Acordo UE-Mercosul: a nova fase do colonialismo
Atlas inédito examina as consequências assimétricas e letais do acordo: expansão agrícola, exploração da Amazônia e tarifas de agrotóxicos reduzidas em 90%. À Europa, a dominação do mercado latino-americano com produtos de ponta
Publicado 09/06/2021 às 16:51 - Atualizado 09/06/2021 às 16:59
Por Pedro Grigori, na Repórter Brasil
Populações do Mercosul têm sido tratadas como cidadãos de segunda
classe, vítimas de violência química por serem envenenadas com
agrotóxicos proibidos na Europa – e esse cenário pode se agravar se for
fechado um acordo comercial que reduz em 90% as tarifas sobre
pesticidas. Essas são algumas das conclusões do novo estudo da
pesquisadora da USP Larissa Bombardi. Conclusões tão graves que as
ameaças sobre ela, que já fazia denúncias sobre o uso de agrotóxicos, se
intensificaram, e ela deixou o país. “Eu não tinha segurança para
lançar esse trabalho vivendo no Brasil, porque sei que ele mexe
diretamente com a espinha dorsal da estrutura dessa sociedade e do
governo”, disse.
Um atlas inédito da pesquisadora mostra como o Brasil exporta bens básicos como alimentos e produtos de mineração, enquanto importa da Europa tecnologias avançadas. E o estudo da pesquisadora Larissa Bombardi, ao qual Agência Pública e Repórter Brasil tiveram acesso, mostra que o que ela chama de “neocolonialismo europeu” deve ganhar ainda mais força caso o Acordo de Associação entre Mercosul e União Europeia seja ratificado.
O atlas “Geografia da assimetria: o ciclo vicioso de pesticidas e
colonialismo na relação comercial entre o Mercosul e a União Européia”
foi apresentado pela pesquisadora ao Parlamento Europeu no mês passado. O
trabalho escancara os principais prejuízos que o acordo trará para os
países do Mercosul: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Entre eles, a
expansão da fronteira agrícola, com propriedades agropecuárias
adentrando, principalmente, a área da floresta amazônica.
Assinado pelo Governo de Jair Bolsonaro no ano passado, o acordo
comercial entre os dois blocos está em fase de ratificação. Se for
concluído, o tratado eliminará as tarifas de importação para mais de
90% dos produtos. O Ministério da Economia do Brasil estima um aumento
do Produto Interno Bruto (PIB) em até US $125 bilhões nos próximos 15
anos. Se for concluído, o acordo criará uma das maiores áreas de livre
comércio do planeta. Juntos, os dois blocos representam cerca de 25% da
economia mundial e um mercado de 780 milhões de pessoas.
E quem mais vai ganhar será o setor agropecuário. Produtos como café e
fumo terão tarifas totalmente eliminadas, o que vai aumentar ainda mais
a exportação brasileira para o bloco europeu, que em 2018 chegou a
US$14 bilhões apenas em produtos agrícolas.
“A tendência é reforçar ainda mais um quadro que já está elevado: se formos exportar mais soja, café e madeira, o impacto ambiental será ainda maior ”, explicou Larissa em entrevista à reportagem. “Por exemplo, o aumento da produção da soja tem se dado com o aumento da área, e é evidente que se houver demanda para mais produção agropecuária, teremos avanços sobre áreas que não estavam sendo destinadas para cultivos”.
Segundo Larissa Bombardi, o acordo só será benéfico para uma pequena
parcela da sociedade brasileira. “Não é um acordo pensando para superar
desigualdades, para coibir trabalho escravo ou uso de agrotóxicos”,
explica.
Saindo do Brasil
O atlas foi apresentado para o Parlamento Europeu no dia 11 de maio.
Pouco mais de um mês antes de lançar o trabalho, a professora Larissa
Bombardi teve que deixar o Brasil. Desde 2019, quando lançou outro estudo relacionando o uso de agrotóxicos no Brasil com a União Europeia, a pesquisadora passou a ser intimidada por críticos ao seu trabalho.
“Eu não tinha segurança para lançar esse trabalho vivendo no Brasil,
porque sei que ele mexe diretamente com a espinha dorsal da estrutura
dessa sociedade e do governo”, contou a pesquisadora à reportagem.
Larissa foi perseguida nas redes sociais por defensores do
agronegócio, e chegou a receber indicação de movimentos sociais para que
evitasse os mesmos caminhos, alterasse horários e a rotina para se
proteger de possíveis ataques dos setores econômicos envolvidos no tema
dos agrotóxicos.
Desde abril, Larissa está vivendo na Bélgica, onde continua estudando
e garante que não deixará de pesquisar e publicar trabalhos sobre o uso
de agrotóxicos no Brasil.
Confira a íntegra do atlas, disponível apenas em inglês.
Assimetria e prejuízos à saúde
Em 2018, os 31 países do bloco europeu exportaram 41 bilhões de euros
em mercadorias para o Mercosul. No mesmo período, Brasil, Argentina,
Paraguai e Uruguai exportaram juntos 43 bilhões para a União Europeia,
com o Brasil sendo responsável por 70% do total.
No entanto, Larissa Bombardi aponta para o que chama de
“assimetria”: “As nações ricas exportam produtos industrializados e de
tecnologia avançada, e os países mais pobres exportam bens básicos como
alimentos e produtos de mineração. Até hoje, continuamos a reproduzir o
modelo colonial que potências coloniais europeias estabelecidas há 500
anos”.
Para produzir em grande escala commodities para os países
desenvolvidos, o Mercosul investiu em expansão de áreas agrícolas e em
agrotóxicos. Segundo dados do atlas, enquanto o cultivo de soja aumentou
em 53,95% entre 2010 e 2019 no Brasil, o uso de agrotóxicos cresceu
71,46% no mesmo período. A área utilizada para cultivo apenas de soja no
Mercosul hoje é equivalente ao território total da França, terceiro
maior país do continente europeu.
O professor de Relações Internacionais da UnB Alcides Costa Vaz
explica que a ligação entre crescimento da área de plantio e aumento da
produção agrícola não é uma regra. “Desde os anos 90, o mundo caminhou
no caminho da produtividade da agricultura. Mas a concepção da
agricultura brasileira continua sendo ainda de expansão da fronteira
agrícola”, explica.
O atlas da pesquisadora Larissa Bombardi aponta também as
consequências diretas na saúde que o “neocolonialismo” deixa para os
povos sul americanos. Larissa explica que as ex-colônias europeias, que
já tiveram suas riquezas naturais saqueadas, passam agora por outra fase
de colonialismo. “Os povos dos países do Mercosul sofrem, em grande
medida, uma espécie de violência química, evidenciada pelo grande
número de pessoas envenenadas por substâncias desenvolvidas e
frequentemente vendidas por países da União Europeia”, explica.
Em 2019, a Argentina registrou 171 casos de intoxicação por
pesticidas usados na agricultura local. Nos anos de 2012, 2015 e 2017,
a quantidade de pessoas que sofreram intoxicação por agrotóxicos no
Uruguai chegou a 766. Só em 2016, o Paraguai registrou 1330 pessoas
intoxicadas com pesticidas.
No Brasil, o número de intoxicados é de quase 30 mil entre 2010 e 2019, segundo levantamento exclusivo da Agência Pública e da Repórter Brasil.
Algumas das principais empresas produtoras de agrotóxicos, como Basf,
Bayer e Syngenta, têm sede em países europeus. Elas ganham bilhões
vendendo para países com legislação mais branda, como o Brasil, produtos
proibidos na Europa. De acordo com dados compilados por Larissa para o
atlas, em 2018 e 2019, a União Europeia exportou para o Mercosul quase 7
milhões de quilos de agrotóxicos proibidos em territórios europeus.
Se o acordo comercial for ratificado, as tarifas sobre produtos
químicos, como agrotóxicos, serão reduzidas em até 90%. O que faz com
que indústrias químicas da Europa sejam favoráveis ao acordo.
Larissa explica que grande parte dos agrotóxicos proibidos na União
Europeia saíram do mercado por serem ligados a graves problemas de
saúde, como câncer, malformações fetais e anomalias hormonais. A
exportação desses produtos, para ela, é mais um aspecto da relação
assimétrica entre os dois blocos comerciais, que afeta negativamente a
saúde e o meio ambiente da população de países do Mercosul.
“Este duplo padrão equivale a um acordo tácito que os cidadãos do
Mercosul são “cidadãos de segunda classe”, visto que é admissível que
eles sejam expostos a substâncias não toleradas na União Europeia”,
explica a pesquisadora no trabalho.
Até mesmo a quantidade máxima de resíduos de agrotóxicos permitidos
na comida e na água é diferente nos dois blocos econômicos. Larissa
Bombardi compilou alguns limites estipulados pelos quatro países membros
do Mercosul e os da Comissão Europeia.
O café brasileiro, por exemplo, pode ter até dez vezes mais Glifosato
do que o permitido para a Europa. Já a soja argentina, pode ter vinte
vezes mais Clorotalonil que a europeia. Enquanto a soja brasileira tem
um limite cinquenta vezes maior que a da Europa para esse produto, a do
Uruguai e do Paraguai têm um limite cem vezes maior.
Assim, a Europa vai acabar importando produtos com níveis superiores
ao que permite em suas fronteiras, alerta a pesquisadora.
De acordo com a CropLife, associação que representa empresas
produtoras de agrotóxicos como Basf, Bayer, Corteva, FMC e Syngenta, a
desconformidade entre os limites de resíduos em países do Mercosul e da
União Europeia ocorre devido a diferença no manejo de uma mesma cultura
em diferentes países. “Quando não se observa o uso do produto na região,
adota-se um valor mínimo (default), em geral muito baixo. Caso de
culturas como soja (inexpressiva na Europa) e café (não produzido nos
países europeus)”, informou em nota.
“Os LMRs podem, ainda, caracterizar uma forma de barreira ao
comércio, quando estabelecidos em níveis excessivamente baixos e sem
justificativa em dados técnicos. É importante destacar que o LMR é um
parâmetro agronômico, não toxicológico. O fato de um agroquímico possuir
alto ou baixo não tem nenhuma implicação direta sobre os riscos no
consumo do alimento”, completou a associação.
Mais agrotóxicos e mais desmatamento na Amazônia
Junto com o avanço da área agrícola, cresce também o uso de
agrotóxicos. O atlas traz mapas que mostram o crescimento no número de
propriedades agrícolas que usam agrotóxicos na região da Amazônia Legal e
como, no mesmo período, essas regiões apresentaram crescimento no
desmatamento. “Os municípios que mais aumentaram o uso de agrotóxicos
estão no arco do desmatamento na Amazônia, é muito evidente o que vai
acontecer se o acordo for assinado: esse crescimento vai continuar”,
explica Larissa.
E a Amazônia é um tema especialmente importante para o acordo
comercial. Uma das cláusulas do tratado exigiu medidas eficazes de
proteção ambiental consistentes com o Acordo de Paris sobre mudanças
climáticas. Desde a crise das queimadas na Amazônia em 2019, Áustria,
Alemanha, França, Irlanda e Luxemburgo se colocaram contrários à
ratificação do acordo.
“Diversos estudos mostram que a agricultura tem um impacto importante
sobre o clima. O que atinge países como o Brasil, onde as principais
emissões de carbono vem de queimadas. Com isso, vários países europeus,
liderados pela França, afirmam que não há chances de ratificação
enquanto o Brasil mantiver as posturas que vem mostrando agora em
relação a políticas para o meio ambiente”, diz o pesquisador o professor
do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
(UnB) Alcides Costa Vaz.
A CropLife Brasil discorda do resultado do trabalho apresentado pela
pesquisadora da USP. “A agropecuária, como qualquer atividade que
interfere no meio ambiente, tem se empenhado em buscar soluções que
mitiguem seus impactos. Uma reação evidente é a crescente adoção de
práticas conservacionistas pelos agricultores, como plantio direto,
manejo integrado de pragas, tecnologias de aplicação de insumos e
agricultura de precisão. No caso dos pesticidas, por exemplo, são
notáveis os avanços na busca de moléculas mais específicas, fomentada
pelo rigor das regulamentações em todo o mundo, e a acelerada
incorporação de outras formas de controle de pragas e doenças que
racionalizam o uso dos produtos químicos”, disse a associação em nota.
Em relação ao desmatamento ilegal, a CropLife diz que “há consenso
entre especialistas que seu avanço não está ligado à expansão agrícola
já que a produção comercial não precisa e não tem incentivos para
crescer sobre áreas nativas”. Confira a íntegra da resposta da CropLife.
O Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg) não quis comentar o tema. A reportagem também procurou o Ministério da Agricultura, que não respondeu até a publicação.