Como o desmatamento da Amazônia chega a sua mesa
Três maiores redes de supermercado do país — GPA, Carrefour e Big/Wall Mart — são incapazes de rastrear carne que vendem. Bois criados na floresta devastada são comprados por frigoríficos “sérios” e vão à gôndola mais próxima de você
Publicado 02/07/2020 às 14:59 - Atualizado 02/07/2020 às 15:02
Por André Campos e Carlos Juliano Barros, noRepórter Brasil
Na última semana de junho, representantes de importantes fundos de
investimento internacionais com ativos estimados em R$ 20 trilhões
publicaram uma carta aberta pedindo ao governo brasileiro que detenha o
desmatamento na Amazônia.
Em maio, um grupo de 40 multinacionais — como a marca de fast-food
Burguer King e a rede britânica de supermercados Tesco — já havia
colocado em xeque a compra de insumos do Brasil caso o Projeto de Lei
2633/2020, apelidado de “PL da Grilagem”, fosse aprovado pelo Congresso
Nacional.
Proposto com o objetivo de agilizar a regularização de imóveis rurais
na Amazônia, o projeto de lei vem sendo duramente criticado por
ambientalistas que temem o incremento da devastação da maior floresta
tropical do mundo. Só nos cinco primeiros meses de 2020, a área
derrubada foi 64% superior em relação ao mesmo período do ano anterior,
segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A explosão do desmatamento na Amazônia entrou no radar de governos e
grupos empresariais estrangeiros. Porém, parte expressiva do produto dos
crimes ambientais ainda é consumida no Brasil. No caso da indústria da
carne bovina, reconhecidamente o principal vetor de expansão da
fronteira agrícola e de derrubada de vegetação nativa, cerca de 76% da
produção ficam no país, segundo a Associação Brasileira das Indústrias
Exportadoras de Carnes (Abiec).
Ao longo do mês de junho, a Repórter Brasil publicou uma série de reportagens que revela como fazendas na Amazônia e no Cerrado envolvidas em diversas irregularidades — de desmatamento ilegal à criação ilegal de gado em terras indígenas — estão ligadas a importantes frigoríficos. Essas empresas, por sua vez, abastecem as três maiores redes de varejo do país, responsáveis por um terço de todo o faturamento do setor de supermercados: Carrefour, Grupo Pão de Açúcar (GPA) e Grupo Big, ex- Walmart.
Rastreabilidade em xeque
A investigação mostra que os sistemas de monitoramento dos
frigoríficos, criados para restringir a compra de gado de propriedades
com problemas, apresentam falhas e vêm sendo driblados por pecuaristas.
Por meio de diferentes estratégias que ocultam a origem ilícita do
rebanho, os bois podem ser vendidos a multinacionais de proteína animal,
como JBS e Marfrig, e a abatedouros de alcance regional — como Frigol e
Mercúrio.
A reportagem questionou se as três principais redes de supermercados
do país também dispõem de ferramentas de controle para garantir que suas
lojas não comercializem carne bovina de gado alimentado em áreas
críticas. Por meio de suas assessorias de imprensa, as companhias
emitiram notas oficiais de conteúdo bastante semelhante — e genérico.
O Carrefour, por exemplo, afirma que “exige de toda a sua cadeia de
fornecimento o cumprimento à legislação ambiental e aos direitos humanos
e repudia qualquer prática ligada ao desmatamento”. Já o Grupo Big diz
que que “não compactua com quaisquer práticas contrárias à sua política
de responsabilidade corporativa”. Por fim, o GPA “informa que acionou os
quatro frigoríficos mencionados pelo Repórter Brasil solicitando
esclarecimentos sobre os casos apontados”. Leia aqui a íntegra das respostas.
Ao longo da última década, os principais grupos empresariais do
Brasil ligados ao setor da carne bovina — incluindo redes de
supermercados — assinaram diversos compromissos públicos para limar de
suas cadeias de fornecimento produtores que exploram trabalho escravo e
devastam florestas sem permissão.
Esses pactos foram criados por organizações da sociedade civil, como
Greenpeace e Instituto Ethos, e também por órgãos de Estado — como o
Ministério Público Federal (MPF). Basicamente, as empresas incorporaram
aos seus sistemas de compra de matérias-primas uma série de dados
oficiais organizados por órgãos públicos ambientais e trabalhistas.
Porém, como mostram as investigações da Repórter Brasil,
especialistas acreditam que essas políticas chegaram a um limite e já
não dão conta de afastar da indústria da carne os produtores envolvidos
em irregularidades. “Parece que os acordos chegaram a um nível em que
não andam mais para frente”, afirma Adriana Charoux, responsável pela
Campanha Amazônia do Greenpeace Brasil.
“Chama a atenção como os supermercados no Brasil têm pouquíssima
informação pública disponível sobre suas cadeias de fornecimento”,
analisa Gustavo Ferroni, coordenador de Direitos Humanos e Setor Privado
da Oxfam Brasil. A organização de origem inglesa mantém um programa
global que monitora varejistas do mundo todo. “Sobre a cadeia da carne,
eles até têm um pouco mais de informação, mas mesmo assim é quase nada. É
um compromisso sucinto, um posicionamento genérico sobre cadeia de
fornecimento. Eles não falam especificamente como vão cumprir”,
acrescenta.
Caio Magri, diretor-presidente do Instituto Ethos, vai na mesma
linha. “Todas as ferramentas de rastreabilidade, de mitigação de riscos e
de prevenção de irregularidades socioambientais precisam ser revistas —
todas!”, enfatiza. “Temos que reconhecer os avanços, eles foram muito
importantes. Porém, a tecnologia que hoje está instalada nos
computadores e nas métricas de todos que controlam rastreabilidade já
não é suficiente”, afirma Magri.
Falta de transparência
De acordo com Gustavo Ferroni, os supermercados brasileiros ainda
estão longe de atender aos princípios construídos pela Organização das
Nações Unidas (ONU) para a chamada “devida diligência”.
Originalmente aplicável aos departamentos de contabilidade das
empresas, o conceito foi expandido para as áreas de sustentabilidade e
de direitos humanos. Resumidamente, ele se refere às medidas concretas
que as companhias privadas precisam desenvolver para checar de fato se
seus fornecedores cumprem as legislações ambientais e trabalhistas.
“Os princípios da ONU falam de cumplicidade por parte dos
supermercados com seus fornecedores — independentemente se é uma relação
comercial que envolve um ou vários elos na cadeia. E não dá para alegar
ignorância porque fazer a devida diligência deveria ser uma obrigação”,
afirma o coordenador da Oxfam Brasil.
Em outras palavras, as redes varejistas deveriam ser mais proativas
no processo de checagem permanente de fornecedores — e não apenas
responder a denúncias por parte de organizações e veículos de imprensa.
Mas, na avaliação de Adriana Charoux, “os supermercados desde sempre
parece que vêm a reboque das decisões das indústrias frigoríficas”.
Outra premissa da devida diligência é a transparência de informações.
Por exemplo: disponibilizar em site de fácil acesso uma lista com a
identificação precisa dos fornecedores. “Se esses dados fossem
divulgados, as organizações da sociedade civil também poderiam vigiar.
Mas as empresas não divulgam. Elas dizem que são ‘informações
estratégicas’, mas não deveriam ser”, critica Ferroni. Adriana, do
Greenpeace, concorda: “se os supermercados estão fortalecendo seus
sistemas internos de controle, eles não estão comunicando a
sociedade”.
Para Caio Magri, é preciso criar mecanismos “participativos” de rastreabilidade para atuar em conjunto com as comunidades impactadas. “Por que as redes de varejo não dialogam e criam um link com os territórios onde eles têm fornecedores importantes e críticos para saber o que está acontecendo lá, semanalmente?”, questiona o diretor-presidente do Instituto Ethos. “Como fazer isso? Ainda não temos solução. Mas precisamos de inovação e tecnologia social”, finaliza.