Brasil já perdeu uma França de florestas para pastos

Com 89 milhões de cabeças de gado, só a Amazônia abriga hoje 42% do rebanho brasileiro. Após décadas de avanço predatório da pecuária, devastação e grilagem, pesquisadores dizem ser possível encerrar tragédia sem perdas econômicas

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Por Edison Veiga, na DW Brasil

A Amazônia está virando pasto. É o que números mostram: quase 42% do rebanho brasileiro está nos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Maranhão, que formam a chamada Amazônia Legal. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 89 milhões de cabeças de gado na região.

E o preço é pago pela floresta. Segundo um levantamento da plataforma Mapbiomas, entre 1985 e 2019 o Brasil transformou 67,8 milhões de hectares de florestas em pastagens, uma área maior que a da França, além de 8,6 milhões de outras formações naturais, como áreas alagadas e savanas.

“Ou seja, cerca de 76,4 milhões de hectares de vegetação nativa foram convertidos em pastagens no Brasil entre 1985 e 2019”, comenta o pesquisador Tiago Reis, que estuda ações de combate ao desmatamento na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.

Considerando os dois últimos censos agropecuários, entre 2006 e 2018, a área de pasto apenas na Amazônia Legal saltou de 42,4 milhões para 50,6 milhões de hectares. É como se todos os anos 747 mil campos de futebol avançassem sobre a mata nativa — e fossem ocupados por bois.

Governo incentivou avanço de pecuaristas sobre a floresta

De acordo com especialistas, isso ocorre por um motivo simples: plantar capim e encher de gado é a maneira mais simples de ocupar um território. E para entender essa questão é preciso recuar algumas décadas.

“O momento histórico em que se começa a pensar em políticas públicas para a Amazônia é exatamente o período da ditadura militar, com uma visão um tanto paranoica, o ‘integrar para não entregar’, e grandes projetos de estradas, de agronegócio de ocupação econômica da Amazônia”, contextualiza Marcio Isensee e Sá, diretor de conteúdo do projeto ((oeco)) e diretor do filme Sob a Pata do Boi, lançado em 2018.

Nos anos 1970, o governo federal incentivava esse avanço dos pecuaristas sobre a floresta. Anúncios com slogans “toque sua boiada para o maior pasto do mundo” eram recorrentes na mídia.

“O boi é a forma mais fácil de ocupar um território, depois que você derruba a floresta. O capim você planta muito facilmente, pode ir de avião e jogar semente, vai nascer. Colocar boi é a forma mais fácil de ocupar a região, mesmo que não seja necessariamente para a produtividade”, pontua Sá.

Recém-lançado pelo projeto ((o))eco, em parceria com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o livro Sob A Pata do Boi – Como a Amazônia Vira Pasto traz histórias e números que fundamentam esse cenário.

O estado do Pará ilustra bem a questão. De acordo com informações compiladas pelo livro, em 1970, havia ali pouco mais de 2 milhões de habitantes. E eram menos de 2 milhões de cabeças de gado. Trinta anos mais tarde, o estado já contava com 6 milhões de habitantes e mais de 10 milhões de bois nas pastagens. Em 2010, o número de habitantes havia saltado para quase 8 milhões — já o de gado, estava em 18 milhões.

Exploração “predatória”

“A Amazônia vira pasto porque existem pessoas que não sabem extrair valor da floresta, só sabem extrair valor da floresta convertida em pasto, da pecuária extensiva e ineficiente”, critica Reis. “O boi tem alta liquidez e é uma forma de o sujeito guardar sua reserva de valor. É um ativo que sempre valoriza.”

Ele aponta que tais pecuaristas atuam “de forma predatória”. “Ele não recupera o solo, não preserva pastagem. Desmata, queima, usa a pastagem até o solo esgotar, então vai para outra área, abre outra área”, explica.

Há muitas situações também em que a pastagem é apenas um veículo para a grilagem. Nesse sentido, ela é feita em uma área pública invadida, para que o grileiro “afirme a posse”.

“Isso é característico de regiões de fronteira agrícola, áreas que estão sendo abertas para a ocupação humana. A pecuária sempre ocupou muito esses espaços por ser uma atividade mais barata, que exige menos tecnologia e menos capital inicial do que a produção de soja, por exemplo”, avalia a jornalista Fernanda Wenzel, especializada em Amazônia e uma das autoras do livro Sob a Pata do Boi.

Especializado em meio ambiente e outro dos autores do livro, o jornalista Aldem Bourscheit atenta para o fato de que nas últimas duas décadas o rebanho brasileiro tem se deslocado das regiões Sul e Sudeste para o Centro-oeste e Norte.

“Isso não é apenas por uma questão de mercado”, avalia. “Está associado, sem dúvida, ao domínio do território por uma lógica econômica. O gado é usado no Brasil como instrumento de ocupação.”

Conscientizar e recuperar

Soluções para a questão são complexas. Instituído em 2010, o Termo de Ajustamento de Conduta conhecido como “TAC da carne” obriga os frigoríficos a comprarem bois apenas de terras comprovadamente não desmatadas.

O problema, contudo, é que durante a vida do boi, na lógica de produção extensiva, ele passa por diversas pastagens, diversos proprietários. Na prática, como explicam os especialistas, é relativamente fácil driblar o TAC, garantindo que a última pastagem do boi antes do abate seja uma terra sem ficha suja.

Pesquisador no think tank sueco Instituto Ambiental de Estocolmo, o biólogo Mairon Bastos Lima cobra uma melhoria na fiscalização.

“O Brasil tem excelente capacidade de monitoramento e expertise no combate ao desmatamento e foi a partir disso que se conseguiu reduzir em até 80% o desmatamento da Amazônia entre 2004 e 2012. Mas essa efetividade depende de um Ibama fortalecido, de um ICMBio ativo, com recursos”, cobra.

“Não há mistério: é uma questão de restaurar o que foi sucateado nos últimos anos. O Brasil soube fazer antes e pode fazer de novo o combate efetivo ao desmatamento. Em grande medida é questão de vontade política e pressão da sociedade para que as coisas aconteçam.”

“Pessoas têm de ser sensibilizadas. Pesquisas demonstram que não é só saber das consequências, mas também se importar com a situação, entender aquilo como o problema”, comenta ele. “As pessoas ficarão mais sensibilizadas sobre o desmatamento da Amazônia se entenderem que se trata também de um esquema criminoso, de uma forma de corrupção que tem impactos já no presente e que custa o futuro do país.”

Lima também cobra um trabalho de conscientização sobre os efeitos que o desmatamento traz para o dia a dia. A escassez de chuvas e o aumento da conta de luz, por exemplo.

Os especialistas também acreditam que se as áreas já desmatadas fossem recuperadas — e não simplesmente deixadas para trás depois do esgotamento do solo — e reutilizadas para a própria pecuária, não seria necessário desflorestar mais para aumentar a produção de carne.

“Podemos zerar o desmatamento sem perdas econômicas, pois a produtividade das pastagens no Brasil é muito baixa. É possível produzir nas áreas já desmatadas e ainda sobrariam áreas para a restauração florestal. A restauração, por regeneração natural ou reflorestamento, é importante para proteger áreas sensíveis e para absorver carbono da atmosfera e, assim, reduzir o risco climático”, pontua o engenheiro florestal Paulo Barreto, pesquisador do Imazon e também um dos autores do livro Sob a Pata do Boi.

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