As milícias vistas por dentro
Em entrevista, sociólogo explica de que maneira comunidades e até cidades inteiras estão sob domínio de facções que andam de braços dados com políticos, e quase nunca são investigadas
Publicado 31/01/2019 às 16:25 - Atualizado 31/01/2019 às 16:45
José Cláudio Souza Alves entrevistado por Mariana Simões, na Pública
Na semana passada, a operação “Os Intocáveis” prendeu integrantes da milícia que opera em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Um dos alvos da operação foi o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de chefiar a milícia de Rio das Pedras e integrar o grupo de extermínio Escritório do Crime – atualmente investigado pela morte de Marielle Franco. Sua mãe e sua esposa já trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Flávio também havia homenageado Adriano com a Medalha Tiradentes, a maior honraria concedida pela Alerj.
Mas a notícia não surpreendeu o autor do livro Dos Barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense,
José Cláudio Souza Alves. Sociólogo e pró-reitor de Extensão da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), José Cláudio
estuda as milícias há 26 anos. Em entrevista à Pública, ele resume, com veemência: “A milícia é o Estado.”
“São formadas pelos próprios agentes do Estado. É um matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador. É um miliciano que é Secretário de Meio Ambiente. Sem essa conexão direta com a estrutura do Estado não haveria milícia na atuação que ela tem hoje,” acrescenta.
Segundo José Cláudio, é comum familiares de milicianos serem empregados em gabinetes de deputados e vereadores. “Isso é muito comum. Esse vínculo lhe dá poder naquela comunidade. Ele vai ser chamado agora na comunidade ‘Olha é o cara que tem um poder junto lá ao Deputado, qualquer coisa a gente resolve, fala com ele, que ele fala com a mãe e com a esposa e eles falam diretamente com o Flávio e isso é resolvido’”.
Nessa
entrevista, ele explica a origem desses grupos e suas ligações com a
política: “Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de
votação em Bolsonaro na Baixada”.
Leia os principais trechos.
Como nasceram as milícias do Rio de Janeiro?
Isso
estourou na época da ditadura militar com muita força. Em 1967 surge a
Polícia Militar nos moldes atuais de força ostensiva e auxiliar aos
militares naquela época. E a partir daí há o surgimento dos esquadrões
da morte. No final dos anos 1960, as milícias surgiram como grupos de
extermínio compostos por Policiais Militares e outros agentes de
segurança que atuavam como matadores de aluguel.
Esses
esquadrões da morte vão estar funcionando a pleno vapor nos anos 1970.
Depois começa a surgir a atuação de civis como lideranças de grupos de
extermínio, mas sempre em uma relação com os agentes do Estado. Isso ao
longo dos anos 1980. Com a democracia, esses mesmos matadores dos anos
1980 começam a se eleger nos anos 1990. Se elegem prefeitos, vereadores,
deputados.
De 1995 até 2000, você tem o
protótipo do que seriam as milícias na Baixada, Zona Oeste e no Rio de
Janeiro. Elas estão associadas a ocupações urbanas de terras. São
lideranças que estão emergindo dessas ocupações e estão ligadas
diretamente à questão das terras na Baixada Fluminense. A partir dos
anos 2000, esses milicianos já estão se constituindo como são hoje. São
Policiais Militares, Policiais Civis, bombeiros, agentes de segurança, e
atuam em áreas onde antes tinha a presença do tráfico, em uma relação
de confronto com o tráfico. Mas ao mesmo tempo estabelecem uma estrutura
de poder calcado na cobrança de taxas, na venda de serviços e bens
urbanos como água, aterro, terrenos.
Há apoio da população às milícias?
A
milícia surge com o discurso que veio para se contrapor ao tráfico. E
esse discurso ainda cola. Só que com o tempo a população vai vendo que
quem se contrapõe a eles, eles matam. E eles passam a controlar os
vários comércios. Então a população já começa a ficar assustada e já não
apoia tanto. É sempre assim a história das milícias.
Qual a história de Rio das Pedras?
Rio
das Pedras é uma comunidade em expansão onde vivem nordestinos muito
pobres. Existem terrenos lá que você não pode construir porque são
inadequados, são muito movediços. Então só tem uma faixa específica de
terra onde você pode construir. São terras irregulares, devolutas da
União, ou terras de particulares que não conseguiram se manter naquele
espaço. Então a milícia passa a controlar, toma e legaliza – às vezes
até via Prefeitura mesmo, pagando IPTU desses imóveis. Como o sistema
fundiário não é regulado, facilmente os milicianos têm acesso a
informações e vão tomar essas áreas. E passam a vendê-las.
Rio das Pedras foi a primeira milícia do Rio?
Não
é bem assim. Ao meu ver a milícia surgiu em diferentes lugares ao mesmo
tempo, simultaneamente. Então tem Rio das Pedras, mas tem Zona Oeste do
Rio e tem, por exemplo, Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Eu
percebo dos anos 1995 a 2000, grosso modo, um período de emergência
dessas ocupações urbanas de terras, ainda não no protótipo de milícias,
mas com lideranças comunitárias próximas ao que seria um controle pela
violência, um controle político mais autoritário.
Só
que Rio das Pedras ela emerge mais rapidamente. Então ali começa esse
vínculo da cobrança de taxa, que nas outras ainda não tinha. E são os
comerciantes que pagam a eles.
É uma
comunidade miserável, empobrecida, que está se constituindo a partir de
uma rede migratória de nordestinos. E ela fica diante de um grupo de
milicianos que estão sendo chamados para dar proteção, impedir que o
tráfico entre. Mas na verdade é para proteger os interesses comerciais
desses lojistas que estão se instalado lá em Rio das Pedras e estão
financiando esses caras.
Hoje são quantas as milícias do Rio de Janeiro?
Eu
tenho noção que são muitas. Por exemplo, são várias que atuam em São
Bento e no Pilar, que é o segundo maior distrito de Duque de Caxias. Tem
em Nova Iguaçu, tem em Queimada. Praticamente cada município da Baixada
Fluminense você tem a presença de milícias. Seropédica, por exemplo,
hoje é uma cidade dominada por milicianos. Eles controlam taxas de
segurança que cobram do comércio. Aqui tem os areais, de onde se extrai
muita areia – e muitos são clandestinos. Então eles também cobram dali.
Moto-táxi tem que pagar 80 reais por semana para funcionar. Pipoqueiro
paga 50 reais por semana. É uma loucura.
Dizem
que é para a segurança, proteção, eles estão supostamente protegendo
esse comércio. Mas depois controlam a distribuição de água, de gás, de
cigarro, de bebida. E há histórias de assassinato de gente que não
aceitou, por exemplo.
Além disso, eles são pagos para fazer execuções sumárias. Então há um mercado que movimenta milhões já há algum tempo.
Eles
também lidam com tráfico de drogas, com algumas facções especificas. O
Terceiro Comando Puro funciona aqui em algumas cidades da baixada a
partir de acordos com milicianos. Eles fazem acordo com o tráfico e vão
ganhar dinheiro também disso. Cobram aluguel de áreas. É a mesma relação
que a polícia tem com o tráfico: só funciona ali se você pagar suborno.
Na
cobertura feita pelos jornais sobre a operação “Os Intocáveis”, eles
citam o Escritório da Morte, um grupo de extermínio que é contratado
para matar. Isso é comum?
Sim. Nunca
ouvi falar de milícia que não tivesse a prática de execução sumária.
Normalmente a milícia tem uma equipe ou um grupo responsável por
execuções sumárias. O comerciante que não quiser pagar, o morador que
não se sujeitar a pagamento do imóvel que ele comprou, qualquer negócio e
discordância com os interesses da milícia, esse braço armado é acionado
e vai matar.
A novidade da milícia é o
leque de serviços que eles abrem além da execução sumária e da
segurança. Aí é tudo: água, bujão de gás, “gatonet”, transporte
clandestino de pessoas, terra, terrenos, imóveis. A milícia não fica
agora fixa em grandes comerciantes ou grandes empresários. Ela pulveriza
isso. Eles vão sofisticando também na administração do gerenciamento.
Em que outros negócios ilegais os milicianos atuam?
Lá
em Duque de Caxias eles roubam petróleo dos oleodutos da Petrobras e
fazem mini destilarias nas casas das pessoas. Tudo ilegal, com um risco
imenso. Aí vendem combustível adulterado. Eles fazem aterros
clandestinos no meio daquela região com dragas e tratores e vão
enterrando o lixo de quem pagar. É mil reais por caminhão. Não importa a
origem. Pode ser lixo contaminante, lixo industrial, lixo hospitalar.
Eles fazem aterros clandestinos nesta região.
A
milícia tem controle também sobre bens públicos, como aterros, e eles
se apropriam desses espaços para fazer atividades ilegais…
A
base de uma milícia é o controle militarizado de áreas geográficas.
Então o espaço urbano, em si se transforma em uma fonte de ganho. Se
você controla militarmente, com armas por meio da violência esse espaço
urbano, você vai então ganhar dinheiro com esse espaço urbano. De que
maneira? Você vende imóveis. Por exemplo, você tem um programa do
governo federal chamado Minha Casa Minha Vida. Você constrói habitações.
Aí a milícia vai e controla militarmente aquela área e vai determinar
quem é que vai ocupar a casa. E inclusive vai cobrar taxa desses
moradores.
Em outra área eles estão
vendendo imóveis e estão ganhando dinheiro com essa terra, que é terra
da União ou terra de particulares. Então esse controle militarizado
desses espaços, é a base da milícia. Aí como eles sabem dessas
informações? Eles sabem dentro da estrutura do Estado.
Você
pode ter um respaldo político para fazer isso. Vou dar um exemplo para
você. Em Duque de Caxias, um número razoável de escolas públicas não é
abastecido pelo sistema de água da CEDAE. A água não chega lá. Como que
essas escolas funcionam? Elas compram caminhões pipa de água. Quem é o
vendedor? Quem é que ganhou a licitação para distribuição de água em um
preço absurdo por meio desses caminhões pipa? Gente ligado aos
milicianos. Então aí você tem um vínculo com os serviços públicos – e é
uma grana pesada – a que passa pelo interesse político daquele grupo
dentro daquela prefeitura que vai se beneficiar de uma informação e vai
ganhar dinheiro com isso.
A Baixada e o
Rio de Janeiro são grandes laboratórios de ilicitudes e de ilegalidades
que se associam para fortalecer uma estrutura de poder político,
econômico, cultural, geograficamente estabelecido e calcado na
violência, no controle armado.
A milícia surgiu no Rio de Janeiro pela ausência do Estado?
Há
uma continuidade do Estado. O matador se elege, o miliciano se elege.
Ele tem relações diretas com o Estado. Ele é o agente do Estado. Ele é o
Estado. Então não me venha falar que existe uma ausência de Estado. É o
Estado que determina quem vai operar o controle militarizado e a
segurança daquela área. Porque são os próprios agentes do Estado. É um
matador, é um miliciano que é deputado, que é vereador, é um miliciano
que é Secretário de Meio Ambiente.
Eu sempre digo: não use isso porque não é poder paralelo: é o poder do próprio Estado.
Eu
estou falando de um Estado que avança em operações ilegais e se torna
mais poderoso do que ele é na esfera legal. Porque ele vai agora
determinar sobre a sua vida de uma forma totalitária. E você não
consegue se contrapor a ela.
Mas, por outro lado, quem elege os políticos milicianos é a população….
Não
venha dizer que o morador é conivente, é cúmplice do crime. Esse
pessoal elegeu o Flávio Bolsonaro, que agora se descobriu que ele tem
possivelmente vínculos com esses grupos? Elegeu. Mas que condições que
essas pessoas vivem para chegar nisso? Essas populações são submetidas a
condições de miséria, de pobreza e de violência que se impõem sobre
elas.
Cinco décadas de grupo de extermínio resultaram em 70% de votação em Bolsonaro na Baixada.
Três
gestões do PT no governo federal, 14 anos no poder, não arranharam essa
estrutura. Deram Bolsa Família, vários grupos políticos se vincularam
ao PT e se beneficiaram, mas o PT não alterou em nada essa estrutura. O
PT fez aliança eleitoral, buscou apoio desses grupos.
Como
você mencionou a história do Flávio Bolsonaro: o que liga o gabinete de
um político a um miliciano, como foi no caso dele com a mãe e a esposa
do Adriano Magalhães da Nóbrega.
O discurso da família Bolsonaro, a começar pelo pai já há algum tempo, e posteriormente o pai projetando nos filhos politicamente. Eles são os herdeiros do discurso de um delegado Sivuca [José Guilherme Godinho Sivuca Ferreira, eleito deputado federal pelo PFL em 1990], que é o cara que que cunhou a expressão “Bandido bom é bandido morto”, de um Emir Larangeira [eleito deputado estadual em 1990], do pessoal da velha guarda, do braço político dos grupos de extermínio.
Esse discurso se perpetuou e se consolidou. É
claro que os milicianos vão respaldar esse discurso e vão se fortalecer a
partir dele. É o plano de segurança pública defendida na campanha
eleitoral do Bolsonaro. Ele diz o seguinte: Policiais Militares são os
heróis da nação. Policial Militar tem que ser apoiado, respaldado, vai
ganhar placa de herói.
E será respaldado
pela lei, através do excludente de ilicitude. Está lá no programa do
Bolsonaro. Então você tem setores que desde a ditadura militar sempre
operaram na ilegalidade, na execução sumária, vão escutar esse discurso.
É música para o ouvido deles.
Não é à toa que o Flávio Bolsonaro fez menções na Assembleia legislativa, deu honrarias para dois desses milicianos presos.
Para além desse discurso simbólico, você vê também uma ligação financeira dos milicianos com os políticos?
Você
tem uma operação por dentro da estrutura oficial política. Por exemplo,
em Duque de Caxias você tem registro geral de imóveis de terra que são
da União. Tem milicianos que vão levantar no cadastro geral de imóveis
da prefeitura, os imóveis que estão irregulares, sem pagamento há muito
tempo de IPTU. Esse miliciano começa a pagar o IPTU, parcela a dívida,
quita e pede para transferir para o nome dele aquele imóvel. A
prefeitura transfere. É um processo simples isso. Aí depois aquele
proprietário não vai ter nunca coragem de exigir aquele imóvel de volta,
porque está controlado militarmente.
Sem
esses elementos, sem esses indivíduos, sem essa conexão direta com a
estrutura do Estado, não haveria milícia na atuação que ela tem hoje. É
determinante. Por isso que eu digo, que não é paralelo, é o Estado.
E
tem políticos que estão sendo eleitos com essa grana. A grana da
milícia vai financiar o poder de um político como Flávio Bolsonaro e o
poder político de um Flávio Bolsonaro, vai favorecer o ganho de dinheiro
do miliciano. Isso roda em duas mãos. É determinante então que essa
estrutura seja assim. Ela só se perpetua porque é assim.
É
comum casos como a mãe e a esposa de Adriano Magalhães de Nóbrega, que
foram contratadas como assessoras no gabinete de Flávio Bolsonaro?
Sim.
Isso é muito comum. Você cria um vínculo de poder e de grana com essas
pessoas. Esse cara, a partir de sua esposa e de sua mãe, cria um vínculo
imediato com o Flávio Bolsonaro e isso lhe dá força. Essas duas pessoas
estão fazendo um elo imediato, pessoal, familiar do Adriano com Flávio
Bolsonaro. Esse vínculo lhe dá poder naquela comunidade. Ele vai ser
chamado agora na comunidade “Olha é o cara que tem um poder junto lá ao
Deputado, qualquer coisa a gente resolve, fala com ele, que ele fala com
a mãe e com a esposa e eles falam diretamente com o Flávio e isso é
resolvido”.
Assim você está criando uma
estrutura de poder, que é familiar. Veja bem: é o que eles defendem.
Eles [os Bolsonaro] defendem a estrutura familiar. E se você investigar
um pouco mais vai ser religioso também. São igrejas evangélicas, eles
têm vínculo com essa estrutura. Então é uma estrutura perfeita, ela é
tradicional, conservadora, ela tem a linguagem religiosa, que é
linguagem de grande credibilidade.
Isso
também demonstra uma forma de atuar dessas pessoas. Eles não atuam pelo
ocultamento. O Adriano, Flávio Bolsonaro, o próprio Bolsonaro, os
matadores da Baixada. Todos esses grupos que lidam com a violência, com a
execução sumária, com o crime organizado, eles não atuam com baixo
perfil.
No Brasil o que você tem é a
superexposição. Eu chego e já digo. “Eu sou o cara, eu sou o matador, eu
tenho vínculos com fulano, beltrano e sicrano. Eu ocupo este cargo”.
Que é pra deixar bem claro se você for tentar alguma coisa é isso que
você enfrentar.
É a base total do medo. E não é só do medo: é real.
Sobre
esse capital político, eles têm o poder inclusive de manipular o voto
da população durante o período das eleições? Existe uma rede organizada
para isso?
Na verdade, as milícias
vendem votações inteiras de comunidade. Aqui na Baixada como um todo,
Zona Oeste. Fecham pacote. Eles têm controle. Eles têm controle preciso
de título de eleitor, local de votação de cada título de eleitor,
quantos votos vai ter ali. Eles são capazes de identificar quem não
votou neles.
Mas não está havendo ações de desmontagem dessa estrutura, como se viu em Rio das Pedras?
Assim,
a Operação Intocáveis pode estar dentro de um perfil mais de uma
operação mais histórica. Mas eu tenho sido muito crítico a esse tipo de
operação. Como a milícia é uma rede, uma rede muito grande, para cada um
preso você tem 100 para entrar no lugar. Porque se você mantém a
estrutura funcionando, economicamente, politicamente ela vai se
perpetuar.
Ninguém toca nesses caras. Em
geral, só estão tocando no tráfico. E tráfico não é o mais poderoso.
Milícia é mais poderosa do que o tráfico. Milícia se elege, tráfico não
se elege. A base econômica da milícia está em expansão, não é tocada,
não é arranhada. Traficante não, vive morrendo e sendo morto e matando.
Milícia é o Estado.
Inclusive tem isso.
Você olha para a cara dos milicianos presos, há uma tendência a serem
brancos. Não há uma tendência a serem negros. Vai aparecer um ou outro
no meio, um moreno, pardo. E não são magros, são bem alimentados. Eu
tenho certeza que a classe da qual pertencem os milicianos é uma classe
diferenciada da classe do tráfico. Não são tão pobres assim. Não são tão
negros assim. Não são tão periféricos assim.
Para
além desse vínculo político de poder existe também algum elo
financeiro? Como que os milicianos movimentam dinheiro através dessas
conexões com políticos? Qual era, por exemplo, o papel do Queiroz ali no
Gabinete do Flávio Bolsonaro?
Ah
sim, você viu que ele tem uma movimentação suspeita alta. Tem 7 milhões.
Aí você vai por dedução. Pode ser que esse cara fazia uma ponte. Ele
era um assessor, mas ao mesmo tempo ele cumpria duas funções. Ele ganha
um respaldo político do Flávio Bolsonaro. Ele faz o elo direito da
milícia com esse gabinete. Dos interesses dessa milícia e dos que são
servidos por essa milícia direito com esse gabinete. Ao mesmo tempo ele
cresce na estrutura da milícia.
Não sei
qual é o histórico dele. Mas de repente ele já estava na estrutura da
milícia e já movimentando dinheiro. Então, por exemplo, se ele for uma
frente, um cara que está na organização, por exemplo, de cobrança de
taxa de segurança, ele está movimentando dinheiro. Muito dinheiro. Aí de
repente ele vai movimentar parte desse dinheiro dentro da sua conta
pessoal. É uma estrutura de organização que ele criou. Então esses 7
milhões pode ser isso.
Isso também pode ser apenas uma transação entre várias?
Isso
é uma ponta. Isso é uma ponta de um iceberg. O que eu gostaria muito é
que se investigasse isso. Você chegaria em algo muito maior.
Sobre
o caso da Marielle. O caso voltou aos holofotes essa semana porque os
milicianos, que foram presos na operação “Os Intocáveis” integravam o
Escritório do Crime, grupo suspeito de envolvimento na morte da
Marielle. No final do ano passado, o secretário de Segurança Pública do
Rio, Richard Nunes, afirmou que o assassinato teria relação com grilagem
de terras. Você acha que a morte dela se deu porque ela atrapalhava os
negócios dos milicianos?
Tem dois
vínculos. Há esse vínculo de incomodar e prejudicar o interesse deles.
Ela tinha poder para prejudicar, puxar uma CPI, exigir uma investigação
para obrigar o Estado e a mídia como um todo a se voltar para isso. Se
ela reproduzisse o que o Marcelo Freixo fez em 2008, dentro da Câmara
dos Vereadores do Rio de Janeiro, ela daria essa expressão. Ela tinha o
respaldo do Marcelo, então há uma base política que sustenta Marielle,
uma base não comprometida, não vendida. Então ela é uma figura que
ameaça.
E o outro elemento é ela ser
mulher. E ela ser uma mulher de uma atuação bastante intensa, verdadeira
e não amedrontável. Ela encarava, enfrentava. Ela nunca se subordinou. E
eles não suportam mulheres com esse perfil, essa é a verdade.
Marielle Franco, Patrícia Acioli, que foi assassinada também, e Tânia Maria Sales Moreira que foi promotora aqui em Duque de Caxias que era jurada de morte, mas morreu de câncer. Essas três, elas têm esse perfil. São mulheres com muita coragem, muita determinação, muita verdade do lado delas, elas não se subordinam, não se submetem. Esse tipo de mulher esses caras não suportam. Eles vão eliminar. Há uma misoginia total aí que eles não aceitam que qualquer mulher os trate assim.
Desde o início eu cantei a pedra: quem matou são grupos de extermínio e estão muito associados a milicianos. É a prática desses grupos.