As mulheres que cuidam de mulheres encarceradas

Em meio à violência do aprisionamento em massa, um oásis de humanidade: retratos de mães, irmãs e companheiras que madrugam para dar conforto a quem está atrás das grades – quase sempre por delitos menores

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Por Julia Reis, na Vice Brasil

Friendships and ties

“Eu fico até às duas da manhã cozinhando pra ela. Depois acordo bem antes do sol nascer pra refogar o arroz e o macarrão, aí chega quentinho.” Essa é a rotina de toda madrugada de quinta-feira da Dona Clarisse de Jesus. Com 63 anos ela faz toda semana uma compra de R$ 200 para suprir os mantimentos que o Estado não consegue dar para sua filha Tatiane, detenta há sete meses na penitenciária feminina do Estado de São Paulo, em Santana, zona norte.

Quem a ajuda nos gastos é sua primogênita. Tais de Jesus, 39, trabalha como cuidadora de idosos nos 20 dias úteis do mês para conseguir tirar uma graninha. Enquanto isso, Dona Clarisse, que é funcionária pública, e seu marido, aposentado, completam o valor com seus respectivos salários para poder suprir a quantidade gasta semanalmente.

Depois da compra, Dona Clarisse cozinha tudo que Tatiane gosta. O macarrão, arroz, bolo e todos os pratos são colocados em potes transparentes, que são levados a uma grande bolsa com os itens de higiene, essenciais pra irmã mais nova se manter minimamente bem no presídio.

“De 2006 pra 2007, a Tamires se envolveu numa situação de furto a um patrimônio público e cumpriu 3 anos e 8 meses. Em 2010 ela saiu, e agora em 2017 o juiz executou o caso como lavagem de dinheiro. E estamos aí de novo”, explica Tais. No ano em que ela conseguiu sair, a irmã conta que Tatiane conseguiu estudar e arranjou um trabalho em um hospital. Quando veio a sentença, ela nunca mais conseguiu voltar pra casa.

Jaqueline Lopes, 22, também viu sua irmã se arrumando para trabalhar, e essa foi a última vez que ficaram juntas na casa em que moravam, no Jd. Vera Cruz, zona sul de São Paulo. Rosangela Lopes, a mais velha, deixou seu filho de oito anos, Rodrigo, com Jaqueline e foi sentenciada por tráfico.

Ela já está há dois anos e um mês na mesma penitenciária que Tatiane. E diferentemente de Tais, a irmã mais nova de Rosângela vai somente uma quinta por mês para entregar o jumbo.

O jumbo é um kit que contém todos os mantimentos que uma pessoa em situação de prisão necessita. Em um período definido de tempo, que pode ser semanal ou até anual, os familiares de cada presidiário vão até a penitenciária e levam os mantimentos necessários para a pessoa se manter lá dentro.

Essa medida existe por conta de uma deficiência em relação às condições do lugar em que vivem, onde não é fornecido produtos e serviços bons o suficiente. Com isso, as famílias são autorizadas a levar itens que suprem as necessidades mínimas do indivíduo.

Segundo o levantamento feito pelo Núcleo Especializado em Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 2013, o Centro de Detenção Provisória de Diadema gastou R$ 12,07 por pessoa no período de um ano. Isso significa que R$ 1 por mês foi investido na higiene de cada preso na cidade da Grande São Paulo.

Atualmente, um preso custa R$ 2.400 por mês para o Estado, incluindo todos os serviços, desde contratação do sistema penitenciário até assistência jurídica.

Para os familiares destes presos, com o preço da passagem e o valor dos mantimentos incluso, o jumbo pode custar, em média, R$ 800 por mês. Pra ir até lá, eles perdem o dia todo. É preciso pegar o primeiro ônibus, às 4h30, e só voltam pelo final da tarde. “Na fila é três a quatro horas. Aí quando eu entro na parte de dentro, tenho que esperar registrar outras pessoas e aí já demora mais umas três”, conta Jaqueline.

“O mês passado a gente não levou. É ruim dizer, mas tem muito tempo que ela está vivendo com o mínimo.” Com seis irmãos, a Jaqueline ainda cria o filho de sua irmã, que vive aqui do lado de fora. Ela mora perto da mãe, que abriga todos os filhos homens. No entanto, só um deles já tem a capacidade de ajudar. Ele faz estágio em marketing e ajuda a mãe a conseguir o valor necessário pra deixar o jumbo completo para a irmã na prisão.

Jaqueline, mesmo tentando ajudar, está desempregada. “Mudou a gerência de onde eu trabalhava, e ficou complicado de conseguir tirar o dia pra poder levar o jumbo pra minha irmã”, relata.

Para a advogada e antropóloga da USP, Bruna Angotti, a prisão funciona na ideia da perversidade. “O Estado gasta uma fortuna por mês por pessoa presa, e esse dinheiro vai, em geral, para empresas terceirizadas que são empresas que lucram com o cárcere. Quando vai ver o que é oferecido para pessoas em situação de prisão é uma tragédia.”

“Eu desafio qualquer diretor prisional ou secretário de administração penitenciária a comer quentinha. Ninguém come. O banho é gelado, as instalações são péssimas. E o jumbo é uma alternativa para a sobrevivência”, afirma a advogada.

Os familiares dessas pessoas sabem e vivem isso. A partir do momento em que você tem alguém da sua família nessa situação, você também vive em um estado diferente de aprisionamento. Para a Tais, irmã da Tamires que foi presa por furto, o esforço de ir lá e passar por todo o desgaste tem que ser feito por alguém. “Ela já está passando pelo que tem que passar e o que eu tenho que fazer é aliviar o sofrimento, porque a pena ela já está cumprindo.”

A relação com a Jaqueline e a irmã é a mesma coisa. “Geralmente eu sei que ela gosta muito de doce. Eu levo sempre chocolate, bala, salgadinho, bolacha, requeijão. Eu sempre tento levar coisas boas e gostosas porque demora e é o que ela gosta de comer.”

As fotos que ilustram a matéria foram feitas pelo Coletivo 011, que presenciou inúmeras dessas experiências em três presídios em São Paulo. Para os cinco fotógrafos que ficaram imersos por seis meses no projeto, as famílias não enxergam seus entes como se estivessem fora da sociedade. “Todo mundo que a gente viu lá busca trazer algo de fora para dentro, que possibilite com que eles se sintam em sua própria casa.”

O registro pela visão do Coletivo 011 buscou apresentar as relações de afeto que existe em torno da comida e na definição do que é família. “A luta não é só dos detentos, a luta é das visitas que levam o jumbo até os reclusos, e que muitas vezes não à valorizam, voltando para essa vida após a liberdade”, completa Sabrina Ketlyn, uma das participantes do coletivo.


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