Arriscada euforia do Banco Central

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A zeragem da dívida externa clássica não significa que o país é imune a crises externas. Talvez seja preciso recolocar em pauta o controle dos capitais

Os créditos do Estado e de empresas brasileiras no exterior superaram, em janeiro, a dívida externa, anunciou com alarde, ontem (21/2), o Banco Central. Economistas conservadores sugeriram que o fato atesta a necessidade de manter a ortodoxia econômica praticada, segundo eles, tanto por FHC quanto por Lula. Acrescentaram que, agora, o país está muito menos sujeito às turbulências financeiras internacionais. A segunda afirmação é muito temerária. A primeira, simplesmente falsa.

As chamadas “dívidas externas” perderam há muito sua centralidade no sistema financeiro internacional. Sob influência do neoliberalismo, os países abriram suas fronteiras para a entrada e saída de investimentos e moedas estrangeiras. Salvo raras exceções, todos estão interligados no mercado global de crédito. Por isso, quase não há sentido sequer no conceito “dívida externa”.

Os investidores de fora — bancos, fundos, transnacionais que obtêm boa parte de seus lucros em operações financeiras — atuam dentro do país. Aplicam em títulos do governo, ações, mercadorias. Obtêm rendimentos incomparáveis aos da velha “dívida externa”: pelo menos o dobro, nos papéis do governo; às vezes muito mais, em outras aplicações. Retiram e reingressam fundos com enorme facilidade, tendo quase sempre como base paraísos fiscais. Beneficiam-se de isenções de impostos. Têm a companhia, nestas operações, de grandes investidores brasileiros. A lógica destes últimos é idêntica à dos “estrangeiros”. Inclui retirar o dinheiro do país, se houver sinal de prejuízo à vista. Nas crises cambiais de 1998-99 e 2002, quem tirou mais maciçamente divisas foram instituições brasileiras.

Como as fronteiras brasileiras à entrada e saída de divisas foram abertas, de nada adianta “zerar a dívida externa”. Se os investidores sentirem que podem evitar perdas, retirando dinheiro do país, irão fazê-lo com facilidade, e em enorme volume. Só o estoque da dívida pública interna é de cerca de 1,2 trilhão de reais. Se 20% desse dinheiro fosse externado, haveria uma crise cambial semelhante às duas anteriores.

Há controvérsias — e sinais em sentido oposto — sobre os efeitos globais da crise norte-americana. Muitos analistas falam em “desacoplamento”: diante de uma recessão nos EUA, outros mercados, em especial os emergentes, estariam prontos para manter a economia mundial em movimento. A manutenção das cotações excepcionalmente altas das matérias-primas parece confirmar, por enquanto, esta hipótese. O petróleo mantém-se em torno de US$ 100 o barril. A Vale do Rio Doce acaba de obter reajuste de 71% no minério de ferro vendido ao Japão e à Coréia. Quem pagaria tais preços, se houvesse, no horizonte, a sombra de uma recessão global? No caso específico do Brasil, há uma grande diferença, em relação à 1998-99 e 2003. Graças em parte ao próprio aumento das matérias-primas, o país, que tinha déficit comercial nas ocasiões anteriores, passou a um superávit inédito.

Mas, e se a recessão norte-americana agravar-se e evoluir para um colapso financeiro? (uma hipótese possível, como mostra nossa postagem anterior). Neste caso, será preciso recolocar em pauta a proposta de controle dos fluxos de capital. Foi levantada há anos, por economistas, ONGs e movimentos sociais. Desdobrou-se em propostas muito concretas: estabelecer, por exemplo, um prazo mínimo de permanência para os investimentos externos; ou elevar os impostos (como IOF) sobre a retirada de dinheiro, em caso de crise cambial.

A proposta perdeu um pouco de impacto nos últimos anos, quando prevaleceu a bonança nos mercados financeiros. Para os neoliberais, é uma heresia. Para o país, a depender das circunstâncias, pode ser uma salvação.

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