Argentina: a esquerda refém do realismo capitalista?

Após derrota nas primárias parlamentares, somada à crise social no país, coalizão governista está atônita. Incapaz de enxergar alternativas, cede ao fatalismo – tão bem descrito por Mark Fisher quanto a imposição neoliberal

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Por Santiago Mayor, em Notas Periodismo Popular, com tradução na Revista Opera

Após a derrota nas eleições primárias argentinas, a Frente de Todos (FDT) entrou em um debate sobre como encarar a campanha eleitoral face às eleições gerais de novembro, mas também sobre os próximos dois anos de governo. A discussão que Cristina Fernández explicitou com sua carta em 16 de setembro pareceu colocar uma disputa mais profunda sobre o rumo econômico e demandar uma maior atenção aos setores populares em detrimento da visão fiscalista do ministro Martín Guzmán e do presidente Alberto Fernández.

No entanto, as ações do Executivo – mudanças no gabinete para se apoiar no peronismo mais ortodoxo –, o discurso da própria vice-presidente para a juventude da agrupação de La Cámpora na antiga Escola de Mecânica da Marinha (ESMA) e as declarações do candidato portenho Leandro Santoro mostram um consenso: as correlações de força não permitem fazer muito mais do que isto.

Longe de esboçar um projeto que busque resolver a situação dos 41% de pobres (54% entre crianças) e o desenfreado aumento de preços de bens de primeira necessidade, a coalizão governante decidiu ficar na defensiva. Antigos funcionários que já funcionaram – embora não esteja claro se agora poderão ter êxito – juntaram-se ao gabinete, enquanto a oposição mais direitista e os empresários são chamados a buscar acordos. 

Qual perspectiva pode ter um consenso entre a FDT, os participantes do colóquio do Instituto para o Desenvolvimento Empresarial da Argentina (IDEA) e a coalizão Juntos por el Cambio? Quais pontos em comum podem sair dessas conversas que sejam favoráveis aos setores populares? Qual predisposição ao diálogo pode ter uma direita que tem boicotado sistematicamente qualquer iniciativa que afete os interesses das grandes empresas? A pobreza e a inflação podem ser resolvidas sem confrontar aqueles que concentram a riqueza?

A correlação de forças como desculpa

Leandro Santoro, candidato a deputado da FDT pela Cidade de Buenos Aires, assegurou em uma entrevista ao programa ‘Pasaron Cosas’ da Radio Con Vos que “a opinião pública mundial está se voltando para a direita”. Nesse sentido, opinou que “nesta correlação de forças que é desfavorável, nem todas as bandeiras podem ser levantadas ao mesmo tempo”.

Minutos antes, reconheceu que “a extrema-direita”, mais do que uma força política, é uma agenda que visa que “o que é possível fique mais próximo do seu horizonte ético”. Paradoxalmente, sua conclusão não é confrontar essa agenda com uma mais progressista ou de esquerda. Não, o único que se pode fazer é aceitar as regras do jogo (“eu adoraria não escutar o FMI, mas não é possível”) e dialogar com a oposição (empresarial e de direita) para alcançar “pontos em comum”. Ou, em outras palavras, ceder.

Quando o jornalista Alejandro Bercovich lhe perguntou então para que queria governar, o candidato, que se caracteriza pela sua boa retórica, não soube o que responder. 

Como indicou Fernando Rosso em sua newsletterDel otro lado”, esta perspectiva de Santoro supõe que a correlação de forças “é um dado natural”, e que “a sociedade mundial (?) move-se para a direita sem explicação nem remédio, como se fosse guiada por um pêndulo fatal, mecânico e inevitável”. “No entanto, a correlação de forças é o produto de lutas, combates, batalhas, deserções ou evasões, não o resultado irrevogável de uma lei natural”, analisou o jornalista do La Izquierda Diario

CFK e a utopia da conciliação de classes

Na mesma linha de Santoro, a vice-presidente Cristina Fernández (CFK) insistiu no sábado, 16 de outubro, em um ato com a militância da La Cámpora, na velha receita peronista de uma aliança entre o capital e o trabalho. Uma proposta sempre frágil que teve poucos e efêmeros momentos de eficácia ao longo da história, e em condições muito específicas.

Nas poucas vezes em que se concretizou, foi quase sempre precedido por um brutal retrocesso para os trabalhadores e as trabalhadoras que, com suas lutas, obrigaram a burguesia receosa de algo pior do que essa aliança que nunca faria por iniciativa própria.A negativa da empresa Molinos Río de la Plata para aderir ao acordo de preços proposto recentemente e a advertência do presidente da Câmara do Comércio, Mario Grinman, que assegurou que por causa destas medidas haverá desabastecimento, são uma mostra disto.

Porém, o problema é mais profundo. Porque o chamado “Estado de bem-estar”, aquele capitalismo com “rosto humano” que se propõe como horizonte da terceira posição peronista, foi uma excepcionalidade absoluta surgida dos escombros da Segunda Guerra Mundial e como forma de contra-atacar as ideias comunistas na classe operária: um seguro contra a revolução. Sua experiência esteve limitada a um pequeno número de países ocidentais, não durou mais de três décadas e não existe há pelo menos quatro. Trata-se de uma proposta antiquada e impraticável na atualidade.

Mas Cristina foi além e questionou igualmente “os extremos, os que querem queimar o Banco Central e os que pedem para expropriar tudo”. Sua própria versão do “são o mesmo”, mas em uma homologação bastante tosca da extrema-direita e da esquerda. Inclusive convidou a ver o filme “Adeus, Lenin” para “entender” por que o capitalismo é o sistema “mais eficiente” para a alocação de recursos. Uma afirmação muito fácil de desmentir com um dado recente: a África tem atualmente apenas 8% da sua população vacinada contra a Covid-19, enquanto todos os países da Europa Ocidental superam a taxa de 70%. Nem é preciso comparar os níveis de pobreza, mortalidade ou alfabetização.

Como disse Fidel Castro no início da década de 1990: “Falam sobre o fracasso do socialismo, mas onde está o êxito do capitalismo na África, na Ásia e na América Latina?”. 

Política da resignação

O discurso oficialista, que é mais do que isso quando produzido e reproduzido por uma das principais líderes políticas do país cujas palavras são performativas para milhões de pessoas, insere-se no que o filósofo Mark Fisher chamou de “realismo capitalista”. Trata-se da aceitação – explícita ou não – do axioma da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher ao impor seu modelo neoliberal na década de 1980: “Não há alternativa”. Ou em palavras do próprio Fisher, um “fatalismo a nível político onde nada pode mudar” pela “incapacidade de ver, pensar ou imaginar além das categorias capitalistas”.

A ideia de que este sistema é ruim mas é o único que pode existir supõe uma vitória contundente da ideologia neoliberal. Da resignação diante do “possível”; de atuar sempre dentro dos seus limites (no caso argentino marcados a fogo durante a década da presidência Menem); de apenas buscar sobreviver enquanto entramos inexoravelmente em uma espiral de degradação que coloca em perigo a nossa própria existência.

O debate ambiental que emergiu nos últimos anos é uma expressão disso. Em nome do “realismo” o ativismo ambientalista é questionado e nos dizem que sim, deveríamos cuidar do planeta, mas infelizmente precisamos de dólares e a única opção é o agronegócio e a megamineração. De novo, não há alternativa.

Poucas coisas são menos realistas que seguir em um caminho que levará, a médio prazo, à destruição da espécie humana. Nada mais inviável que o modelo de acumulação atual que, ainda por cima, não é capaz nem sequer de garantir condições dignas de vida para a grande maioria da população.

Tal é o achatamento da imaginação política que as falas do monarca absoluto de uma instituição religiosa com dois mil anos de antiguidade parecem revolucionárias quando se tratam, apenas, de algumas reformas dentro do sistema.

É a base material, estúpido

A vitória ideológica do realismo capitalista se assenta, sem dúvida, em bases materiais. Uma delas é o retrocesso do entramado de organização econômica e solidariedade social da modernidade: produção fordista, sindicatos fortes e partidos políticos de massas. Esse esquema foi deliberadamente minado para dar lugar a uma era de precariedade – não só do trabalho, mas da vida em seu conjunto – e instabilidade constante. Um pânico de baixa intensidade permanente. 

O neoliberalismo nos roubou o tempo. O que é a dívida externa senão isso? A hipoteca do nosso futuro como povo, o argumento transversal para o ajuste e os recortes. Não há margem para subir muito os salários, aumentar benefícios sociais nem planificar mudanças estruturais. Tudo se limita a um presente constante, hiper fragmentado, urgente e efêmero. Ao próximo vencimento do FMI ou à seguinte mesa de negociação para tentar congelar preços por uns meses.

Os resultados eleitorais das primárias são expressão desse processo. Um processo que tem uma inflação galopante, um notável aumento da pobreza e uma considerável perda do poder aquisitivo. Mas também tem entre seus marcos o retrocesso na expropriação da empresa agroexportadora Vicentín, a repressão contra as famílias da comunidade de Guernica e a eliminação da Renda Familiar de Emergência. As correlações de força mencionadas se constroem. Supõem enfrentamento, confrontação e mobilização.

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