Agro: até onde vai a reprimarização do Brasil
Casos extremos repetem-se: país continua exportando “gado em pé” para o abate. Dois episódios do sofrimento de animais vivos levados de navio, mortos afogados. Em comum, gigantes do setor envolvidas em desmatamento e uso mão de obra escrava
Publicado 17/06/2021 às 15:29
Por André Campos e Pedro Ribeiro Nogueira, na Repórter Brasil
Um navio antigo, antes usado para carregar contêineres e adaptado para o transporte de animais vivos, naufraga e boa parte dos 5 mil bois embarcados para exportação morrem afogados às margens do rio Pará, no porto de Vila Conde, em Barcarena (PA). As imagens são fortes e os efeitos do acidente perduram mesmo depois de 5 anos: os animais em decomposição e o óleo contaminaram a água, prejudicando a subsistência de comunidades e a saúde da população.
Três anos antes, cerca de 2700 animais morreram sufocados em alto-mar
por uma pane elétrica no estábulo flutuante. Não muito longe de
Barcarena, em Abaetetuba (PA), comunidades ribeirinhas lamentam a perda do rio Curuperé, poluído por dejetos de gado e pesticidas. O local é usado como ponto de embarque de animais vivos para abate fora do país.
Em comum nestes dois episódios está a Minerva Foods, uma das três
maiores empresas exportadoras de carne e de gado vivo do Brasil. A
gigante do setor de proteína animal acumula – junto à Agroexport e a
Mercúrio Alimentos que também atuam na exportação do “gado em pé” – denúncias de sofrimento animal e vendem para outros países animais provenientes de fazendas desmatadas ou autuadas por trabalho escravo.
Uma investigação da Repórter Brasil descobriu que essas empresas compraram bois de fornecedores diretos que, por sua vez, adquiriram animais para engorda provenientes de fazendas que estão na “lista suja” do trabalho escravo e também de áreas embargadas por desmatamento ilegal
Minerva, Agroexport e Mercúrio Alimentos assinaram, em 2009, o
chamado TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne. Isso quer dizer
que elas se comprometeram formalmente a não adquirir animais de fazendas
inseridas na “lista suja” do trabalho escravo, assim como de áreas de
desmatamento ilegal ou criados em reservas indígenas.
No entanto, essas empresas estão expostas à contaminação de suas
cadeias produtivas. Isso porque pelo menos um de seus fornecedores
adquire animais de diversos pecuaristas no Pará e no Tocantins que
constam na “lista suja” do trabalho escravo.
A Fvt Comércio de Bovinos, de propriedade de Fabio Volpato Toledo, é uma importante fornecedora de gado vivo para exportação para as três empresas no Pará – estado responsável por dois terços da exportação de bovinos em pé do país, segundo dados da Comex Stat.
Os animais vendidos pela Fvt para as exportadoras vêm de duas propriedades: as fazendas Pau Preto e Agropecuária Toledo III, ambas localizadas em São Domingos do Araguaia (PA) e registradas em nome de Fábio Volpato Toledo, segundo o Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Em março de 2020, a Agropecuária Toledo III recebeu animais da
Fazenda Estrela D’Alva, em Jacundá (PA), de Jomar Antônio de Mesquita
Teixeira, que está na “lista suja” desde 2018. Uma fiscalização dos
auditores fiscais resgatou três trabalhadores em condições análogas à
escravidão na propriedade.
Entre abril e julho de 2019, a Fazenda Pau Preto recebeu gado de
outro empregador também presente na “lista suja”: Sebastião Marques da
Mota. Os animais vieram das fazendas Arco Verde e Pedra Branca, duas
propriedades contíguas onde o governo federal resgatou cinco pessoas da
escravidão.
“O produtor que está com problemas com questão ambiental tem a possibilidade de adequação. Agora, se ele está tendo problemas com mão de obra escrava, é crime, é sangue na mão”, analisa Mauro Armelin, diretor da ONG Amigos da Terra, que realizou um estudo sobre os dez anos do TAC da Carne e atua com empresas do ramo.
Procurada, a Minerva afirmou que adota “os mais rigorosos critérios em relação ao manejo dos animais em nossas atividades, privilegiando sempre o bem-estar animal” e que “respeita a legislação vigente para essa atividade, tanto no Brasil quanto nos países importadores, em relação aos procedimentos técnicos, sanitários e operacionais, incluindo o transporte seguro dos animais”. A empresa afirma ainda que a “Fvt Comércio de Bovinos e Fazenda LC I – estão habilitados a comercializar gado para a Minerva Foods ou para qualquer outra empresa do setor, segundo dados do Cadastro Ambiental Rural” e que as outras fazendas não constam no sistema. A companhia diz ainda ser impossível rastrear os fornecedores indiretos já que não tem acesso às Guias de Trânsito Animal. Leia aqui a resposta na íntegra.
A Agroexport e Mercúrio Alimentos não responderam aos questionamentos da Repórter Brasil. A Fvt Comércio de Bovinos foi procurada por e-mail e por telefone, também sem resposta.
Rastro de desmatamento
De 2015 a 2019, cerca de 400 mil bois foram embarcados vivos por ano
no país e levados para destinos no Oriente Médio, Norte da África e
Turquia. Eles são colocados em navios precários com até duas vezes mais
chances de naufragar – 80% deles construídos para outras finalidades e
adaptados para o transporte de animais vivos. Isso torna o Brasil o
segundo maior exportador de gado vivo por via marítima do mundo, atrás
apenas da Austrália. Somos, no entanto, os campeões em submeter os
bovinos às mais longas rotas.
Em 2019, o gado embarcado gerou uma receita de US$ 457 milhões de dólares, em um mercado em que a Minerva responde por quase metade (47,6%) do total.
O Pará lidera o ranking, exportando 66% do total de animais vivos, seguido por Rio Grande do Sul (20,5%) e São Paulo (8,3%). Apesar de representar apenas 1,3% do gado produzido pela indústria da carne no Brasil, no Pará a cifra sobe para 8,9% do total – quase um em cada dez bois paraenses sai do país de navio.
Segundo relatório da ONG Mercy For Animals,
publicado nesta segunda-feira (14), o fato do estado amazônico ser o
principal exportador “embute um risco de desmatamento significativamente
maior” uma vez que o Pará lidera, desde 2008, o ranking anual de
desmatamento da Amazônia, atingindo uma área de 39,8 mil quilômetros quadrados devastados (44,1% de todo o desmatamento no bioma amazônico).
Em 2019, a Repórter Brasil foi à São Félix do Xingu (PA) e ouviu de Arlindo Rosa, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais do município, que “sai muito boi de navio aqui. Se não fosse a exportação, não teria jeito”. O município tinha à época, segundo o fazendeiro, 90% de suas propriedades rurais embargadas pelo Ibama por desmatamento, impedindo a venda direta para frigoríficos e exportadores, que assinam o TAC da Carne. Mas a venda acaba acontecendo de forma indireta. Afinal, nenhuma das signatárias possui até hoje um sistema de verificação de toda cadeia produtiva.
Fazendas de São Félix do Xingu, que concentra a maior área desmatada
da Amazônia entre 2013 e 2018 e atingiu a marca de 18 cabeças de gado
por habitante, segundo relatório da Mercy for Animals, forneceram
“bovinos para as quatro maiores empresas exportadoras de bovinos vivos –
Minerva, a Agroexport Trading e Agronegócios, a Mercúrio Alimentos e a
Wellard do Brasil no triênio 2015-2017.”
“Tem três formas de burlar o TAC”, explica Daniel Azeredo, procurador do Ministério Público Federal. “A primeira é lavagem de gado, quando uma fazenda bloqueada encaminha o boi para uma fazenda que não tem restrição de forma fictícia e essa fazenda repassa para o exportador. A segunda é quando o fornecedor indireto compra de várias fazendas de cria e recria e vende depois o animal gordo. E a terceira é burlar o CAR, que é autodeclaratório e não validado, permitindo que empresas com problemas negociem com frigoríficos e exportadoras”, diz.
Pecuarista multado em R$ 1,3 mi por desmatamento
Além dos pecuaristas autuados por trabalho escravo, a investigação da Repórter Brasil encontrou
um caso de animais de fazendas com áreas embargadas por desmatamento
ilegal sendo enviadas para fora do país. O pecuarista Admilson Lopes de
Andrade forneceu gado vivo para a Minerva, em 2020, para a Mercúrio
Alimentos, em 2018, e para a Agroexport, de 2018 a 2021, com procedência
da Fazenda LC I, em Breu Branco (PA).
Adimilson também é dono de outra área de pastagem – a Fazenda LC II,
no município vizinho de Baião (PA). Desde 2013, a fazenda possui 250
hectares embargados pela prática de desmatamento ilegal. Pela infração,
Andrade foi multado em R $1,3 milhão pelo Ibama.
Entre 2018 e 2020, a LC II transferiu centenas de animais para a
engorda na Fazenda LC I, de onde o gado é vendido para as exportadoras.
Para Mauro Armelin, da Amigos da Terra, o “gado indireto continua sendo
um buraco na cerca”.
“Isso só reforça que os casos acontecem e que nós temos que continuar
prestando atenção ao mesmo tempo que não dá pra cobrar o TAC sozinho
pela redução do desmatamento. Ele é uma ferramenta importante, mas
diante dessa loucura que o governo federal tem promovido, é injusto
cobrar só dele a solução”, diz.
A reportagem não conseguiu contato com o Admilson Andrade.
Bois ao mar
A exportação brasileira de gado vivo por via marítima em larga escala começou em 2002, principalmente para países da América Latina e, até 2015, a Venezuela era o principal comprador,
sendo substituída nos anos seguintes pela Turquia, além do Egito,
Líbano, Iraque, Jordânia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Uma das justificativas para que esses países concentrem as importações, além da insuficiência da produção interna, é para que os animais sejam abatidos segundo os preceitos islâmicos do Halal.
Entidades defensoras dos direitos dos animais, no entanto, afirmam que submeter os bois à viagens exaustivas em alto-mar é crueldade. “Nossas investigações mostram que os animais vivem sobre as próprias fezes, morrem de doenças respiratórias, são expostos a temperaturas extremas de frio e calor, espaço reduzido, falta de atenção dedicada. Você imagina o que é para um boi estar por três semanas em um navio em alto-mar. Aqueles que morrem, assim como seus dejetos, são lançados no oceano”, afirma Luiza Schneider, vice-presidente de investigação da Mercy For Animals.
A necessidade de regulações, cobrança de impostos e até o banimento
da prática reúnem aliados improváveis: frigoríficos brasileiros reclamam
que a exportação do gado vivo retira valiosos substratos do país, como o
couro e o sebo, assim como a carne, que poderia ser beneficiada por
aqui.
Já as organizações de defesa dos direitos dos animais defendem o banimento da prática e pedem a aprovação do PLS 357/2018,
que quer proibir a exportação de animais vivos para abate. Após receber
parecer desfavorável da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do
Senado, o projeto aguarda parecer do relator da Comissão do Meio
Ambiente.
Para Haiuly Viana, médica veterinária do Fórum Nacional de Proteção e
Defesa Animal, a questão é colocada muitas vezes como uma guerra de
narrativas entre os defensores dos direitos de animais e os pecuaristas
interessados em seguir com a exportação, que afirmam que o comércio de
gado em pé é feito de forma segura e sem crueldade.
“A gente enxerga que o gado vivo, quando viaja, leva consigo uma cadeia poluída com desmatamento ilegal, que explora pessoas em situações de vulnerabilidade, que traz sofrimento para os animais. É uma prática que realmente precisa ser abolida, que causa danos profundos e permanentes”, diz.
Em 2018, o Fórum entrou com uma liminar pedindo o desembarque de 25
mil animais do navio MV Nada, atracado no Porto de Santos, em São Paulo.
Um juiz acatou o pedido, entre o dia 25 de janeiro e 4 de fevereiro o
navio ficou retido no porto, atraindo atenção nacional para a causa da
proibição do transporte marítimo, até a ministra Grace Mendonça, da
Advocacia-Geral da União (AGU), entrar com recurso no Tribunal Regional
Federal (TRF), liberando o navio para partir para a Turquia. O processo
mobilizou o então ministro da Agricultura, Blairo Maggi, e o
ex-presidente, Michel Temer.
Em 2015, uma Ação Civil Pública (ACP) do MPF, da Defensoria e do Ministério Público do Pará, pediu R$ 71 milhões como indenização por danos ambientais e sociais causados pelo naufrágio do navio MV Haidar, em Barcarena. O valor acordado em 2018, entre as empresas Companhia de Docas do Pará, Minerva, Norte Trading Operadora Portuária e Tâmara Shipping e os proponentes, e comunidades e moradores da região ficou muito abaixo do inicialmente estipulado: R$ 7,6 milhões acabou sendo destinado para as famílias impactadas e R$ 3 milhões para projetos comunitários.
Até hoje, mais de 5 anos depois, os animais que morreram afogados perto do porto de Barcarena continuam no fundo do rio. A remoção dos da carcaça do navio e dos cadáveres deve custar R$ 51 milhões e está prevista para acontecer ao longo de 2021.