Os caminhos e a atualidade do feminismo negro

No Brasil, o movimento deglutiu experiências internacionais e resistências ao colonialismo. Ganhou robustez com as ideias Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. E forjou sua teoria e prática na presença: em terreiros, quilombos, periferias…

Foto: Tânia Rêgo / Agência Brasil
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Por Carolina dos Santos Bezerra Perez, na Revista Cult

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> Este texto é parte da edição 294 da Revista Cult — parceira editorial de Outras Palavras. O número reúne o dossiê intitulado “Feminismos”. Veja o índice completo e conheça o espaço Cult no OP

Peço licença às minhas mais velhas
Ofereço o meu abraço àquelas que estão ao meu lado
Desejo que as mais novas não tenham que ser guerreiras e fortes como nós
Que tenham amor, proteção, apoio e cuidado por onde forem e para o que quiserem ser.

Dar precisão à origem de ideias, conceitos, movimentos e perspectivas quase sempre nos conduz a deixarmos de fora algum dado muito importante e relevante. Sobre o feminismo negro não seria diferente. As dinâmicas e demandas da vida são urgentes e estão relacionadas com situações reais, que nos mobilizam cotidiana e existencialmente. Acredito ainda que as ideias e conceitos nunca surgem em um único lugar e a partir apenas de uma visão excepcional. Elas vão influenciando e sendo influenciadas até que algumas vozes se erguem e encontram eco em outras vozes, que vão aumentando e se corporificando até se imporem em um grito coletivo, não unívoco, não homogeneizado, mas de corpos, narrativas e discursos em disputa que lutam pela sobrevivência e por encontrarem formas diferenciadas de se organizarem em prol de uma luta coletiva.

Para mim, esse grito coletivo é o que muitos chamam de paradigma. Vozes contra-hegemônicas, que se erguem contra a invisibilidade e o silenciamento, contra a subjugação e contra estruturas históricas que foram naturalizadas e normalizadas.

Costumeiramente, o surgimento do feminismo negro é, de modo paradigmático, localizado nos Estados Unidos entre os anos de 1960 e 1970 e está relacionado à luta ativista das mulheres negras na defesa dos direitos civis. Sucintamente, questionava tanto o feminismo branco etnocêntrico e europeizado, que trazia à baila a questão de gênero e da opressão das mulheres, mas em moldes que não percebiam e não viam as especificidades raciais que as mulheres negras e racializadas viviam, quanto o movimento negro que focava na questão racial e questionava a desigualdade e a defesa de direitos básicos para a população negra, mas não atentava às particularidades de ser mulher nesse contexto de racismo. Além de ambos reproduzirem padrões heterossexistas e cis-heteronormativos, que não contemplavam a comunidade LGBTIAPN+, também não atentavam às articulações e interseções que a dimensão de gênero, raça e classe, aliada a outros marcadores sociais da diferença, traziam às lutas reivindicatórias dos movimentos sociais tidos como de esquerda ou de direita.

Para além do “pessoal ser político”, a realidade trazia à tona uma série de nuances e subjetividades que denotavam que “o pessoal” não era neutro e sim evidenciava um ser também único e universal, ainda que dentro de modos e olhares que pareciam “libertadores”. Aspectos como a hipersexualização e animalização dos corpos negros transformam os corpos das mulheres negras em corpos públicos, passíveis de abuso, estupro e violência sexual, e os corpos dos homens negros em ameaçadores, perigosos e sexualmente predatórios, passíveis de extermínio pelos aparelhos de repressão do Estado. Esses ainda são temas pouco aprofundados, mesmo nos dias atuais, mas sempre foram apontados como centrais pelo feminismo negro. “Parem de matar nossos filhos, maridos, companheiros e irmãos” bradavam, e ainda bradam, as mulheres negras e racializadas pelo mundo. Essas clivagens impactam ainda mais a reprodução de desigualdades que reiteram a posicionalidade dessas vidas como alvos fáceis, como vidas precárias, puníveis e matáveis, sujeitas à necropolítica dos Estados modernos.

Por sua vez, se referenciamos e localizamos o surgimento do feminismo negro nos moldes apresentados, é para também ampliar a sua conceitualização e sua história e as lutas que vêm defendendo e representando ao longo das décadas. Para isso creio ser importante localizar a fala de uma figura emblemática do feminismo negro, Angela Davis. Em muitas aulas, palestras e debates no Brasil, Davis sempre tem trazido frases que impactam e são estampadas nas chamadas de matérias e entrevistas jornalísticas, como: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, mas pouca ênfase é dada quando ela diz: “Eu sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. Mas por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês aprenderão comigo…”. Essa frase aponta para uma perspectiva e um enfoque muito importantes e que estão relacionados a um longo processo de “epistemicídio”, para citar um conceito desenvolvido por Sueli Carneiro, outro grande nome do feminismo negro brasileiro.

Quando Angela Davis conheceu e encontrou com Lélia Gonzalez, o que estava acontecendo no mundo? Como as lutas anticoloniais, anticapitalistas, antirracistas, antifascistas foram se interseccionando? O que elas têm a ver com o feminismo negro?

Muitos gritos foram se unindo e se somando em uma luta internacional que confluía para a integração de vários movimentos sociais, sindicais, estudantis, indígenas, negros, ambientais, feministas e de esquerda, que levantavam bandeiras diversas, desde a independência dos países africanos até a reforma agrária, como aventavam uma perspectiva mais integrativa da América Latina e das Américas. Havia trânsito, troca de ideias, debates, movimentação de referenciais epistemológicos e saberes tradicionais que foram abrupta e violentamente interrompidos por diversas formas de controle e opressão. Essas ações vão desde a instalação das ditaduras civil-militar na América Latina, o controle ideológico e perseguição a um imaginário que fizesse qualquer alusão aos regimes políticos socialistas e/ou comunistas, ao refreamento das revoluções, manifestações, visando ao cerceamento e aniquilamento de uma geração, seguida de acordos como o MEC-USAID (firmados secretamente entre o Ministério da Educação e a United States Agency for International Development, em 1965 e 1967) que implantaram reformas educacionais que impactaram nosso sistema educacional e consequentemente as universidades e toda a produção do conhecimento intelectual produzido no Sul global. O que vimos não foi um processo aleatório e caótico, foi um projeto civilizatório pensado, arquitetado e implementado para frear e controlar quaisquer perspectivas que se opunham a ele.

Lélia Gonzalez é um exemplo desse trânsito e dessas trocas entre esses movimentos. Foi assim que ela e Angela Davis se conheceram, na efervescência política trazida por esses corpos a espaços onde antes eram inexistentes, nos diálogos, na relação pulsante entre ativismo, militância e produção intelectual. Daí vêm as suas reivindicações por um feminismo afro-latino-americano, por uma “amefricanidade”, pelo “pretuguês”. Lélia falava da potência das lutas das mulheres feministas na América Latina: indígenas, negras, trabalhadoras. Ela tocava em feridas profundas e delicadas do sexismo e do racismo na cultura brasileira, do mito da democracia racial, ao mesmo tempo em que questionava o machismo dos homens negros, os processos de opressão e violência perpetrados por eles contra as mulheres negras, assinalava os estereótipos da mulata, da mãe preta, da ama de leite e da mucama, reatualizados nas babás, cuidadoras e domésticas que ainda hoje são quem “fez e faz história segurando esse país no braço, meu irmão”.

Ela também enfrentava os argumentos da esquerda que focavam somente na luta de classes e acusavam as perspectivas negras e feministas de pautas identitárias que prejudicavam a unidade da luta, mas que também tratavam como lixo, censuravam e condenavam todas aquelas que não liam nas suas cartilhas e manifestos. O lixo falava, e numa boa, para os companheiros e companheiras, sacou?

A força e potência do feminismo negro é que ele aponta possibilidades outras de posicionamento teórico e epistemológico a corpos que historicamente sempre estiveram a serviço do trabalho braçal, do cuidar, do limpar e do servir. Corpos que o processo histórico escravocrata, colonial e machista/sexista relegou a uma posição de corpos não pensantes, que não produzem conhecimento, abusados sexualmente, violentados, estuprados e assediados, cuja complexidade de sistemas de opressão os obrigam a permanecer em determinadas posições, pois permitir que saiam delas é um preço muito caro que a branquitude, as elites, os homens brancos e as mulheres que se beneficiam dessa situação não querem pagar. E não o farão de forma voluntária e pacífica, pois a violência é uma marca muito difícil de se apagar sem uma transformação profunda que abale as estruturas e articule diversas frentes que se oponham efetiva e radicalmente a essa realidade.

Exatamente por isso, da mesma forma que percebemos uma leitura interseccional (antes mesmo desse conceito ser cunhado pela advogada e professora americana Kimberlé Crenshaw) da realidade por diversas intelectuais negras do feminismo negro, acredito que as diferentes estratégias de resistência das mulheres negras no Brasil surgem nas senzalas, nas casas-grandes, por meio dos abortos daquelas que não queriam colocar filhas(os) no mundo (em sua grande maioria fruto de estupro) para que fossem escravizadas(os) e sofressem o que sofriam; aquelas que não queriam extraído de seu ventre a força de trabalho e de vida que nutria e alimentava a ordem econômica e desumana capitalista, predatória, colonial e escravagista, como aponta Françoise Vergès. Essas estratégias permaneceram nos terreiros de candomblé, nas rodas de samba, de jongo, nas capoeiras, nos quilombos, nos bairros pretos, na defesa dos seus com a interposição do seu próprio corpo perante o capitão do mato ou o agente de segurança pública fardado nos dias atuais. Defendo que uma espécie de feminismo negro estava e está vigente, com sentidos e valores ancorados na presença, na não dissociação entre o fazer e o pensar, entre a teoria e a prática.

Por meio da continuidade da sua existência, para além de um projeto individual e momentâneo, valores civilizatórios afro-diaspóricos, que aqui enumero a partir da mandala proposta por Azoilda Trindade (memória, oralidade, ancestralidade, cooperativismo, energia vital, religiosidade, circularidade, musicalidade, ludicidade e corporeidade), eram reatualizados e ressignificados. Desse modo, essas mulheres mobilizaram a única coisa que a travessia do Atlântico não havia retirado totalmente de si, o próprio corpo e a própria voz, para continuarem a existir mesmo depois da sua morte.

O feminismo negro problematizou e pontuou uma disputa teórica e epistemológica que colocava em xeque o próprio fazer científico das teorias racistas, eugênicas e cientificistas do século 19, que se pautava nos valores civilizatórios brancos, eurocêntricos, etnocêntricos, colonizadores, judaico-cristãos, escravocratas e masculinos para desvelar as perspectivas essencializadoras e biologizantes das características de gênero e raça/etnia, conceitos/termos em disputa, construídos histórica, social e culturalmente.

Quando falamos em feminismo negro, feminismos interseccionais, decoloniais, plurais etc., utilizamos explicações e conceitos que estão ganhando cada vez mais visibilidade no cenário contemporâneo, nas redes sociais, por exemplo, e se disseminado tanto no repertório acadêmico quanto no senso comum, evidenciando a popularização desses termos por meio da dinâmica entre movimentos sociais e academia, ao mesmo tempo que provoca dissensos e conflitos levianamente utilizados por grupos que não desejam que certas estruturas se transformem. Ao tentarem desqualificar o feminismo negro, mantêm as estruturas acadêmicas e intelectuais que negam espaço e reconhecimento às mulheres negras que têm se empoderado e erguido a voz em espaços hegemonicamente masculinos e brancos. Todas as áreas possuem termos e conceitos que são contraditórios e múltiplos, mas que não são atacados e desacreditados por conta disso. As mulheres negras não são todas iguais e não produzem conhecimentos idênticos ou “universais”. O fato de eu ser mulher negra não faz das minhas experiências as únicas possíveis, não existe um lugar de fala único nem mesmo dentro do feminismo negro. Neusa Santos Souza afirmava que podemos tratar da questão do negro no Brasil como coletiva do ponto de vista social, enquanto análise das condições materiais, do racismo, preconceito e discriminação sofridos, mas não com relação à dimensão psicológica no sentido de compreender as especificidades com que cada um(a) lida individualmente com essas questões a partir de cada subjetividade. No entanto, um feminismo negro que se utiliza das mesmas estratégias de opressão de classe, raça, gênero, e se converte em mais um aliado do mundo do capital corporativo e liberal, deixa de fora nossas irmãs que são aniquiladas, vítimas da fome, do feminicídio, dos conflitos fundiários, das balas perdidas, que são arrastadas em camburões, que vivem em situações análogas à escravidão, que perdem suas crianças em quedas de prédios ou sua juventude para o genocídio, que morrem em abortos ilegais, ou são assassinadas com tiros na cabeça por ocuparem cargos políticos estratégicos, espaços de poder e de decisão na sociedade brasileira.

Quais os caminhos possíveis para o feminismo negro atualmente? O que as experiências de diferentes mulheres negras, ativistas, artistas e intelectuais têm nos mostrado? Quais as reverenciadas e lembradas? Acredito que aquelas que construíram redes de solidariedade e afeto, que pautaram a sua existência em uma mobilização coletiva, de apoio mútuo e que utilizaram o acesso ao saber não só para si, mas para que o seu conhecimento transformasse a vida e garantisse a sobrevivência e a diminuição e/ou minimização do sofrimento para o seu grupo, foram e são imprescindíveis, ao nos apresentar possibilidades outras de ser e re-existir à violência, ao medo e à morte, com liberdade, coragem e vida. Aquelas que construíram uma relação outra com a terra, a natureza e educavam coletivamente as novas gerações nas favelas, nos morros, nas periferias e nos territórios, por meio do “quilombismo” de Beatriz Nascimento, que enaltece a negritude e as referências culturais, filosóficas e simbólicas presentes na construção de uma identidade negra brasileira. Aquelas que não se perderam de si mesmas, que subverteram relações de poder, que propuseram possibilidades mais libertadoras, a si mesmas e às outras, de ciclos de violências, invisibilidades, racismos, preconceitos e discriminações, que ergueram a voz, desafiaram estruturas e, como as jongueiras cumba, utilizaram o seu canto para transformar dor e sofrimento em alegria, e cantaram até o fim.

Portanto, as vitórias para a população negra brasileira conquistadas ao longo das décadas em diversas áreas contaram com toda essa força e potência das mulheres negras, ainda que não houvesse sido compreendido paradigmaticamente como feminismo negro. As políticas compensatórias e reparatórias de ação afirmativa como as cotas raciais no ensino superior, de valorização e reconhecimento como os tombamentos de patrimônios imateriais pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), as políticas de combate ao racismo e a discriminação, de inclusão e de promoção da igualdade racial e de gênero foram gestadas com a participação fundamental de lideranças imprescindíveis das mulheres pretas.

Várias gerações de mulheres negras têm contribuído para a luta feminista, antirracista, anticapitalista, anticapacitista e anti-LGBTIfóbica, bem como para esperançar e sonhar com uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva.

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