Brumadinho, 3 anos: negligência e vidas soterradas

Jornalista reconstitui os minutos antes e depois da barragem ruir pela perspectiva das vítimas. A verdade dos fatos é implacável: Vale S.A. conhecia os riscos e preferiu não agir

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Por Daniela Arbex na Piauí

Um forte estrondo foi ouvido dentro da Mina do Córrego do Feijão, controlada por uma das maiores empresas de mineração do mundo, a Vale S.A., em Brumadinho, Minas Gerais. Naquele momento, o técnico em sondagem e perfuração Lieuzo Luiz dos Santos e mais quatro funcionários da Fugro estavam no penúltimo degrau da Barragem 1, a cerca de 70 metros de altura, comemorando o sucesso da perfuração vertical que vinha sendo realizada no alto do maciço de rejeitos havia quase dez dias. Finalmente, às 11 horas daquela sexta-feira, 25 de janeiro de 2019, a perfuratriz operada por Lieuzo se aproximara de 68 metros de profundidade, o ponto máximo previsto para a instalação de vinte piezômetros, instrumentos capazes de medir remotamente a pressão interna da água do reservatório.

Multinacional holandesa com escritórios em quatro estados do Brasil, a Fugro in Situ Geotecnia Ltda. fora contratada pela Vale para substituir os equipamentos manuais de monitoramento da barragem pelos automatizados, a fim de imprimir maior precisão ao controle do reservatório. Apesar de desativada, a B1 armazenava o equivalente a 400 mil caminhões-pipa carregados de rejeitos e, por questão de segurança, precisava ter a pressão da água checada todos os dias por meio desses equipamentos, além de passar periodicamente por vistorias de engenheiros e especialistas em geotecnia.

Para realizar o trabalho de implantação dos piezômetros, Lieuzo, na época com 55 anos, saíra do interior de São Paulo em direção a Brumadinho havia pouco mais de um mês. Quando avistou a B1 pela primeira vez, impressionou-se com sua grandiosidade. O dique inicial fora projetado na década de 1970, ainda sob a gestão da empresa de capital alemão Ferteco Mineração S.A. Com 18 metros de altura e atingindo 874 metros de elevação acima do nível do mar, começou a ser operada seis anos depois. Adquirido pela Vale no início dos anos 2000, o maciço de rejeitos se agigantou, somando dez alteamentos – camadas que vão sendo erguidas na barragem à medida que aumenta o volume de rejeitos. O último fora concluído em 2013, para ampliar a capacidade de armazenamento da mistura de líquidos e sólidos resultante do processo de beneficiamento do minério, que gera dois subprodutos: o concentrado e o rejeitado.

A Mina do Feijão contava ainda com outras três barragens menores: a B6, vizinha da B1, a IV e a IV-A. Mas era a B1 que se destacava na paisagem coberta de verde da jazida, situada entre a Área de Proteção Ambiental Sul, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, definida como uma Unidade de Conservação, e a zona de amortecimento (de uso restrito para as atividades humanas) do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça.

Tão logo deu início à sua tarefa, Lieuzo ouviu falar que havia pontos de vazamento na B1. Soube, então, que desde junho do ano anterior a Vale vinha tentando lidar com o problema. Mas não chegou a se preocupar seriamente – acreditava que em uma empresa com tantos protocolos de segurança a questão seria em breve solucionada. Assim, naquele 25 de janeiro de 2019, a atenção de Lieuzo estava toda voltada para a perfuração no alto da barragem.

Lieuzo e parte de sua equipe haviam deixado bem cedo o município de Nova Lima, onde estavam hospedados, em direção à zona rural da comunidade do Córrego do Feijão. A colocação dos piezômetros na B1 dependia da perfuração do solo do reservatório. O trabalho foi realizado com a utilização de água misturada com bentonita, um agente de fluidos usado em perfurações de poços. Eram cerca de oito da manhã quando o grupo pisou na Mina do Feijão. Trabalhavam com Lieuzo na B1 os auxiliares de sondagem Olímpio Gomes Pinto, 57 anos, e Miraceibel Rosa, 38 anos, o encarregado de obras Noel Borges de Oliveira, 50 anos, e a técnica de segurança do trabalho Elis Marina Costa, de 24 anos.

Por aqueles dias, Elis, a mascote da turma, estava em Feijão para cobrir férias de outra funcionária da Fugro. Ela estagiara na mineradora Samarco, da qual a Vale é uma das controladoras, na cidade mineira de Mariana, concorrendo ao estágio incentivada pelo pai, um operador de máquinas pesadas que durante uma década prestara serviços em uma mina da região. O estágio de Elis começou logo após o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco, ocorrido em 5 de novembro de 2015, que arrasou o subdistrito de Bento Rodrigues, onde se situava. Até hoje o rompimento de Fundão é considerado o maior desastre ambiental do país.

Já dentro da mina, Lieuzo e os colegas percorreram, na picape Ford Ranger branca da Fugro, a estrada que levava ao topo da barragem. A perfuratriz estava posicionada no nono degrau do maciço, bem próximo da crista. De capacete, óculos de proteção e colete refletivo nas cores laranja e verde, o grupo precisadiegova da máxima concentração para que o ângulo e a profundidade do furo estivessem perfeitamente alinhados.

Morador do município paulista de Ilha Solteira, Lieuzo estava a 1 mil km de casa e dava expediente na vida desde a infância. Quando menino, trabalhara em várias fazendas de algodão e, só aos 18, com o ensino fundamental completo, encontrou a primeira oportunidade de mudar o seu destino: conseguiu emprego no laboratório da Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira, onde o pai era contratado como segurança. A partir daí, aprendeu o ofício de sondagem e perfuração de solo, trocando a hidrelétrica pelas barragens de minério de ferro.

Embora passasse longos períodos longe da esposa, dos três filhos e da neta, Lieuzo tinha conseguido dar aos seus descendentes o que não tivera: tempo para estudar. Com seu salário, pagava a faculdade de biomedicina da filha mais nova e sentia um orgulho imenso de poder proporcionar à família algum conforto. Valorizava o que fazia, mesmo que a função o levasse para tão longe de seus amores.

– Seu Lieuzo, vem tomar café – convidou Elis debaixo da tenda azul erguida no alto da barragem para garantir, em vão, alguma sombra. – Trouxe um bolo que fiz ontem à noite e um pão caseiro.

Ao contrário de Lieuzo, que morava longe, Elis vinha de Rodrigo Silva, distrito da cidade de Ouro Preto situado a apenas 107 km de Brumadinho, onde moravam seus pais e a irmã mais velha.

– Menina, lá vem você com essas gostosuras. Seu namorado é um felizardo. Você deve ter prendido ele pelo estômago.

– Quase noivo – corrigiu a jovem. – Daqui a menos de dois meses a gente vai oficializar o noivado. Será no dia 13 de março, quando comemoro meu aniversário de 25 anos.

– Pena que eu não estarei mais em Minas. Em fevereiro, quando a gente acabar o serviço aqui na barragem de Brumadinho, a Fugro deve me mandar para a mina da Vale no Pará.

– É longe, hein, Seu Lieuzo.

– Põe longe nisso. É muito chão, Elis.

– Vou chamar os outros. Acordamos muito cedo e esse lanchinho vai ajudar a enganar a fome – declarou a jovem, percebendo, satisfeita, que Olímpio, Miraceibel e Noel já haviam sido atraídos pelo cheiro do café.

Durante o lanche rápido, Olímpio chamou a atenção para o estranho comportamento do gado que costumava pastar no entorno da barragem. Era a primeira vez que via o rebanho inquieto, correndo de um lado para o outro como se estivesse se preparando para uma fuga.

– Gente, por que será que o gado está tão agitado hoje?

Enquanto o pessoal da Fugro concluía a primeira parte das atividades no alto da B1, lá embaixo funcionários da Reframax Engenharia Ltda., empresa de Belo Horizonte contratada pela Vale, executavam mais uma etapa das obras de implantação do sistema de proteção e combate a incêndio na Mina do Feijão em uma estrada que ficava ao pé da barragem. O responsável pelo plano de obra era o gestor de produção Romero Oliveira Xavier, de 33 anos. Seu traçado previa, entre outras medidas, a instalação de tubulação subterrânea capaz de bombear água, em caso de incêndio, para o complexo da mineradora – onde se incluíam, por exemplo, os prédios administrativos, entre outras edificações. Todos se situavam no sopé do gigantesco reservatório. Além dos hidrantes, estavam sendo colocadas sirenes sonoras de alerta contra fogo.

Metade dos 59 colaboradores da Reframax se dedicava à escavação da via de acesso próxima ao prédio de Instalação de Tratamento de Minério (ITM) para a acomodação dessa tubulação. Na tentativa de causar o menor impacto possível no funcionamento das atividades da mineradora, as intervenções na estrada interditada começaram às 4h30 num dos trechos mais próximos do paredão de rejeitos. A escavação seria realizada em dois turnos, com intervalo para almoço das onze ao meio-dia, e a recomposição do aterro compactado deveria estar concluída até as duas da tarde. Se ultrapassassem esse horário, o fechamento da passagem de veículos comprometeria a operação na Mina do Feijão.

Ainda era de manhã quando o celular de Romero tocou. No outro lado da linha, estava o engenheiro Cristiano Jorge Dias, de 42 anos, também da Reframax:

– Romero, você está dentro da mina?

– Estou sim, Cristiano, na área dos contêineres.

– Então já pode se preparar para ir embora, porque já estou chegando no Córrego do Feijão – avisou o colega.

Cristiano saíra do Rio de Janeiro e chegara a Brumadinho na véspera. Viajara até a cidade mineira para substituir Romero, que tinha exame médico obrigatório marcado em uma clínica de segurança do trabalho no Centro. Em sete dias, ele já alterara três vezes a data da consulta. Se protelasse de novo, a liberação magnética do seu crachá, que dava acesso à Mina de Feijão, seria imediatamente cancelada. Se, por um lado, a obra não poderia prosseguir sem a presença de um responsável, por outro, não poderia haver interrupção nos trabalhos. Por isso Cristiano desembarcou em Feijão e logo tomou ciência, por meio de Romero, de tudo o que já havia sido executado até aquele horário.

– Ó, o Daniel está lá no escritório fazendo a medição mensal dos projetos – explicou Romero ao colega antes de ir para o exame.

– OK – devolveu o recém-chegado. – Vai logo, senão você perde mais uma consulta.

Romero deixou a mina às 10 horas com o compromisso de retornar logo após a avaliação médica. Ele estava na sala de espera da clínica, em Brumadinho, quando o assistente de engenharia Daniel Guimarães Almeida Abdalla, de 27 anos, chamou-o pelo celular:

– Então, Romero, estou concluindo as medições aqui na Mina do Feijão, mas a internet caiu. Eu preciso postar o resultado no sistema da Vale até o início da tarde, porém, com a rede fora do ar, não consigo.

– Uai, cara, vem aqui pro Centro de Brumadinho. São onze e meia agora. A gente se encontra aqui na clínica e passa lá em casa para postar os dados. Depois almoçamos juntos e retornamos pra mina. Me avisa quando chegar. Preciso desligar porque já vão me chamar pra consulta.

– Beleza – respondeu Daniel.

Ainda com esperança de conseguir enviar a documentação de dentro do escritório que a Reframax mantinha na mina, Daniel refazia os cálculos de todos os gastos da obra no instante em que Cristiano o abordou:

– Ei, Daniel, como estão as coisas? Conseguiu resolver o problema com a internet?

– Cara, infelizmente não. Vou precisar ir lá em Brumadinho pra conseguir lançar no sistema o resultado da nossa medição mensal – explicou Daniel. – Continuamos sem internet aqui.

– Faz o seguinte: fica e almoça aqui comigo na mina. Quando o Romero voltar, você vai.

– Tá certo, então – disse Daniel, esquecendo-se de avisar Romero de que não iria mais ao encontro dele no Centro de Brumadinho, conforme combinado.

Daniel era sobrinho dos donos da Reframax, mas todos sabiam que ele não admitia privilégios por conta do parentesco. Tinha os próprios méritos. Seis meses antes de se formar, ganhara uma bolsa de estudos em Pittsburgh, nos Estados Unidos, onde viveu por um ano. De volta ao Brasil, concluiu a faculdade e, aos 25 anos, já trabalhava na Reframax. Dois anos depois, foi para a Mina do Feijão, mas já estava sendo sondado para trabalhar em uma empresa no Canadá tão logo as atividades ali terminassem.

Depois de combinar com Cristiano o almoço, Daniel foi buscar, em um dos contêineres da Reframax, a chave da Renault Duster branca que usaria para se deslocar até o refeitório da Vale, que ficava no setor administrativo do complexo. Já no contêiner, o engenheiro encontrou o ajudante-geral Antônio França Filho, de 55 anos, que fazia a limpeza dos banheiros.

– Oi, Antônio. Já almoçou?

– Já, sim, senhor.

– Uai, você foi cedo – respondeu o outro intrigado, de olho no relógio.

– Sabe o que é, Seu Daniel, é que daqui a pouco eu vou ter que subir para a ITM. O encarregado de obras pediu para eu ir para lá ajudar o eletricista a soldar o suporte das luminárias que estamos colocando no quarto andar.

– De qualquer jeito, bom trabalho – desejou Daniel, despedindo-se.

Cinquenta minutos depois, já na estrada bloqueada para a instalação da tubulação do sistema de combate a incêndio, Antônio se encontrou com o eletricista Marcos Vinícius da Silva, de 29 anos, da Reframax. De lá, seguiram para a construção de quatro pavimentos da ITM, aonde chegaram às 12h20. Usaram o corrimão de metal para se equilibrar entre as rampas e as pontes suspensas. Venceram dezenas de degraus e andaram por grades de piso até atingirem o quarto andar.

– Ô, Marcos, o calor daqui está igual ao da sua Bahia – provocou Antônio.

Marcos Vinícius concordou.

Eram 12h20 quando o técnico de mina Gleison Pereira, de 40 anos, e o engenheiro Diego Antônio de Oliveira, de 27 anos, entraram na Mina do Feijão pela estrada que a ligava à Mina Jangada. O coordenador Lúcio Rodrigues Mendanha, de 36 anos, com quem Gleison se encontrara no início da manhã, havia pedido a Diego que fosse para Feijão antes do início da reunião da tarde, e Gleison se comprometera a levá-lo em seu carro. Assim, aproveitaria para buscar Carlinhos, o operador Carlos Antônio de Oliveira, de 51 anos, pai de Diego.

Na entrada do complexo, Gleison usou seu crachá para abrir a cancela que dava acesso ao Terminal de Carga Ferroviário. Ele e Diego encontraram o sinal de trânsito fechado, já que naquele horário a prioridade era para a passagem dos ônibus que transportavam os funcionários para o almoço. Após a liberação do semáforo, os dois seguiram para o prédio do refeitório. Carlinhos já os esperava quando eles chegaram.

– Na hora que eu terminar aqui, te ligo para a gente combinar os últimos detalhes para a nossa reunião da tarde – avisou Diego a Gleison, descendo da Hilux e aproximando-se de Carlinhos. – Bênção, pai.

– Deus te abençoe, filho – respondeu Carlinhos, embarcando na caminhonete e sentando-se no banco do carona, onde estivera Diego minutos antes.

Diego caminhou para o refeitório, onde almoçaria com Lúcio, e a Hilux partiu.

– Carlinhos, eu tô um pouco atrasado, porque ainda tenho que voltar para Jangada – disse Gleison. – Preciso deixar você lá, almoçar e descer de novo para Feijão, porque tenho que participar da reunião da tarde com o Diego e o Lúcio. Então eu não vou fazer o contorno na área administrativa, senão a gente vai perder cinco minutos até o semáforo abrir de novo. Vou virar o carro aqui mesmo.

Ciente de que incorria em infração, pois estavam perto do prédio da medicina e por isso só veículos de emergência podiam manobrar ali, Gleison brincou:

– Depois eu passo a multa para o chefe pagar.

Naquele exato momento, o técnico em sondagem Lieuzo, que continuava no alto da B1, repassava à equipe o planejamento das novas perfurações que seriam feitas no solo do reservatório a partir da semana seguinte. À tarde, ele acionaria o setor de engenharia da Vale para definirem a instalação dos piezômetros.

– Miraceibel, vamos comigo fechar a gaiola da sonda e descer para almoçar – pediu o técnico.

Elis, Noel e Olímpio ajudaram a recolher os materiais e seguiram para a Ranger, onde acomodaram as mochilas, sentaram-se e ligaram o ar-condicionado, aguardando o retorno de Miraceibel e Lieuzo.

– Gente, anda logo que tô com fome – gritou Noel na tentativa de apressar os colegas que estavam fora da picape. – Já são 12 horas e 28 minutos. Agora mesmo está na hora de voltar e nem saímos para almoçar.

Miraceibel ainda fechava a gaiola da sonda quando Lieuzo, de relance, notou que a tenda azul balançava. Pensou que a movimentação tivesse sido causada por uma súbita ventania. O tempo, porém, continuava firme e não havia uma nuvem sequer no céu azul. Mas o técnico em perfuração e sondagem não teve nem tempo de se tranquilizar. Sentiu o chão tremer. Com o coração descompassado, a respiração ofegante, a pupila dilatada e a boca seca, ele foi tomado de pavor. Ato contínuo, o nono degrau em que os funcionários da Fugro trabalhavam começou rapidamente a perder elevação. Tudo estava em movimento.

Em dez segundos, o maciço de 86 metros de altura se desmanchou no ar. Sem chance de correr, Lieuzo viu Miraceibel ser sugado para dentro da terra em colapso. A avalanche de lama foi cobrindo tudo que encontrava pela frente. Fendas se abriram em toda a extensão da barragem e engoliram o carro onde estavam Elis, Noel e Olímpio. Uma imensa cratera se abriu, e também o gado despencou dentro dela. Solta no ar, a perfuratriz ganhou impulso na direção de Lieuzo, que conseguiu saltar para a frente, mas afundou, levado pela onda de rejeitos. “Morri”, pensou ele, antes de perder os sentidos.

A onda de rejeitos seguiu, impiedosa, revolvendo e escavando o solo por onde passava. Árvores foram arrancadas pela raiz. Estruturas de prédios, carros, tratores e até caminhões de 100 toneladas foram levados. Surpreendidos pela avalanche líquida que se movimentava a 108 km/h sobre a Mina do Feijão, os 27 funcionários da Reframax que trabalhavam a céu aberto na escavação da estrada bloqueada para a instalação de uma tubulação não tiveram a mínima chance de se salvar. Alguns foram arrastados por quilômetros.

Segundos antes, Antônio França Filho, o ajudante-geral da Reframax que trabalhava com o eletricista Marcos Vinícius em uma ponte aramada da ITM, viu um operador de escavadeira da Vale que fazia o carregamento de um caminhão abandonar o veículo e sair correndo pelo pátio do Terminal de Carga Ferroviário.

– Por que será que ele tá correndo feito louco? – comentou com o colega.

Não chegaram a entender. Foram surpreendidos pelo barulho de uma explosão no andar de baixo. Em seguida, o tsunami de lama carregou parte da estrutura e o telhado galvanizado veio abaixo. Marcos Vinícius desapareceu de vista e Antônio despencou de uma altura de 7 metros. Desesperado, pensou no filhinho de 6 anos, Davi, e berrou o nome dele com toda a força.

Daniel, Cristiano e dois funcionários da Reframax para os quais deram carona na saída do refeitório – o analista de planejamento Cláudio Leandro Rodrigues Martins, de 37 anos, e a engenheira Eliane de Oliveira Melo, de 39 anos, grávida de cinco meses – voltavam para o escritório na Duster branca quando viram homens correndo e gritando em direção oposta à do veículo. Também foram surpreendidos pelo paredão de terra e água que se movia em direção ao carro. Em pânico, Daniel, que estava ao volante, acelerou para tentar escapar daquela onda de cerca de 18 metros de altura. A Duster, porém, atolou em uma poça e foi encoberta pela fúria da avalanche. As câmeras de segurança da Vale flagraram o instante em que o grupo foi atingido. A onda em espiral foi engolindo a Mina do Feijão com a força de uma arrebentação em dia de tempestade, tingindo de barro o verde da paisagem.

Quando o estrondo invadiu a mina, Gleison manobrava a Hilux em que estava com Carlinhos. Eles se preparavam para deixar a Mina do Feijão e retornar para a Mina de Jangada. O relógio do painel marcava 12h28.

– Carlinhos, o que é isso? – perguntou o técnico de mina assustado, já que não havia nenhuma detonação agendada para aquele horário.

O companheiro não respondeu. Carlinhos tinha emudecido ao ver postes de eletricidade serem derrubados e virem na direção da Hilux.

– Meu Deus, é um acidente feio! – exclamou Gleison.

– Pelo amor de Deus! Corre, corre! – gritou Carlinhos, enquanto, no terminal ferroviário ao longe, vagões de trem se empilhavam como brinquedos.

Gleison deu ré, girou o volante e arrancou a 80 km/h, mais que o dobro da velocidade permitida no local, para tentar ultrapassar as cancelas fechadas.

– Segura, Carlinhos, que a gente vai passar – avisou, pisando ainda mais fundo no acelerador, mas um poste caiu sobre o carro.

“É o fim”, pensou Gleison. Não era. Parte da estrutura do poste esbarrara na lataria do carro, mas ficara suspensa pela fiação. Mesmo com a picape amassada, os retrovisores quebrados e o vidro do para-brisa trincado, eles foram em frente. Àquela altura, ambos já tinham entendido que a barragem havia se rompido e que os rejeitos de minério encobriam a mina e avançavam com toda a força para a área administrativa.

Carlinhos começou a chorar.

– Meu filho, meu filho! Ele está lá embaixo, no refeitório. Ele vai morrer.

– Calma, Carlinhos. O Diego é forte. Ele vai conseguir escapar.

– Não vai. Ele vai morrer – repetia o outro, desesperado.

Enquanto dirigia, Gleison tentava se comunicar pelo rádio com os funcionários da Mina do Feijão. Ele não ouvira nenhuma sirene de alerta e temia que todos dentro das instalações da mina tivessem sido apanhados de surpresa.

– Atenção, Caldeira! Atenção, Istélio! Tira todo mundo da mina porque a barragem estourou.

Silêncio.

– Atenção, pessoal – repetia, aos berros. – É uma emergência!

Sem resposta.

Encurralado, Gleison seguiu em direção à portaria principal da mineradora, único caminho que ainda não tinha sido tomado pelo barro. Na fuga, encontrou um homem tentando escapar a pé. Mesmo com o risco de ser alcançado pela lama, Gleison parou o carro.

– Sobe! Rápido, rápido – ordenou, olhando pelo retrovisor para não se descuidar do avanço dos rejeitos.

Já na carroceria do veículo, o homem resgatado ajudou a chamar outros que buscavam sair dali e que, exaustos, não conseguiam mais correr. Carlinhos continuava chorando, enquanto uma poeira densa de cor alaranjada tornava a visibilidade cada vez mais difícil. Gleison parou a caminhonete outras duas vezes, apanhando pelo menos dez pessoas. Uma mulher paralisada pelo medo foi a última a ser puxada pelo grupo para dentro da caçamba. Ela machucara a perna durante a correria e, sem forças, deitou-se no assoalho do carro.

– Acelera, acelera, que está se aproximando – gritavam todos, enquanto o técnico cruzava a portaria principal da Vale, ainda dentro do complexo da mina, cantando pneu.

A cena com a qual os ocupantes da Hilux então se depararam era desoladora: sem rumo, dezenas de funcionários corriam de um lado para o outro à procura de um local seguro.

– Tenha misericórdia, meu Deus do céu! Ô meu pai! Nossos amigos, gente… – clamava repetidamente Leandro Dias, prestador de serviços responsável pela manutenção das catracas da Vale.

Leandro tinha acabado de chegar à portaria. Estava almoçando no refeitório e foi chamado para checar o funcionamento do equipamento porque alguém não estava conseguindo entrar na Mina do Feijão. Foi quando viu o desespero tomar conta de tudo. Em choque, só conseguiu pegar o celular e filmar. Durante a gravação, flagrou o carro de Gleison entrando na área em alta velocidade.

Mas logo a marcha foi reduzida, pois outras pessoas agarravam-se à Hilux querendo embarcar.

– Acelera! – diziam os que tinham conseguido subir na caçamba.

Gleison parou ainda uma vez. Um homem abriu a porta da caminhonete e se jogou no banco de trás. Outro pulou na carroceria.

– O que aconteceu? – perguntou Leandro, quando o veículo se aproximou.

– Tá caindo – ouviu como resposta.

– Acelera, acelera! – pediu alguém a Gleison.

O técnico de mina deu partida rapidamente, enquanto Leandro saiu correndo sem saber para onde.

Felizmente, contudo, em função da diferença de altimetria do terreno e da topografia acidentada da mina, encravada entre vales, a onda de lama sofreu um súbito desvio na portaria da Vale. Arrastou vários caminhões-pipa na entrada, mas não invadiu a área em que estavam Leandro e os outros funcionários. Avassaladora, foi em frente em direção ao Terminal de Carga Ferroviário, 594 metros abaixo do reservatório.

Apenas doze segundos após o rompimento da barragem, a inundação alcançava a linha de trem e os vagões que estavam em movimento.

Naquele dia, Sebastião Gomes, de 53 anos, e Elias de Jesus Nunes, de 44 anos, operadores de saneamento ambiental da Vale, almoçaram antes do meio-dia. Tiveram pouco tempo para saborear a feijoada servida por Dona Beatriz no refeitório porque precisavam conduzir dois funcionários terceirizados ao terminal ferroviário. Nenhum prestador de serviços tinha autorização para circular sozinho pela área, e coube a Sebastião e Elias fazerem as vezes de batedores para o caminhão limpa fossa dos prestadores. Embarcaram em uma Hilux prateada, utilizada para o monitoramento das áreas de saneamento, que foi acompanhada pelo caminhão com o motorista e o ajudante contratados para fazer a limpeza da fossa no vestiário da área de carregamento do Terminal de Carga Ferroviário. Ao chegarem, Sebastião e Elias desceram da Hilux para ajudar os visitantes na manobra.

Os dois falavam com os ocupantes do caminhão quando foram surpreendidos pelo som da explosão.

– Elias, que barulho é esse? – indagou Sebastião, olhando para todos os lados. – Acho que o pneu de um off road estourou. Tá ouvindo? Tem gente gritando.

Ainda não tinham entendido o que acontecia, quando, repentinamente, diante deles, vagões de carga foram levantados. Descarrilados, eles se amontoaram sobre a pera ferroviária – pátio circular onde se faz o transbordo dos trens –, enquanto a locomotiva tombava, arrastando o comboio e cercando os homens que trabalhavam na área.

– Que maquinista doido. Como ele arranca a máquina desse jeito? Olha, Sebastião, o trem descarrilou – disse Elias, retirando o celular do bolso para filmar o que acreditava ser um acidente com os trens.

Ao ajustar o foco, viu pela tela do celular uma nuvem de poeira cobrir o local. Ficou assombrado, não com a poeira, mas com a avalanche que vinha com ela. Uma das câmeras de vigilância instaladas no local registrou o horário dos rejeitos avançando: 12h29.

– Meu Deus do céu… Que montueiro de terra é esse? – murmurou Elias.

De costas para a barragem, Sebastião imaginou que o colega se referia ao suposto descarrilamento. Foi quando, aos berros, Elias alertou:

– Sebastião, a barragem rompeu. Vamos sair daqui, porque nós vamos morrer!

Elias correu para a Hilux, ligou o carro e chamou novamente o colega. Paralisado, Sebastião não sabia o que fazer. Olhava fixo para um trator, bem longe, no pátio, cujo motorista ziguezagueava com a máquina, tentando fugir do caos. E ouvia os gritos do motorista do caminhão limpa fossa, em pânico:

– Valei-me, minha Nossa Senhora Aparecida. Valei-me, Jesus!

Os vagões descarrilados arrastaram tratores de esteira, pás carregadeiras e outros caminhões pesados, lançando tudo na direção da Hilux. A lama, o trem e outros veículos cercaram o grupo 43 segundos após a explosão na barragem. O motorista do caminhão e seu ajudante desceram do limpa fossa, escalaram a cabine de um caminhão-tanque parcialmente destruído que estava por perto, alcançaram o seu teto, correram por cima do veículo e de lá pularam para o teto de um caminhão carregadeira.

Sebastião continuava sem rumo. Desperto pelos gritos de Elias, afinal reagiu, mas tropeçou.

– Deus, me ajude – implorou Sebastião.

– Sai daí – ordenou Elias pela janela do carro.

Com esforço, Sebastião se levantou e alcançou a caminhonete, jogando-se no banco do carona. Elias trancou as portas e fechou os vidros. Pensou em dirigir na direção da estrada que dava acesso a uma das áreas descampadas da mina. Tratava-se de um dos pontos de encontro incluídos pela Vale no Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração (PAEBM), que estabelecia prováveis rotas de fuga em caso de emergência. Elias obedeceu à rota traçada no papel, mas descobriu que, na prática, era impossível sair por lá. A lama cobrira tudo.

Ele movimentou o carro para a frente e para trás, e voltou ao ponto inicial. Dirigiu em círculos até cruzar com Leandro Borges Cândido, de 37 anos, motorista de uma pá carregadeira que também procurava uma saída. Não havia. A enorme pilha de minério no centro do pátio ferroviário até dividiu a lama, mas não impediu que ela se juntasse poucos metros adiante, deixando o grupo num círculo fechado.

– Sebastião, pede perdão pra Deus que a hora de passar para o outro lado é agora – anunciou Elias, desligando o carro e puxando o freio de mão. – Vamos entregar a Deus nossas almas.

Os dois deram-se as mãos e, juntos, começaram a rezar em voz alta. Em meio ao Pai-Nosso, ouviram uma pancada fortíssima na porta da caminhonete. Primeiro a lama bateu no lado do motorista, encobrindo a janela de Elias. Ele fechou os olhos, implorando por um fim rápido. O carro foi violentamente empurrado. Destroços atingiram o para-brisa e o lado em que estava Sebastião. O veículo foi lançado para o alto. O vidro traseiro quebrou.

– Livramento, meu Pai – sussurrou Elias.

Quando o carro finalmente parou, o dia tinha virado noite dentro dele. Estava tudo escuro.

Enquanto isso, Gleison se afastava da portaria da Vale com sua caminhonete apinhada de gente. Todos berravam tentando orientá-lo para um trajeto oposto ao da lama. Sugeriam a estrada onde ficava a imagem de Nossa Senhora Aparecida. A padroeira negra do Brasil, envolta em seu manto azul, fora fixada em uma pequena gruta de pedra construída em um dos locais mais altos da Mina Córrego do Feijão.

– Santinha, santinha! – gritavam.

O lamaceiro seguia seu curso e, após passar sobre o terminal ferroviário, não encontrou obstáculo que o impedisse de transformar em escombros a área administrativa da Vale, abaixo da B1. Exatamente como a empresa previra em seu Mapa de Inundação, ao analisar nove meses antes a possibilidade de um rompimento da barragem. No caso de uma hipotética ruptura do maciço, o refeitório, o posto médico, o laboratório, os escritórios, as oficinas e o Centro de Materiais Descartados, todos a cerca de 1,5 km da B1, seriam soterrados. De fato, foram.

A Vale previu ainda que, no caso de um eventual rompimento, o tempo de chegada da inundação nas edificações a até 2 km da B1 seria inferior a 1 minuto. Ou seja, não haveria nenhuma chance de fuga do local que a empresa delimitou como “zona de autossalvamento”. Pelos cálculos da multinacional, em caso de estouro da barragem, o mar de detritos e lama provocaria mais de duzentas mortes.[1] Obrigatória em empreendimentos dessa natureza, a simulação do cenário de catástrofe feito pela Vale foi de uma precisão assustadora. Só não serviu para incentivar a empresa a tirar o setor administrativo da rota do tsunami.

Entre os operários e a barragem, havia duas torres com sirenes que deveriam soar em situação de emergência, mas elas continuaram em silêncio. E, no dia em que a tranquilidade do horário do almoço foi interrompida por um episódio real, e não hipotético, o mar de lama já estava perto demais para qualquer tentativa de escape. Não havia lugar seguro e, pior, nenhuma chance de chegar a algum. Os rejeitos não só cobriram os prédios, como varreram do mapa todas as suas estruturas, porque o terreno original foi escavado pela lama em mais de 10 metros de profundidade – o suficiente para abalar as fundações de concreto, tornando o espaço desértico e irreconhecível.

Junto com a terra molhada, tratores de 70 toneladas, conhecidos como esteiras d10, foram levados pela enxurrada por mais de 2 km. Quando a mancha de lama passou por cima da mina, solapando a cabeceira da barragem vizinha, a B6, e soterrando as outras duas barragens menores, a IV e a IV-A, a B1 rompeu os limites da mineradora, seguindo na direção da Pousada Nova Estância, cujos quinze quartos estavam reservados para turistas. Antes, porém, alcançaria as casas da zona rural do Córrego do Feijão, onde moravam cerca de quatrocentas pessoas. Sem aviso, a vida delas mudaria para sempre.


[1] Perderam a vida na tragédia 270 pessoas. Sete vítimas continuam desaparecidas.


Trecho do livro Arrastados – Bastidores de uma Tragédia Anunciada: O Rompimento da Barragem de Brumadinho, o Maior Desastre Humanitário do Brasil, a ser lançado neste mês pela editora Intrínseca.

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