Amazônia: como cercar os bois que comem as florestas

Pecuária é o primeiro passo da devastação: após a derrubada das árvores, é fácil e barato encher a terra de gado. Barrar o seu avanço é urgente e pode ser feito rastreando os criadores e pressionando os municípios no início da cadeia produtiva

Foto: Anderson Coelho
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Por Lilian Caramel no Le Monde Diplomatique Brasil

A Amazônia, que em sua porção brasileira já perdeu 20% de vegetação, está próxima do tipping point. A principal causa do desmatamento continua sendo a pecuária predatória praticada, principalmente, nas chamadas “terras devolutas” – florestas da União e dos estados listadas pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB) ou outras terras que ainda não constam no cadastro do órgão. A maior floresta tropical do mundo é peça-chave na regulagem climática global assim como as matas tropicais da bacia do Congo e do Sudeste da Ásia. Porém, o bioma segue virando pasto. A pecuária especulativa é, em parte razoável da sua extensão, meio para fins de rapinagem da terra pública – patrimônio que União e estados são responsáveis por proteger. Mais de dez satélites monitoram o bioma dia e noite. Ainda assim, a devastação avança em ritmo descontrolado.

O consumo doméstico abocanha 80% do total de carne produzida pelas 132 plantas frigoríficas em operação na região, de modo que afirmar que o brasileiro está comendo sua floresta mais biodiversa e rica não está totalmente equivocado. Mas, o hábito alimentar do povo está longe de ser o cerne do problema. “A floresta está morrendo. Estamos vendo os sinais perante os nossos olhos. Não é mais um modelo matemático. Se começarmos a restaurar hoje, ela pode se regenerar. Mas o que temos visto nas últimas décadas são apenas sinais de destruição. A parte ao sul do bioma já se tornou fonte de emissão de carbono”, conta Carlos Nobre, copresidente do Painel Científico para a Amazônia, do qual Juan Manuel Santos, Nobel da Paz 2016, Rubens Ricupero e Sebastião Salgado também participam.

A cadeia amazônica da pecuária de corte é, em boa parte, complexa, criminosa, extensa, e cheia de nós cegos. Ela começa na antiga prática da grilagem e termina no bife do seu prato. Criar boi é a atividade mais fácil para iniciar a ocupação do solo surrupiado, legitimando a ocupação no curto prazo. O incentivo ao desmatamento começou no regime militar quando a narrativa “integrar para não entregar” justificou o lançamento da Operação Amazônia, um conjunto de medidas que incluiu a abertura da Transamazônica, a inauguração da Sudam e a colonização do “vazio demográfico” por agricultores do Centro-Sul e Nordeste. Derrubar a mata era política de Estado – e condição essencial para obtenção do título de posse. A política dos generais negava a existência de mais de 170 nações indígenas na região. As coisas não mudaram muito desde então. Hoje, o processo, muitas vezes, funciona assim: delimita-se uma área no Cadastro Ambiental Rural (Car), a ferramenta autodeclaratória de regularização ambiental do Código Florestal cuja validação não está sendo feita ou demora-se a andar nas repartições estaduais; em seguida, grileiros investem na derrubada da mata passando um correntão com dois tratores de esteira que aceleram juntos massacrando toda a fauna e flora à sua frente; madeiras nobres são vendidas e outras são reservadas para queima, que, inclusive, é ótimo fertilizante para o solo pobre em nutrientes da floresta. Sobre aquele cenário dantesco, aviões ou drones passam em voo rasante jogando sementes de capim. Daí, bastam boi magro e cerca para dar uma feição “produtiva” à terra. O animal passa a ser usado como “zelador” da terra usurpada para posterior regularização fundiária. “Soja demanda correção de solo, secagem, silos, energia elétrica…O boi não. É conveniente usá-lo para ocupar”, conta Marcelo Stabile, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Por fim, a área pode ser, posteriormente, convertida em pecuária intensiva, lavoura de grãos ou vendida por um preço alto.

Poucos investimentos pagam retornos tão atraentes quanto o desmatamento. “O enorme mercado de terras tem sido um negócio lucrativo ao longo dos últimos 30 anos. A terra pronta para a pastagem vale muito mais do que a floresta em pé. Além disso, o governo sinalizou para os invasores que o crime de roubo de madeira, por exemplo, compensa ao estabelecer uma indústria de legalização das infrações”, emenda Nobre que, em conjunto com colegas, está preparando um relatório a ser entregue aos presidenciáveis do Brasil e Colômbia com recomendações da ciência. As eleições na Colômbia acontecerão em maio.

Para piorar, dados do Ipam mostram que, em 2020, 20% das terras públicas invadidas foram abandonadas após algum tempo de uso. Embora alguma regeneração aconteça, a vegetação secundária dificilmente retornará ao grau de biodiversidade da mata primária e fica mais suscetível a outras degradações, como o fogo. Embora existam famílias agricultoras e pequenos produtores que desmatam para subsistência, o modelo de grilagem para pecuária insustentável responde por algo em torno de 45% do desmate. Geralmente, trata-se de esquemas envolvendo um mix assombroso de crime ambiental, fraudes em documentos, formação de quadrilha, uso de “laranjas”, pistolagem, suborno, conluio, corrupção, violência e violações graves de direitos humanos. Os números impressionam: estima-se que da área total do estado do Amazonas, de 157 milhões de hectares, 55 milhões tenham sido grilados, o que equivale a três vezes o território do Paraná.

Na ponta do consumidor final não há muito o que fazer. Ainda que um morador de São Paulo, por exemplo, queira rastrear o produto para garantir que sua picanha está livre de destruição, não há como. A plataforma “Boi na Linha”, iniciativa do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) em parceria com o Ministério Público Federal (MPF), permite consultar se determinado frigorífico assinou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), o Compromisso Público da Carne, baixar as auditorias e navegar por empresa, estado ou município. É uma articulação interessante dos elos que garante alguma transparência. O extenso pedaço que envolve os fornecedores indiretos (aqueles que fornecem para pecuaristas da engorda que vendem ao frigorífico), porém, continuam sem rastreamento. O trecho envolve as fazendas pelas quais passa o animal desde bezerro até boi magro, incluindo os pastos abertos pelo desmatamento ilegal. Durante seu ciclo comercial de vida, um período que leva de 3 a 4 anos, o animal pode passar por 5 ou 6 fazendas diferentes, gerando gargalos em uma cadeia pulverizada, formada por milhares de produtores operando no mercado spot (à vista). Um destes gargalos consiste na malandragem da “lavagem de gado” – transferência do animal “sujo”, de uma fazenda com infração, para outra limpa para que possa, então, ser vendido sem impedimentos aos frigoríficos com exigências ambientais. “A rastreabilidade completa é muito difícil de ser tratada, mas, se a gente conseguisse implantar, alcançaríamos desmatamento próximo de zero”, acredita o procurador Daniel Azeredo, à frente do TAC do Pará estabelecido em 2009 pelo MPF quando uma campanha do Greenpeace mirou os frigoríficos exportadores. Atualmente, há mais de 100 plantas frigoríficas na Amazônia Legal que assinaram TACs comprometendo-se a não comprar bois de fazendas envolvidas com irregularidades fundiárias, ambientais ou trabalhistas. Os TACs não têm data para terminar. As auditorias seguem acontecendo.

Outro modelo

O trabalho do MPF, a pressão dos investidores e ambientalistas e as exigências dos consumidores estrangeiros têm provocado avanços. Os três maiores frigoríficos anunciaram prazos para a rastreabilidade completa da cadeia. A JBS declarou que irá estender a fiscalização de ponta a ponta até 2025. A Marfrig também. A Minerva assumiu desmatamento ilegal zero até 2030 por toda a cadeia na América do Sul. As multinacionais da carne têm projetos parecidos para chegar lá, como parcerias com órgãos públicos, terceiro setor, qualificação dos produtores bloqueados para reinserção na cadeia, ferramentas de georreferenciamento e tecnologia blockchain. Mas, para alguns especialistas, faltam ações mais diretas. “Estas metas anunciadas estão muito longe. Acho que o objetivo deve ser desmatamento zero agora. O setor que mais desmata poderia ser mais incisivo. Frigoríficos e os bancos que financiam produtores, por exemplo, poderiam pressionar as prefeituras suspendendo as compras nos municípios desmatadores. Os grandes abatedouros têm poder para isso. E a economia destes municípios depende dessas vendas. Uma empresa que desse o exemplo inspiraria outras. Parcerias público-privadas também poderiam ser firmadas, inclusive com ação integrada entre os estados”, defende Paulo Barreto, pesquisador associado do Imazon.

Isabel Garcia-Drigo, gerente de clima e cadeias agropecuárias do Imaflora, também defende o trabalho multissetorial. “As soluções estão dadas e os caminhos estão colocados. Agora, é preciso sentar todo mundo à mesa para desatar estes nós, como agilizar a validação do CAR e mudar o modelo produtivo. Nosso trabalho é pelo desmatamento zero, inclusive o legal. O desmatamento não faz nenhum sentido”, defende. Ela lembra que o Brasil possui uma vastíssima extensão de terras degradadas que poderiam ser usadas pela pecuária. Somente na Amazônia, 20 milhões de hectares, o equivalente a área do Paraná, são de pastos com algum grau de degradação que serviriam para o gado. Hoje, o país conseguiria engordar seu rebanho de quase 200 milhões de cabeças, o segundo maior do mundo, sem derrubar mais um murumuru sequer.

Além das sugestões dos cientistas que há décadas olham para o bioma de dentro, parece claro que preservar a floresta também passa por fortalecer a precária governança fundiária do Brasil. Em pleno século 21, o país que tem a pretensão de alimentar a humanidade acumula uma série de graves deficiências que remontam ao Brasil Colônia, alimentando um ciclo vicioso de alta concentração de terras (uma das maiores do mundo), trabalho escravo, conflitos sangrentos no campo, injustiça social e extrema pobreza rural, perpetuando o subdesenvolvimento. Por falta de cadastro, por exemplo, alguns estados, até hoje, não sabem muito bem quanta terra possuem. Algo crucial para incorporá-las ao patrimônio público e definir políticas de uso do solo com criação de reservas, assentamentos e colonização.

Na Amazônia Legal, um passivo importante de terras públicas estaduais e federais espera regras claras de ocupação enquanto a grilagem explode. Então, o Estado, algumas vezes, não sabe o que tem ou não regula adequadamente o que é público – é a frágil governança. Há inúmeras tarefas por fazer para melhorar sua transparência e integridade, contendo a invasão predatória da mata. União e estados poderiam começar o trabalho reconhecendo formalmente as ocupações legítimas de agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais. Estes grupos, legítimos donos de extensões de terra, não detêm títulos de posse porque suas propriedades ainda não constam nos bancos de dados oficiais – portanto, não têm registro em cartórios. Seria um passo importante para sair da terra sem lei para a terra de direitos. Para proteger o verde que resta, não adianta só falar em metas ambiciosas, tecnologias sofisticadas, genotipagem para aumentar a produtividade nelore ou reclamar da suspensão dos fundos pela Alemanha e Noruega. Fundamental mesmo é um Estado forte que faça a tarefa que lhe compete: equacionar, para ontem, a lamentável questão agrária brasileira.

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Lilian Caramel é jornalista e cobre a área agrícola.

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