A vida dos órfãos do feminicídio

Com famílias destruídas, eles vivem luto, traumas e incertezas. Perambulam por casas de parentes, muitas vezes irmãos são separados. Faltam dados para uma política de atendimento prioritário. Mas alguns estados dão passos no tema

Arte: Matheus Leal/Sul21
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Por Fernanda Nascimento, no Sul21

Os números alarmantes de feminicídios no Brasil escondem vítimas secundárias: os filhos. São crianças e adolescentes que perdem as mães e, muitas vezes, carregam o trauma de ter presenciado o crime. Na maioria dos casos, também carregam a dor de saber que o responsável pelo feminicídio foi o próprio pai. É o caso dos filhos de Lilia Hermógenes, defensora pública mineira assassinada em 2016, a mando do marido. “A maior dificuldade de todas foi lidar com o mundo. Nada é como a mãe”, afirma a filha Gabriela Campos, hoje com 19 anos.

O Brasil não tem dados oficiais sobre o número de órfãos do feminicídio e tampouco políticas públicas voltadas para atendimento de crianças e adolescentes que tiveram seus lares destruídos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano passado, 1.341 mulheres foram mortas por feminicídio em 2021. Em 90% dos casos, o autor ou mandante era o companheiro ou ex-companheiro. Os pesquisadores estimam que cerca de 2.300 crianças e adolescentes tenham ficado órfãos em decorrência desse tipo de crime.

Em duas reportagens especiais, o Sul21 apresenta um panorama dos impactos do feminicídio na vida de crianças e adolescentes, os tipos de suporte jurídico, psicológico e social imprescindíveis para atendimento de necessidades materiais e traumas provocados pelo crime, além de iniciativas que têm sido desenvolvidas nesta área.

Sem mãe e pai: quem cuida das crianças e dos adolescentes?

A perda da mãe de forma trágica é uma dor insuperável e um feminicídio transforma completamente a vida de toda a família, especialmente dos filhos. Gabriela e o irmão Artur Campos Rezende Filho levavam uma vida estável antes da mãe ser assassinada. Lilian havia recentemente se separado do marido, o advogado Artur Campos Rezende, e tinha medida protetiva quando foi assassinada em uma emboscada na porta da casa da mãe. O ex-marido foi preso no dia seguinte e logo em seguida libertado. No ano passado, foi condenado a 24 anos de prisão por ser mandante do crime, mas segue em liberdade enquanto recorre da decisão. Outro homem foi preso pelo assassinato e um terceiro réu absolvido.

O assassinato de Lilian mudou toda a vida dos adolescentes. De repente, eles perderam a mãe e viram o pai se transformar em assassino. “Eles tinham uma família. A mãe sofria todo o tipo de agressão: emocional, física, psicológica, patrimonial, mas ele [o pai] jogava com os meninos. Meus sobrinhos, durante toda a infância, tinham o pai como herói. E até o último momento do julgamento eles tinham esperança do pai não ser um assassino”, conta Rosemary Hermógenes, irmã de Lilian.

Assim como na maioria dos casos de feminicídio, Gabriela e o irmão Artur foram acolhidos pela família materna. Como classifica a assistente social Marcia Maria Moraes da Silva, integrante do projeto Órfãos do Feminicídio da Defensoria do Amazonas, esse é mais um reflexo do machismo da sociedade: “quem fica responsável pelas crianças é a avó materna porque o cuidado sempre recai com a mãe, sempre recai com as mulheres”.

“Eu saí de casa no dia em que ela faleceu e não voltei. Eu estudava pela manhã, minha madrinha me buscou, e eu deixei tudo para trás. A gente voltou em casa uma única vez, mas não deu tempo de pegar nada. A gente perdeu não só a mãe, mas uma parte da nossa vida”, conta Gabriela.

Recebidos pela avó, tias e tio, Gabriela e Artur tiveram que lidar com a dor da perda, o choque pelo envolvimento do pai e a mudança no cotidiano. “Eu já não tenho sentimentos ou contato com ele [pai]. Mas na época, logo que aconteceu, eu ainda estava em negação e via os comentários das pessoas falando sobre o meu pai, dizendo que ele deveria morrer, e eu ficava ‘meu deus, ele é meu pai’”.

O processo de entendimento da dimensão do que aconteceu e da perda de afetos foi bastante complicado para a família também. “Minha avó perdeu a filha mais nova dela. E mesmo passando por esse turbilhão de sentimentos, teve que mudar a vida dela e pegar dois adolescentes para criar”, conta Gabriela.

O deputado estadual Jefferson Fernandes (PT), autor de um projeto de lei que prevê atendimento psicossocial prioritário aos órfãos feminicídio, que tramita no Legislativo gaúcho, tem um interesse pessoal no tema: ele convive com um familiar que perdeu a mãe vítima de feminicídio e acompanha os conflitos e as angústias de quem cresceu sem um lar. “Ele teve a morte da mãe em sua frente, passou de uma família para a outra e sabia informações distantes que o pai estava cumprindo pena. E vivia em um dilema: deveria ou não se aproximar desse pai? Há pouco tempo, esse cara que já vive com um peso muito grande sobre os ombros, soube que o pai estava morando na rua e ele tinha dúvida se deveria acolhê-lo ou não. É um sofrimento indescritível”, conta o parlamentar. 

No Amazonas, o projeto voltado para o atendimento de órfãos do feminicídio foi criado justamente a partir da constatação de que não existe um apoio para as crianças. Enquanto nos casos de violência contra a mulher já se formou uma rede de atendimento, quando perdem a mãe, as crianças acabam “perambulando entre um parente e outro”, conta a coordenadora, a defensora Caroline da Silva Braz.

Nos lares com maior vulnerabilidade socioeconômica e/ou maior número de filhos essa tragédia é ainda maior: muitas vezes os irmãos são separados e deslocados para diferentes casas porque nenhum parente têm condições financeiras de sustentar todas as crianças e adolescentes. “Existe uma dificuldade, inclusive, para localizar essas crianças. Depois do crime há uma desestruturação enorme”, diz Caroline.

“Feminicídio não é um trauma superável”

A neuropsicóloga e especialista em desenvolvimento infantil e intervenção precoce Janaína Lobo é taxativa ao falar sobre o trauma causado por um feminicídio na vida de crianças e adolescentes que ficam órfãos: é insuperável. “Ele é administrável. A gente pode ensinar a esse indivíduo, através da psicoterapia e da reconfiguração de um novo lar, a lidar com aquilo que aconteceu. Mas o trauma será carregado por esse indivíduo o resto da vida, será uma pessoa com uma marca emocional muito traumática”, afirma.

De acordo com Caroline, a defensoria do Amazonas já acompanhou casos de crianças que não conseguiam dormir, não mantiveram rendimento escolar ou mudaram completamente seu comportamento a partir da morte da mãe. “A nossa preocupação com os processos envolvendo demandas de órfãos do feminicídio não é apenas mexer com o processo criminal, mas conseguir uma transformação com o comportamento da criança, para que ela consiga levar uma vida mais próxima do normal”, resume.

Como as experiências na primeira infância são fundamentais no desenvolvimento social, emocional e linguístico de uma criança, Janaína afirma que uma experiência traumática nessa idade e com a dimensão do feminicídio “não somente interfere no emocional, mas também no desenvolvimento, na emoção desse indivíduo e no que ele vai se tornar. E quanto maior é esse trauma, essa violência, mais essa criança se torna vulnerável a riscos emocionais e comportamentais”.

Quem sustenta os órfãos do feminicídio?

Além do trauma emocional, os feminicídios também desestruturam as famílias financeiramente. No caso de Lilian, a questão patrimonial está, inclusive, entre as motivações para seu assassinato. Artur Campos Rezende pretendia receber a pensão por morte da ex-mulher e, por isso, promoveu a emboscada que assassinou a servidora do MP. Com a morte de Lilian, Artur nunca pagou qualquer pensão aos filhos e o processo para que os adolescentes recebessem a pensão da mãe ainda demorou para ser resolvido.

Gabriela diz que é “privilegiada” na comparação com a maioria dos lares brasileiros. Mesmo assim, passou por dificuldades financeiras: “A gente era acostumado com uma vida, com uma casa grande, escola particular, com uma rotina. E quando a gente veio para cá [casa da avó] abandonamos tudo: eu dormia na cama com a minha avó e meu irmão em um colchão inflável”.

Carmen Hein Campos, doutora em Ciências Criminais e professora visitante na Universidade Federal de Pelotas, afirma que a desestruturação familiar causada pelos feminicídios passa despercebida pela sociedade. “Quando se perde a mãe tem que acontecer todo um rearranjo familiar e isso significa, às vezes, alguém parar de trabalhar para cuidar das crianças pequenas que não conseguem nem ir à escola, pensar em recursos para sustentar as crianças. Então, o problema não pode ser tratado como um simples processo penal”, defende.

Entre os tipos de acompanhamento que os familiares de vítimas de feminicídio mais precisam estão questões relacionadas ao sustento das crianças. “Acompanho todas as ações, não só no Tribunal do Júri, defendendo a honra da vítima que foi morta, mas fazendo também a ação de guarda, definindo com quem as crianças vão ficar, pedidos de pensão alimentícia e pedidos de pensão previdenciária, por exemplo”, elenca Caroline. E como a violência de gênero pode não se encerrar com a morte da vítima, há casos absurdos já enfrentados pela defensoria: “Chegamos a atender um caso em que o assassino estava recebendo a pensão da companheira e as crianças passando necessidade financeira”, conta.

A ausência

Os traumas e as dores de quem perde a mãe em uma situação tão traumática são vividos no cotidiano, mas potencializados nos rituais de passado da vida. Perguntadas sobre os momentos em que a ausência de Lilian foi mais sentida, Gabriela e Rosemary citaram o mesmo episódio: a formatura de Artur no ensino fundamental.

“Eu fiquei sentindo: tá faltando alguém. Não era eu que deveria tá aqui”, resume Rosemary. “Todo mundo ali com a família, com a mãe e o pai e eu olhava para o meu irmão, ver ele se formando. Ela sempre quis que a gente tivesse educação, sabe?”, conta Gabriela.

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