Bruno Paes Manso investiga Bolsonaro e o elo miliciano

Em República das Milícias, recém-lançado, pesquisador aponta: laços do clã com crime são materiais e ideológicos. Presidente expressa ideia de que a força deve prevalecer, mesmo contra a lei. Colapso da Nova República permitiu sua ascensão

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Entrevista a Edison Veiga, na DW Brasil

Em agosto de 2018, quando o jornalista, economista e cientista político Bruno Paes Manso lançava o livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, em parceria com a socióloga Camila Nunes Dias, ele não acreditava que o “então folclórico” candidato Jair Messias Bolsonaro fosse se tornar o próximo presidente do Brasil.

Pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Paes Manso afirma à DW Brasil que tinha convicção de que a atuação da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), abordada naquela sua obra, estaria na pauta eleitoral brasileira daquele ano por causa do virtual crescimento da candidatura do tucano Geraldo Alckmin, ex-governador de São Paulo.

Pouco mais de dois meses depois, contudo, Alckmin nem sequer foi para o segundo turno, e Bolsonaro acabou eleito. Foi quando o pesquisador se rendeu: era preciso mergulhar no universo das milícias para, em suas próprias palavras, “entender a cena Bolsonaro, essa fase que se iniciava na democracia brasileira”.

Pelo menos oito viagens ao Rio, incursões pelas favelas, dezenas de entrevistas realizadas e muitos documentos analisados resultaram no livro A República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, que Paes Manso lança na última quarta-feira (07/10).

Em entrevista à DW Brasil, o pesquisador fala sobre o discurso armamentista do presidente, a morte da vereadora Marielle Franco, e a ligação da família Bolsonaro com as milícias, que, segundo ele, é ideológica. “Bolsonaro sempre representou e defendeu uma ideia de milicianismo, essa ideia de que as leis muitas vezes atrapalham.”

De onde vem a ligação da família Bolsonaro com as milícias?

Vem principalmente dos funcionários de confiança e das pessoas com quem eles se relacionam [no livro, o pesquisador esmiúça os casos de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, e do ex-policial militar Adriano da Nóbrega]. Alguns deles [como Nóbrega] se tornariam os principais criminosos do Rio de Janeiro. Acima de tudo, há uma ligação ideológica. [Jair] Bolsonaro sempre representou e defendeu uma ideia de milicianismo, essa ideia de que as leis muitas vezes atrapalham – e isso perpassa suas críticas à Nova República, à Constituição de 1988, aos defensores dos Direitos Humanos, aos “que querem entregar o Brasil ao comunismo”. Ele tem muito dessa conversa e desse discurso, a ideia da ruptura imposta pela força, de reinventar a política por meio de uma autoridade que vai se impor e restabelecer os valores tradicionais pela violência, mesmo que para isso a lei precise ser desconsiderada.

Daí vem o discurso armamentista, por exemplo?

Quando ele assume o poder, não apenas flexibiliza o uso de armas como também os critérios para que as polícias matem. Como se esses grupos dos quais ele faz parte e que representam uma certa moralidade reacionária pudessem se impor e refazer o mundo melhor a partir do uso da força. Tem uma ideologia muito forte na aposta dessa violência redentora, uma violência que deve resgatar o país.

A ascensão política de Bolsonaro tem a ver com os milicianos?

Ele sempre foi uma figura meio inexpressiva, mas depois da imensa ressaca vivida pelo brasileiro com os 30 anos da Nova República e com o “lavajatismo” e a sequência absurda de corrupção, começou a se formar uma descrença no sistema político. A solução passou a ser vista na polícia, nos juízes, nas autoridades capazes de estabelecer a ordem. Como no Rio já havia a existência desses grupos [milicianos], formou-se uma espécie de modelo viável para se contrapor ao crime.

Ele [Bolsonaro] se vende como aquele capaz de usar as armas e a força contra essa falta de autoridade que as pessoas passaram a enxergar na política brasileira. Mais do que a relação direta com os milicianos, portanto, ele se tornou representante dessa ideia. A ideologia miliciana passa por medidas políticas, porque tais medidas funcionam para fragilizar as instituições democráticas de controle e para fortalecer grupos dispostos a usar a violência em defesa de seus próprios interesses. Daí a flexibilização do porte de arma, o armamento da população.

O próprio Bolsonaro, em sua transparência, deixou isso muito claro em uma reunião presidencial em que falou que se as armas estivessem à disposição das pessoas elas poderiam atirar no prefeito que estabelecesse o confinamento [por causa da pandemia de covid-19]. Você tem a crença em uma violência redentora contra a lei e o Estado de Direito, o “pegar em armas para impor a nova vontade geral”.

Se tivesse [apoio popular para tal], alguém teria dúvida de que ele aplicaria um golpe? São mais dois anos em que a gente fica suspenso, na expectativa de que, em algum momento, se achar condições, esse golpe seja dado, com ou sem o uso da violência. Bolsonaro nunca negou isso. Ele vai e volta, mas é sempre muito mais empático e convicto quando fala sobre o empecilho das instituições democráticas ao governo que ele pretende fazer. A ameaça de golpe é permanente.

Por que as milícias se tornaram fortes no Rio de Janeiro e não em outras grandes cidades brasileiras?

Isso vem de uma ligação muito antiga e próxima dos policiais [cariocas] com a contravenção, por meio de parcerias frutíferas para os dois lados, além das próprias características territoriais da cidade. Há mais de 700 comunidades [no Rio] que passaram de alguma forma a ser controladas com base em armamento pesado, ao contrário do que ocorre em outras cidades. Com essa configuração, apesar de formalmente em uma democracia, existem centenas de áreas controladas por tiranias, chefes com dinheiro das milícias impondo a lei e o terror à população. É o dilema carioca: você prefere o tráfico ou a milícia? Como se não houvesse uma terceira opção, que é a do Estado de Direito.

Quase mil dias depois da morte de Marielle [Franco, socióloga e vereadora], o que podemos dizer sobre quem matou Marielle, quem mandou matar Marielle e por quais razões o assassinato de Marielle foi consumado?

Algumas coisas ficaram evidentes. Primeiro, que não foi um crime perfeito, como a polícia tentou fazer crer nos primeiros meses. Existem indícios muito fortes, principalmente quanto à autoria. A grande dúvida ainda é por que eles teriam matado e a mando de quem. Há algumas hipóteses. [O policial militar reformado] Ronnie Lessa tinha uma série de ligações com a contravenção e milicianos. Era o braço direito de Adriano da Nóbrega [morto em fevereiro, ex-capitão do Bope, acusado de chefiar o grupo miliciano Escritório do Crime, e com histórico de ligações com Flávio Bolsonaro – a mãe e a mulher de Nóbrega foram funcionárias do gabinete do filho do presidente, e o próprio miliciano recebeu uma condecoração do político]. Até que ponto havia uma motivação política? Eles queriam atrapalhar a intervenção [federal que ocorria no Rio naquele período]? Por quê? Queriam se vingar de algum político ou de alguém que estivesse atrapalhando os negócios, no caso mais evidente o Marcelo Freixo [hoje deputado federal, na época deputado estadual; do Psol, mesmo partido político de Marielle Franco]?

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