauricio Macri, mas também estabelecer vínculos com o futuro governo. Por isso, seu comunicado da última semana falava em “estar ao lado de Argentina”. Portanto, a pergunta que fica no ar é: convém à Argentina estar ao lado do FMI?

A situação interna diante do “vazio de poder”

Goste ou não o governo, o “vazio de poder” (mencionado pelos representantes do Fundo durante sua visita) existe e é resultado de uma votação (a das eleições primárias, no dia 11 de agosto) que superou os limites institucionais para os quais foi convocada. Também se dá pela continuidade de um governo sem poder, enquanto o futuro presidente ainda não conta com a legalidade para assumir o cargo. Em meio a essa situação, Macri oscila entre duas posições: a de tentar o milagre de uma vitória quase impossível, ou abraçar o futuro governante para comprometê-lo em alguma de suas políticas.

A população argentina tenta subsistir apesar dessas incertezas, enquanto perde, todos os dias, um pouco mais dos seus direitos e sua qualidade de vida. Uma desastrosa situação financeira, os primeiros passos de uma moratória já iniciada. Um presidente ainda não eleito, mas praticamente vitorioso eleitoralmente, que se encontra diante da armadilha de ter que respeitar os prazos institucionais, cuja continuidade agrava a situação do povo, ou poderia ser acusado de tentar romper os prazos institucionais da democracia.

Sobre a perda dos direitos e da qualidade de vida, a realidade mostra esse drama diariamente, com todas as suas dores, deixando em evidência o forte aumento da insatisfação popular. As ruas são testemunhas dessa resistência, que os meios de comunicação tentam ocultar, mas que é visível, por mais que moleste alguns setores importantes da sociedade, que parecem não compreender o que ocorre ao seu redor.

A situação financeira se transformou em somente uma mostra da crise. Algo parecido ao fator detonador da crise anterior, em 2001/02, quando o então ministro da Economia, Domingo Cavallo, perdeu o apoio do sistema financeiro internacional, o que levou ao fim do governo de Fernando de la Rúa.

Após longos meses de negação da atual crise financeira, com a ajuda dos créditos do FMI que foram usados para aliviar os efeitos, o governo não teve outro remédio a não ser mostrar a real dimensão dos problemas. Até os “mercados” tentaram fingir demência, enquanto tiravam seus lucros do país. Agora, isso se tornou insustentável, e a situação começa a ficar clara para toda a sociedade.

Com um resultado eleitoral medianamente aceitável, o macrismo esperava transitar sobre águas navegáveis até outubro, mas isso já não foi possível. Veio o “dilúvio” de 11 de agosto, e esse plano naufragou, junto com as esperanças macristas pelos votos que a favor que não teve nas urnas. Diante disso, o governo pensou em reinstaurar os impostos agrários, mas desistiu rapidamente dessa ideia. Depois, imaginou que os produtores trariam seus dólares de volta do exterior, para salvá-lo, e novamente se equivocou.

A alternativa que resta são os 5,4 bilhões de dólares que o FMI deverá transferir em meados de setembro. O aviso de Alberto Fernández, principal candidato opositor e vencedor das eleições primárias, foi o de questionar o uso desses recursos, que contrariam os próprios objetivos do Fundo. Seu alerta foi feito após uma das reuniões do governo com a delegação do FMI, na qual os representantes perceberam que não há garantias sobre a data eas características dessa remissão.

O novo ministro da Economia, Hernán Lacunza, foi o encarregado de inserir uma dose de realismo ao debate, anunciando – entre várias medidas –o adiamento dos vencimentos das dívidas de curto prazo com instituições, não com pessoas físicas. A esses fins, seriam pagos 15% no dia do vencimento dos títulos, outros 60% após 90 dias e o resto após 180 dias, sem perda de capital e de juros.

Nada disso coloca fim a esta crise, e serve apenas como uma espécie de bandeirada inicial da mesa. Seu destino final é incerto. Foi somente o início de um não pagamento parcial, seletivo, leve, mas com todas as consequências de uma moratória como outra qualquer. Neste momento, estão chovendo negociações com as entidades financeiras.

Alguns conhecidos estúdios de advogados estão preparando as causas judiciais por inconstitucionalidade, devido à modificação –sem acordo voluntário – de contratos pelos investimentos que essas entidades realizaram. Como muitas empresas têm fundos nesses bônus, e agora não podem cobrá-los em sua totalidade, aumenta o risco de se cortara cadeia de pagamentos.

Essa medida foi acompanhada por outras decisões que, agora, foram enviadas ao Congresso, que dificilmente as resolverá nas semanas prévias às eleições de 27 de outubro. Entre as medidas, está a de remanejar a dívida com o FMI, mas (claro) sem diminuição de valor ou dos juros. O que se propõe é uma reestruturação da mesma, ação na qual o governo quer envolver a oposição. Essa medida poderia ser considerada justa e valiosa meses atrás, mas agora parece ser uma atitude desesperada, de figuras que não sabem lidar com a situação, e tentam assegurar que o saque dos que precisam tirar seu patrimônio do país não seja afetado, e que seus artífices não sejam julgados por tal ladroagem.

Para concluir, é preciso dizer que os vencedores das recentes eleições primárias se encontram diante da armadilha de ter que respeitar os prazos institucionais, enquanto a situação do povo se grava. Com o passar dos dias e a compreensão dos males que a continuidade do atual governo produz, muitos vão mudando seu modo de pensar, passando a reclamar de Macri e a querer que ele saia logo da Casa Rosada.

Em situações como esta, o que está em jogo é o olhar a partir do qual se observa a realidade, que pode partir da prioridade à governabilidade do sistema e suas instituições. Nesse caso, têm razão os que pensam que os prazos são sacrossantos e devem ser respeitados, sem reclamação.

Também é possível olhar a partir da ótica da soberania do povo, que considera já ter expressado sua decisão, e espera terminar o quanto antes com as dores produzidas por essa continuidade, sabendo que existe uma opção melhor.

Juan Guahán é analista político e dirigente social argentino, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

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