Centenário de Ingar Bergman e a culpa das mulheres

Bibi Andersson e Liv Ullmann em “Persona” (1966)

.

Seu fascínio chega ao ponto de machucá-las — inclusive fisicamente, como em “Persona”. Vinga-se assim do desejo que provocam nele – e de que são, evidentemente, “culpadas”

Por Walnice Nogueira Galvão, no GGN

Um dos maiores diretores de cinema que já houve: e para muitos o maior, assim superlativamente, como declara Woody Allen no prefácio de Lanterna mágica, a autobiografia de Bergman. Os fãs preferem esquecer as constrangedoras tentativas do prefaciador, que pretendeu imitá-lo, e o desastre em que redundaram.

Ali pelo fim da década de 50 Bergman já estava arrebatando todos os prêmios dos maiores festivais, incluindo o Oscar. É nessa década que realiza seus principais filmes: Juventude, Mônica e o desejo, Noites de circo, Sorrisos de uma noite de amor, O sétimo selo (um preto e branco de beleza plástica insuperável), A fonte da donzela, Enquanto as mulheres esperam, Morangos silvestres (um filme perfeito). A seguir viriam Luz de inverno, O silêncio, Persona (o mais experimental de todos e um pivô na obra do autor), A hora do lobo, Vergonha, Gritos e sussurros, Cenas de um casamento, O ovo da serpente, Sonata de outono, Fanny e Alexander, entre outros. Com este último, após um decênio longe das telas, voltaria a ganhar prêmios: só no Oscar foram quatro, mas também em Cannes e Veneza. Entretanto não retornaria ao cinema. Ao todo foram cerca de 40 filmes, bem menos que as montagens no palco, onde seria mais prolífico, com cerca de 170 encenações entre teatro, ópera, rádio e televisão. Entre estas, um best-seller é o DVD de A flauta mágica, de Mozart.

Guarda parentesco com Strindberg e Ibsen, dramaturgos escandinavos do fim do século XIX, com seus mundos decadentes, dilacerados, sem misericórdia nem redenção. Uma visão sobrecarregada, cruel anatomia da sociedade burguesa sobre a qual paira a sombra de Kierkegaard, cujas concepções deixaram rastros. Interroga-se a morte, a culpa, a ausência de Deus, o torvelinho da alma humana, a maldade, a fé, a loucura, raramente irrompendo uma nota mais leve.

Conhecidas são suas divas, no cinema e na vida real: as irmãs Harriet e Bibi Andersson, Eva Dahlbeck, Ingrid Thulin, Liv Ullman. No total, deixou 9 filhos, de diferentes mães. Sua tumultuada vida amorosa está candidamente contada por ele próprio na autobiografia e em documentários alheios.

Atrizes e protagonistas são tremendas mulheres marcantes. Uns acham que Bergman é um inigualável pintor de retratos de mulheres, manifestando seu fascínio por elas, que ocupariam um lugar sublime em seu altar pessoal. Outros o acusam de sádico, pois leva a verrumação da alma delas até ao ponto de machucá-las e humilhá-las, inclusive fisicamente (v. Gritos e sussurros, Persona). Seria uma maneira de se vingar do desejo avassalador que sente por elas – e de que elas são, evidentemente, “culpadas” – levando-o a detonar sua própria vida com frequência. É conhecido fenômeno, responsável por muita misoginia. É bem verdade que poucos cineastas levaram ao paroxismo, como ele, o estudo do dilaceramento mútuo que pode ser a relação de um casal, que ele disseca com bisturi implacável.

Filho de um pastor protestante luterano, vem de uma criação estrita e severa, coalhada de castigos corporais, num cotidiano em que perpassam o diabo, o inferno, a culpa, e assim por diante. Ele confessa que odiava o pai e almejava a morte dos irmãos. Uma tal criação, moldando-lhe e deformando-lhe a personalidade, seria exorcizada na obra do artista. Fala muito de demônios, espíritos e seres inomináveis que o atormentam. É de notar o contraste entre, de um lado, a vida pessoal desordenada e, de outro, a vida profissional disciplinada e produtiva.

Tão cedo quanto possível escolheria viver como um recluso na ilha de Farö, onde morreu e foi enterrado.

Este ano, que assinala seu centenário de nascimento, está tomado por celebrações mundo afora. Seu país, a Suécia, decretou 2018 como o “Ano Bergman”. O restante do mundo segue seus passos. No Brasil, aqui em São Paulo, brindam-nos com o Festival Cinesesc, esta casa de projeções na rua Augusta que resiste heroicamente à destruição de todas as maiores salas, sempre pronta a acolher eventos de arte que não visem nem ao lucro nem à moda. Ali se apresentou, entre 27 de junho e 3 de julho, uma mostra dos filmes mais representativos do cineasta.

Leia Também:

Um comentario para "Centenário de Ingar Bergman e a culpa das mulheres"

  1. Marlene Carvalho disse:

    Gostei do artigo sobre Bergman.

Os comentários estão desabilitados.