A nova onda de protestos maciços na França

Na noite de 30 de junho, o assassinato do jovem negro Nahel pela polícia incendiou novamente o país e revoltou suas periferias. No centro do novo episódio de indignações, o desproporcional uso da violência e o racismo nas polícias

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Por Norberto Paredes, na BBC Brasil

A mobilização maciça de policiais e unidades de elite não conseguiu conter uma quarta noite consecutiva de violência em toda a França após a morte de Nahel M., morto por um policial em Nanterre, subúrbio a oeste de Paris.

A noite de sexta-feira (30/6), como as anteriores, foi marcada por saques, incêndios e ataques a prédios públicos em um grande número de cidades francesas.

O Ministério do Interior da França anunciou neste sábado que 1.300 pessoas foram detidas na noite de sexta-feira em todo o país, ante 667 na noite anterior.

Enquanto isso, os pedidos de calma das autoridades e de figuras públicas como o jogador de futebol Kylian Mbappé parecem não surtir efeito.

Nahel, um adolescente de 17 anos, morreu na terça-feira depois que um policial atirou em seu peito.

Segundo os primeiros indícios da investigação, dois policiais em motocicletas queriam conter o carro que Nahel dirigia e que trafegava em alta velocidade “em uma via de ônibus” no subúrbio parisiense.

Os policiais teriam mandado o motorista parar no sinal vermelho, mas ele teria acelerado novamente.

O policial acusado de atirar no jovem foi preso sob acusação de assassinato, mas os protestos na França não param.

A seguir, explicamos em três pontos os motivos que desencadearam a série de tumultos que abalam a França.

1. Quem foi Nahel e como ele morreu?

Nahel era um jovem de origem argelina, filho único criado pela mãe no bairro de Vieux-Pont, em Nanterre, segundo o jornal local Le Parisien.

O jovem estava matriculado desde 2021 na escola secundária Louis Blériot, em Suresnes, outra cidade periférica, onde esperava obter um certificado de aptidão profissional como eletricista.

Enquanto isso, Nahel ganhava a vida como entregador de pizza.

Ele era um “garoto do bairro” que “queria se encaixar social e profissionalmente, [não era] um garoto que vivia do tráfico de drogas ou do crime”, disse Jeff Puech, presidente do clube onde o jovem jogava rúgbi.

Segundo seus advogados, Nahel também era “muito querido” em seu bairro.

De sua parte, sua mãe o descreveu como seu “tudo”.

“Ele era minha vida, era meu melhor amigo, era meu filho, era tudo para mim”, disse Mounia M. diante das câmeras da estação de televisão nacional BFMTV.

Os advogados de Nahel insistem que a ficha criminal do adolescente estava limpa. O que não quer dizer que ele nunca teve desentendimentos com a polícia.

Poucas horas depois de sua morte, a promotoria de Nanterre disse em comunicado que o adolescente era “conhecido pelos serviços de justiça, em particular por se recusar a obedecer”.

Nos subúrbios ao norte de Paris, vários carros queimados e capotados foram vistos na manhã de sexta-feira

Segundo relato do policial que atirou, Nahel teria morrido justamente após desobedecer à ordem de parada.

O incidente aconteceu na manhã de terça-feira perto da estação ferroviária suburbana de Nanterre-Préfecture, a oeste de Paris.

A princípio, fontes policiais garantiram que um veículo havia investido contra dois agentes em motocicletas.

Mas um vídeo que circula nas redes sociais, autenticado pela agência AFP, mostra que um dos dois policiais apontou para o condutor e depois disparou à queima-roupa quando o carro arrancou.

Vários ônibus foram queimados na noite de quinta-feira no terminal de ônibus Fort d’Aubervilliers, ao norte de Paris

No vídeo, ouve-se alguém dizer “vão te dar um tiro na cabeça”, mas essa frase não foi atribuída a ninguém em particular. Nahel morreu logo após ser baleado no peito.

O policial de 38 anos suspeito do tiro fatal foi detido como parte da investigação.

2. ‘Racismo’ e brutalidade policial

O caso de Nahel reacendeu a controvérsia sobre a ação policial na França, onde um recorde de 13 mortes foram registradas durante controles de trânsito no ano passado.

Nahel é a segunda pessoa este ano a morrer desta forma na França.

Duas semanas atrás, um motorista de 19 anos foi baleado pela polícia em uma cidade no oeste da França depois de supostamente atingir um policial nas pernas durante uma operação de controle de trânsito.

Organizações como a Anistia Internacional e o Conselho da Europa acusaram recentemente as forças de segurança francesas de abuso policial ao lidar com manifestações de massa, como as dos “coletes amarelos” ou os protestos mais recentes contra a reforma previdenciária.

Mas a morte de Nahel parece mostrar que o problema vai além.

Três dias a morte, a ONU (Organização das Nações Unidas) pediu à França nesta sexta-feira que aborde seriamente os problemas de racismo e discriminação racial em suas forças policiais.

Polícia tentando controlar tumultos na Cité Pablo Picasso em Nanterre, a noroeste de Paris

“Agora é a hora de o país abordar seriamente os problemas profundos de racismo e discriminação racial entre os agentes da lei”, disse Ravina Shamdasani, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, durante coletiva de imprensa regular na ONU em Genebra, na Suíça.

Shamdasani também pediu às autoridades francesas que garantam que o uso da força pela polícia para enfrentar elementos violentos durante as manifestações respeite os princípios de legalidade, necessidade, proporcionalidade e não discriminação.

3. O problema dos subúrbios

A morte de Nahel mais uma vez provocou a ira dos subúrbios carentes da França, bairros periféricos que muitas vezes abrigam os setores mais pobres da sociedade francesa.

“As pessoas que vivem nessas comunidades têm duas vezes mais chances de serem imigrantes do que a média nacional e três vezes mais chances de estarem desempregadas”, escreveu a especialista em territórios e coesão social Iona Lefebvre em artigo para o Montaigne Institute.

Esses bairros, conhecidos como banlieues (as periferia das cidades), tornam-se palco de protestos violentos após casos como o de Nahel, que ocorrem com certa frequência.

Em 2005 foi o subúrbio parisiense de Clichy-sous-Bois que explodiu, após a morte de dois jovens muçulmanos de 15 e 17 anos, eletrocutados em uma subestação elétrica enquanto fugiam da polícia.

Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior e depois presidente francês, chamou os manifestantes que iniciaram os protestos de “escória”.

O banlieue voltou ao levante em 2017, depois que o jovem Théodore Luhaka foi violentamente maltratado pela polícia em outro subúrbio de Paris, Seine-Saint-Denis.

O sociólogo francês Fabien Truong, professor da Universidade de Paris-VIII, explicou em entrevista ao jornal Le Monde que muitos dos manifestantes são meninos da mesma idade deste adolescente, que reagem “de forma íntima e violenta” pela simples razão de que a vítima poderia ter sido um deles.

“Todos os adolescentes desses bairros têm lembranças de interações negativas e violentas com a polícia”, disse o acadêmico.

E concluiu: “Nesses bairros, a pobreza e a insegurança são realidades concretas. Por isso essa raiva é política.”

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