Como pandemia expõe as cidades fragmentadas
Com as novas tecnologias, proliferaram-se relações de trabalho e consumo baseadas na individualidade, como o iFood e o Uber. Ideais urbanos de “vida coletiva” foram abandonados – e quem sofrerá são as periferias, já sem serviços públicos…
Publicado 23/03/2020 às 16:02 - Atualizado 23/03/2020 às 16:04

Por Carlos Fernando Andrade, do BrCidades, para a Carta Capital
Coronavírus, chegando da Europa. Não um ebola qualquer, mas algo que deixou a Piazza de San Marco deserta.
Se por um lado surgiu como mais um “negócio da China”, ele logo toma um banho de loja e veste etiqueta italiana.
Em nada difere dos artigos de grife fabricados por gente pobre nos confins do globo, e assim, pelas mãos mal lavadas de nossa elite irresponsável, nos alcança.
Não como em 1918, trazido por marinheiros, disseminado por putas e vitimando até presidente da República. Agora é o próprio que vai a Miami e traz uma comitiva já transformada em vetor de propagação.
Mas deixemos o “Mito” isolado, pois, já no Rio de Janeiro, o coronavírus se concentrará nos bairros com vista para o mar, com ênfase para a Barra, epicentro dos “emergentes”. Chega-nos, portanto, como “doença de rico”.
E assim, se a doença é de primeiro mundo, os cuidados também o serão. E raramente se viu tamanha distância entre governo e povo. Não estamos muito longe dos brioches da guilhotinada Rainha, ao indicar que não se saia à rua, evitem multidões e…
Trabalhem em casa!
Não estou dizendo que se contrariem as normas, porém, ainda que adotadas na Europa e EUA, serão suficientes para a nação, em especial uma cidade, cuja principal característica é a favelização crescente e precarização generalizada do trabalho?
Ao usar a expressão “descidade”, refiro-me ao modelo de desenvolvimento que a humanidade está adotando e que contradiz a etapa anterior: a urbanização. Afinal, como símbolo de liberdade e prosperidade, mas principalmente de igualdade, renasceram as cidades.
Se a industrialização aumentou a pobreza urbana, trouxe também a luta pelos universalização dos serviços públicos e o Estado de Bem-Estar Social que, ultimamente, vem sendo solapado.
Fato que não representa, entretanto, a volta a um passado, por certo, ultrapassado. Não, algo completamente novo caracteriza a “descidade”: o uso intensivo e disseminado da tecnologia, paradoxalmente a serviço da destruição da economia nomeadamente urbana e das relações de trabalho até então vigentes.
O novo local de trabalho, equipamento e patrão passam a ser um telefone celular, vulgarizado a extremos, para o qual, aplicativos gratuitos permitem ao mais miserável dos catadores de papel receber mensagens.
Assim, multiplicam-se os serviços de entrega, os empregos temporários e o transporte substituído por chamadas a carros particulares. Por fim, uma nova legislação trabalhista admite que todos sejam empreendedores individuais. Mesmo que a empresa seja sua própria capacidade física e a jornada diária, a que suportar.
Se der para voltar para casa, formidável. Se não, uma marquise, em uma cidade em que elas chegaram a ser banidas, ainda é fácil de encontrar. Sabe-se que a população sem teto, no Rio, aumentou em grau espantoso.
Voltemos ao vírus e às recomendações oficiais, pois é essa população sem emprego formal, habitação saudável e transporte digno que é orientada a ficar em casa, evitar aglomeração e trabalhar à distância. Imaginemos que isso funcione.
Esse povo que mora nas ruas porque dela vive – camelô, flanelinha ou catador – suportará ficar em casa, se a tiver, lavando a mão e abusando de álcool gel, sem ganhar um tostão furado, por quanto tempo?
Se deixarmos sem a renda diária, quem trabalha de dia para comer à noite, algo muito mais explosivo que o coronavírus ocorrerá: o maior levante popular desorganizado da nossa história.
Preparemo-nos para uma onda gigantesca de saques, o combalido comércio baixando portas, a polícia fazendo mais vítimas do que a pandemia e, aí sim, os que só estão temendo o avanço do vírus efetivamente se trancarão em casa.
Tudo isso sem que o vírus nem mesmo precise se espalhar, para que a população descubra que, com ou sem ele, só lhe está reservado morrer, porque tudo o que se falou para que se fizesse, indiretamente, servirá para lhe matar de fome.
Não lavemos as mãos!
Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras