Ciência e Razão em tempos sombrios

Método científico calcado na objetividade e na ordem tornou produção de saberes terreno estéril, apartado dos dilemas e projetos da sociedade. Gerou monstros como o negacionismo. Saída exigirá efervescência e pluralidade de saberes

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Por Léo Peruzzo Júnior, no Le Monde Diplomatique Brasil

A ciência moderna apropriou-se de um estilo de investigação calcado na ideia de que seria possível construir uma aliança entre o homem e a natureza, vínculo este que poderia apaziguar nossa gélida solidão no universo. Assim, a partir de um ponto de vista estritamente materialista, encontraríamos o tão esperado conhecimento objetivo e, consequentemente, a razão inspiradora da ordem matemática que a tudo se impõe. Este amadorismo intuicionista, porém, foi responsável por consolidar uma imagem de ciência isenta de quaisquer propósitos valorativos. A este respeito, Jacques Monod (1910-1976), por exemplo, prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1965 por descobertas sobre o controle genético da síntese de enzimas e vírus, afirmou que o principal desafio aos cientistas é justamente o edifício filosófico materialista moderno segundo o qual o mundo não tem um propósito, uma vez que ele é simplesmente um “universo gélido de solidão”. Lutar contra este feitiço, portanto, requer analisar como as visões de mundo são construídas a partir da ciência ou, como problematizou Francis Bacon, por quais motivos o domínio do conhecimento científico torna-se, frequentemente, uma forma de poder.

A exortação de Jacques Monod, na obra O Acaso e a Necessidade, é ainda mais profunda e perigosa: esta visão de mundo científica-objetiva tornar-se-ia um guia mais adequado para avaliar a verdade na medida em que a Biologia, mais do que todas as outras disciplinas, seria responsável por clarear “em termos não metafísicos o problema da ‘natureza humana’”. O fato é que esta imagem de ciência como uma atividade neutra, imparcial e não ideológica cedeu espaço para um ambiente insuflado de modelos cujo instrumentalismo não deixou de ser um ato religioso. Assim, a ciência abandonaria o argumento de que sua prodigiosa capacidade está na maneira como produz resultados para aderir aos fins econômicos e políticos que sustentam sua estrutura de trabalho. Este atrito permite explicar, mesmo que parcialmente, que a subordinação da atividade científica a outros parâmetros e valores pode representar um risco à visão de futuro daqueles que esperam da ciência o alçar do propósito moderno. A crise no interior da ciência, portanto, revela que há uma conexão íntima entre os resultados científicos e a vida das pessoas ligadas à produção de tais resultados. O pêndulo deste movimento não denota apenas como uma sociedade elege e estrutura seus valores [morais, científicos e políticos], mas como um simples descompasso é capaz de dizimar milhares de vidas.

O ritmo deste pêndulo, isto é, entre a atividade científica e a produção de resultados que deem conta da malha plural que é a realidade, essencialmente depende daquilo que Paul Feyerebend (1924-1994), um dos filósofos da ciência mais importantes do século XX, denominou de “crítica democrática à ciência”. Se a ciência não se preocupar com a vida das pessoas que não estão diretamente ligadas à produção de tais resultados corre-se o risco de eliminar o pluralismo que é a base da sociedade. Por isso, uma ciência que não está sujeita ao controle democrático pode ser produtora dos maiores monstros. Entretanto, a posição anarquista de Feyerebend está longe de agasalhar os “monstros” que ostentam o pluralismo como forma medíocre para atacar as evidências científicas que estão submetidas constantemente à autoavaliação, testabilidade e crítica do próprio método. As redes sociais, por exemplo, são a expressão legítima deste tipo de mediocridade intelectual que aspira apoio através do consenso, e não dos argumentos. É o locus por excelência da espetacularização das falácias, da banalização do horror e da manifestação egoística do desejo instantâneo.

A crise democrática no interior da ciência, porém, é uma vantagem metodológica: por um lado, porque permite que a aliança entre o homem e a natureza seja constantemente avaliada; por outro, porque possibilita que a própria ciência não seja um terreno seco e estéril distante de nossas aspirações, projetos e necessidades, particularmente aquela que preserva e acolhe os mais vulneráveis e marginalizados. A crise da ciência, por fim, deveria nos mostrar que o edifício filosófico que os cientistas adotam, em maior ou menor grau, não é uma tolice epistemológica de segunda ordem. Ao contrário, ele é tão crucial quanto aos possíveis resultados que poderão ser encontrados no mundo. A este respeito, vale recordar que nem toda ciência trabalha a partir de um ato de “descoberta”, haja vista, por exemplo, aquilo que a mecânica quântica tem indicado ao postular que as características do mundo “aparecem” quando os observadores agem de forma apropriada.

Nesse ponto, precisamos recordar, ainda, a indagação feita por Feyerebend: “será que existe apenas uma única visão ‘científica’ de mundo?”. O filósofo procura atacar o ranço cientificista que torna a vida, este movimento de caráter simbólico e plural, uma expressão às coordenadas “gélidas” e “frias” indicadas por Monod. Obviamente, o pluralismo que Feyerebend indica não é aquele que permite atacar as outras partes e dissolver o próprio papel da ciência, mas o ambiente em que os passos mais inovadores, como escreve, só foram possíveis porque a comunidade científica ousou desobedecer ao conjunto de regras metodológicas que os prendiam. A insurreição é uma característica típica do fazer científico. Isso explicaria, segundo ele, porque a Ciência deve ser separada do exercício político do Estado, como ocorreu com a religião na moderna sociedade secular.

Este hiato entre o método da Ciência – esta tradicionalmente aceita como um corpus de conhecimentos sistematizados – e a Sociedade – uma massa heterogênea de indivíduos com interesses distintos e organizados politicamente – acompanhou a própria emergência de uma crise da razão. Até onde, afinal, ela nos permite chegar? Estaríamos enclausurados, então, dentro de tais limites e coordenadas? Não ignorando este particular problema, Bento Prado Júnior (1937-2012) afirmou, em uma de suas obras, que o combate à desrazão seja talvez o sintoma mais evidente de uma eterna crise da razão. Segundo ele, a crise da razão aparece na polêmica entre modernos e pós-modernos, no embate entre universalistas e relativistas e nas formulações entre racionalistas e irracionalistas. A crise da razão é exposta na tensão da linguagem, na diversidade das formas de vida, na justificação e escolha de determinados paradigmas e, por que não, naquilo que prejulga da constituição ontológica do mundo. Esta crise também se mostra, por exemplo, na necessidade política de precisarmos combater, neste momento, as trivialidades e obviedades que estão aí na nossa frente: a indiferença diante da morte, o negacionismo do trabalho científico e a disseminação de conteúdos violentos e falsos. Alguém teria dúvidas, portanto, de que não vivemos uma crise profunda no emaranhado de questões que compõem o clássico conceito de razão? Ou, ainda, que o confronto de imagens e visões de mundo seria intrínseca, por um lado, à incapacidade de a ciência descrever cirurgicamente a natureza e, por outro, à impotência que o próprio pensamento está submetido?

Cedendo espaço para este movimento pode-se, então, reconhecer que os tempos sombrios que politicamente vivemos apenas agravam nossa condição de humanos. Não vencemos o confronto com a natureza, não driblamos os labirintos da racionalidade e não escapamos das relações políticas de poder que constituem o horizonte fático da existência. Contudo, enquanto a Ciência procura fundamentar sua própria atividade e a racionalidade intenta contra a ignorância, as relações de poder e os limites da soberania, díspares e heterogêneas, continuam instrumentalizando o mundo da vida e, como escreveu o filósofo camaronês Achille Mbembe ao cunhar o termo “necropolítica”, escolhem quem deve viver e quem deve morrer. Isso não significa, por sua vez, conformar-se com a precariedade diante de tal condição, mas de aventurar-se contra esta cegueira que apenas a cultura pode romper. Nossos tempos não são sombrios apenas pela depravação moral e intelectual daqueles que politicamente nos governam. Há um conjunto de outros problemas e variáveis que abrem espaço e permitem que tais políticas de segregação possam se aglutinar mais facilmente. A política da morte [“E daí?”] consegue se manter apenas se alguns corpos frágeis forem dispensáveis ou mutilados. Por isso, asfixiar o acesso à Educação ou eliminar as Humanidades, por exemplo, é adubar o solo para que determinadas ideologias – autoritárias e fascistas – possam justificar seus instrumentos a fim de combater o aumento das taxas de criminalidade ou, como afirmaria Michel Foucault, normalizar os corpos e torná-los dóceis.

Ora, se não há um mapa científico para ler o futuro, sua ausência também não poderia continuar servindo para legitimar racionalidades que representam um risco ao pluralismo e à vida cotidiana. Por isso, o anarquismo diante do método torna-se similar à resistência face a uma política nefasta e genocida. Não vivemos tempos menos sombrios do que a Idade Média porque, assim como lá, há sonhadores e sonhadoras que continuam  aspirando uma aventura intelectual livre. Contra todo este movimento obscurantista vale recordar, por último, a afirmação de Feyerebend, em Contra o Método: “Algumas ciências (teoria econômica, por exemplo) encontram-se em um estado lastimável. Outras são versáteis o suficiente para transformar um desastre em triunfo”. Não precisamos apenas de vacinas; precisamos de política, cultura e um espaço suficiente democrático para o livre pensar.       

Léo Peruzzo Júnior, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PUCPR. Pós-Doutor em Filosofia pela Università Ca´ Foscari, Veneza.

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