Com Pedro Castilho, o Peru volta a sonhar

Empossado, presidente peruano enfrentará um Congresso hostil, que já derrubou quatro presidentes. Mas articula alianças para conter a ultradireita – e aposta em nova Constituinte para mobilizar o país e sepultar o neoliberalismo

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Por Yair Cybel, do CELAG, com tradução na Revista Opera

Assim como há 200 anos, quando as elites de Lima tentaram frear a façanha libertadora de José de San Martín, este ano as classes dominantes peruanas fizeram o possível para evitar o triunfo eleitoral de um professor de Cajamarca. Porém, assim como há dois séculos, fracassaram em sua tentativa. Um mês e meio depois dos comícios, o Júri Nacional Eleitoral (JNE) reconheceu os resultados do segundo turno e nomeou o professor Pedro Castillo como novo presidente do Peru.

Um professor rural montado a cavalo que percorreu o país de povoado a povoado agitando o sonho de uma reforma constitucional e a proposta de redistribuir a riqueza. “Não mais pobres em um país rico”, o lema do partido Perú Libre, conseguiu representar as regiões mais atrasadas, os sindicatos, os camponeses e as classes populares urbanas para finalmente prevalecer por 42 mil votos sobre a candidata favorita do establishment peruano, Keiko Fujimori, que com apenas 46 anos perdeu o segundo turno pela terceira vez consecutiva, acusou fraude e demorou o máximo que pôde para reconhecer sua derrota.

No dia 28 de julho, 200 anos após a independência do reino da Espanha, Pedro Castillo assumiu como presidente do Peru. Com 51 anos, Castillo enfrenta agora um enorme desafio: cumprir o compromisso que o levou à presidência. A Assembleia Constituinte é o cavalo de batalha que o professor montou, e os cenários que se abrem são diversos e complexos. 

Enquanto se espera que a opção constituinte seja consolidada, a certeza é de que Pedro Castillo terá que lidar com um Congresso hostil e opositor, com uma história recente marcada pelo habitual conflito entre os poderes Legislativo e Executivo. Os mandatos de Pedro Pablo Kuczynski e de Martín Vizcarra estiveram marcados por estreitos recursos de confiança e vacância (o equivalente peruano de um impeachment cruzado em que o Executivo tenta esvaziar o Congresso e vice-versa). Esses mecanismos institucionais deixaram caídos quatro presidentes em apenas quatro anos e um clima de desconfiança nas instituições que perdura até hoje. 

Apesar da tentativa de explorar acordos parlamentares, é evidente que esse caminho será difícil para o professor: a construção das maiorias necessárias implicaria complexos e amplos acordos políticos, que não parecem fáceis de alcançar em um Congresso com maioria de bancadas de direita. Uma primeira mostra foi a eleição da Mesa Diretiva do Parlamento, em que a lista do Perú Libre foi impugnada e venceu a candidata do setor mais conservador do Acción Popular, María del Carmen Alba, que liderará a legislatura durante o período 2021-2022. Esta resolução reflete uma correlação de forças preocupante, já que o Congresso será a instância responsável por aprovar os ministros indicados por Castillo. Outro dado que preocupa é que a contestação à lista oficialista contou com 79 votos, apenas oito a menos do que o necessário para aprovar um recurso de vacância (impeachment).

Apesar disso, desde que triunfou nas urnas, Castillo conseguiu romper o bloco legislativo fujimorista, primeiro firmando acordos com o liberal Partido Morado e o social-liberal Acción Popular e em seguida iniciando diálogos com partidos personalistas como o Somos Perú (que levou Martín Vizcarra como primeiro candidato), o Alianza para el Progreso (do empresário César Acuña) e Victoria Nacional, do ex-goleiro de futebol George Forsyth. Em um Congresso onde a lealdade às bancadas é muito frágil, até deputados que chegaram ao Parlamento através do ultradireitista Rafael López Aliaga anunciaram que apoiarão medidas do Perú Libre

Em todo caso, como já mencionamos, o Congresso peruano é um espaço hostil para encabeçar um processo que pretende desmontar o projeto neoliberal implementado no calor da Constituição fujimorista de 1993. A via mais ousada seria a convocação de um referendo constituinte, uma consulta não isenta de obstáculos legais e que em sua fórmula mais provável implicaria a reunião de assinaturas correspondentes a 10% do eleitorado (cerca de 2,5 milhões de avais), o que permitiria a realização de uma consulta constitucional. Embora isso ainda não esteja decidido, parece que o apelo à mobilização e o horizonte transformador constituinte serão as únicas cartas vencedoras que o professor terá para cumprir e capitalizar a ideia de “mudança” que o levou ao palácio do governo, e evitar o desânimo dos seus seguidores. 

Enquanto isso, a estratégia do fujimorismo não alcançou seu objetivo final – a impugnação das eleições e a realização de um novo segundo turno –, mas conseguiu atrasar a tomada de posse, instaurar a ideia de fraude e socavar certa legitimidade institucional no setor mais radicalizado da oposição. No entanto, também pagou seu preço: perdeu o apoio de aliados, deteriorou a confiança do setor indeciso e conseguiu unificar um espectro amplo da sociedade peruana que se manifestou em defesa da institucionalidade. Do presidente em função, Francisco Sagasti, à embaixada norte-americana no Peru, o triunfo de Castillo foi reconhecido, algo que a própria Keiko se negava a aceitar. 

A retórica combativa de Fujimori também habilitou o surgimento de grupos de rua violentos que sob o nome de “La Resistencia” saíram para assediar Lima em uma espécie de cruzada “contra o comunismo”, com prédicas racistas e elitistas. Os ataques a militantes e jornalistas feitos por essa formação alertam para possíveis escaladas de violência e enquadram nitidamente o chamado à “mais ampla unidade” convocada por Castillo no dia do seu reconhecimento oficial. 

A composição do gabinete também é expressão dos desafios que Castillo enfrenta. A escolha do economista e professor universitário Pedro Francke como ministro de Economia e Finanças tem sido lida como uma mostra pela busca de perfis dialogantes e com experiência em gestão, algo imprescindível frente ao complexo desafio de democratizar a renda em um país que acumula três décadas de crescimento sem redistribuição. Francke, responsável pela Economia na equipe de Verónika Mendoza até então, chega ao posto após uma intensa agenda de diálogo com os setores do establishment peruano e com a convicção firme de avançar na redistribuição dos benefícios de dois dos setores mais favorecidos durante as últimas três décadas: as mineradoras e os bancos, um desafio enorme, mas à altura das necessidades do país.

Francke negou os rumores sobre expropriações e assegurou que construirá uma equipe de “funcionários de alto nível”. “Não haverá estatizações, nem expropriações, nem controle de preços”, explicou em entrevista ao El País. O economista mencionou a necessidade de impor novos impostos aos setores mais beneficiados pela exportação, como o cobre, e endossou a decisão de dar continuidade à política de autonomia do Banco Central de Reserva. “Das experiências latino-americanas, gosto mais da uruguaia”, sentenciou o economista.

O novo gabinete também expressa a aliança política que chega ao governo com o professor: aos quadros orgânicos do Perú Libre juntam-se quadros políticos e técnicos com ampla experiência e trajetória (Economia e Saúde), e os espaços cedidos a aliados, como o Nuevo Perú, que ocupará os ministérios de Economia e da Mulher, e o movimento RUNA na Cultura.

À frente do Ministério das Relações Exteriores estará Héctor Béjar, sociólogo e escritor de 86 anos, referente vinculado aos movimentos de esquerda e funcionário do governo de Velasco Alvarado. A indicação da socióloga Anahi Durand (Nuevo Perú) à frente do Ministério da Mulher vem para derrubar os presságios sobre uma gestão conservadora em matéria de direitos das mulheres. Durand, doutora em Sociologia pela UNAM, foi chefe do plano de governo da campanha de Verónika Mendoza e pretende trabalhar em uma política nacional de igualdade que integre um sistema de cuidados e políticas específicas para mulheres empreendedoras. 

Um importante foco da tensão na aliança oficialista está na relação entre o presidente e o partido Perú Libre. A pressão para distanciar Castillo de Vladimir Cerrón (ex-governador de Junín, presidente do Perú Libre e um dos principais quadros da estrutura partidária de esquerda) foi uma constante que emergiu dos grupos de direita, mas que ecoou na própria esquerda. No entanto, grande parte da capacidade política que o presidente poderá ter reside em sustentar o vínculo orgânico com sua organização partidária e conservar a unidade interna e as alianças que soube construir. A priori, aprofundar a distância entre Cerrón e Castillo parece ser uma aposta que se encaixa melhor nos planos de quem não deseja que ocorram grandes mudanças, mais do que uma vantagem para os que precisam de um amplo leque de forças que permita avançar em mudanças estruturais. 

Finalmente, o avanço do processo constituinte poderia gerar um reordenamento da direita. O desgaste de Fujimori no seu processo de contestação dos resultados eleitorais pressagia uma recomposição orgânica na oposição, fragmentada em suas representações políticas e parlamentares e órfã de uma liderança que a possa aglutinar. Os rearranjos parlamentares mostram que Castillo terá margem para dialogar com um setor mais moderado, mas que encontrará uma forte oposição no Fuerza Popular, no Renovación Nacional e no Avanza País (cujas bancadas somadas alcançam 43 das 130 cadeiras).

200 anos após a independência do Peru, com um desafio de proporções monumentais, o professor Castillo enfrenta um momento que será um divisor de águas para a história do país. Somente a transformação das regras do jogo, a redação de uma nova Constituição e o apelo à mobilização e à organização popular poderão evitar as tramas e manobras que o establishment peruano já demonstrou dominar perfeitamente nas instituições e palácios. 

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