A necessidade de resistir à pedagogia inadequada

Ensaio sobre a estranha arte de dar aulas, a partir dos pensamentos de Bertrand Russell, Deleuze e Freud. Pós-pandemia expõe crise na Academia: o ensino-produto. É preciso resgatar: educar é o acolhimento da dúvida e companhia à solidão do aluno

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Por Sérgio Prudente, na Jacobin Brasil

Jacques Rancière defende que “É uma questão política: saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser ‘reduzida’ ou uma igualdade a ser verificada.” O presente ensaio coloca em palavras ensaísticas as inquietações vindas do crescente estranhamento em relação aos rumos que o meio acadêmico toma.

No contexto da pandemia, as universidades públicas paralisaram uma parte importante de suas atividades: as aulas presenciais. Atitude prudente, mas tomada, em certos casos, a partir de um cálculo de danos colaterais. Todo o debate em torno da volta às aulas não tardou a aparecer. Com isso, veio o fantasma daquilo que representa o ápice da precarização do trabalho e da obsolescência do professor em sala de aula: o ensino a distância (EaD). Logo surgiram táticas para afastar essa hipótese, como uma espécie de maquiagem na qual o termo ensino remoto aparece como modelo distinto e justificado legalmente. Sob a batuta do discurso colaborativo e regulado pela gestão, pulularam especialistas em ensino remoto, munidos de técnicas e expressões muito bonitas como “aulas síncronas” e “aulas assíncronas”. Diante disso, surge a questão do que fazer com o que é específico de cada área, com o que é específico de cada professor, com o que é específico de cada estilo, frente à pressão institucional para tornar homogêneo o que se entende por aula a partir desses formatos. Ora, este é um modo de entender a aula como uma espécie de produto, algo que se entrega e, por isso, pode ser replicado por meio de gravações e roteiros seriados. O professor, neste contexto, é o que se chama de facilitador. Ele facilita a passagem, o tráfego do conteúdo para o aprendizado do aluno. É um instrumento de automação cujos pressupostos de criatividade só existem dentro das balizas produtivas da mecânica corporativa. Assim, nos resta perguntar: o que é uma aula? Uma aula se reduz à transferência de um pacote de dados? Aula é esse produto que compõe o avanço da máquina institucional movida pela gestão?

Uma guerra perdida, que vale a pena ser travada

Este texto é o canto de uma guerra perdida, mas uma guerra que vale a pena ser travada. Uma guerra sem a qual aqueles que entendem o papel do professor e da aula não seriam. Aqui tentamos articular sobre aquilo que não se encaixa, o que está deslocado, o não contabilizado, a que só podemos dar forma a partir de contornos feitos quando tomamos emprestado as possibilidades da palavra. Talvez a aula seja feita disso. Talvez isso seja o último limite não colonizado e não dominado do que é uma aula. Limite que provavelmente esteja correndo risco em razão da possibilidade da aula se tornar a encenação repetida de um roteiro. Mas há também um roteiro trágico, já que o professor termina produzindo o trabalho que culminará na sua própria obsolescência.

Qual o sentido da aula na universidade? Ela seria um espaço e um tempo cujo enquadre forma um lugar de transmissão? Ou seria ela um lugar de exercício de poder? Uma ortopedia moral? Uma doutrinação, como os canalhas afirmam? Há algo da aula que seria um objeto a partir do qual se fala e que poderia fazer falar? Afinal, trata-se de uma prática tão antiga, comum e pessoal, mas ainda envolta em inúmeras questões. Não é nossa pretensão fazer considerações pedagógicas, pois não estamos aptos para tal. Não é nossa área, e a pedagogia possui uma extensa produção e tradição na qual não nos aventuraremos. Este ensaio é a tentativa de sintetizar a inquietação e dialogar com autores que nos dão refúgio em relação ao incômodo, ao descompasso e ao anacronismo. É a tentativa de integrar a experiência de um professor que, na universidade, experimentou as constantes pressões institucionais, políticas e metodológicas. Este ensaio é quase um amparo, uma conversa com personagens conceituais, como diria Deleuze. Algo da ordem de uma expectativa de que haveria outros professores insatisfeitos e deslocados na substância da universidade pública, que hoje funciona a partir do modelo de gestão, com discurso empreendedor, excludente, produtivista, corporativo e meritocrático. Sendo assim, o que é dar uma aula? Que atividade é esta, na medida em que ela se encontra entre exigências institucionais de gestão pedagógica/produtivista e alunos que são sujeitos desejantes, complexos, heterogêneos?

Um sujeito incerto diante das estruturas de poder

Barthes entrou tardiamente na Collège de France e, ao iniciar sua aula de apresentação, observou e interrogou sobre as razões de seu ingresso, já que ele é “um sujeito incerto, no qual cada atributo é, de certo modo, imediatamente combatido por seu contrário”. Ele se apresenta como alguém sem os títulos que geralmente dão acesso a essa carreira e detentor de uma obra que se dá através do ensaio, modalidade literária que ele julga um gênero incerto e com pouco espaço na academia.

É notável a coragem de Barthes em integrar a instituição junto a seus antigos mestres e amigos consagrados academicamente. Mas, mesmo diante da incerteza das razões para ter sido escolhido, ele comenta que o seu ingresso é “uma alegria mais do que uma honra; pois a honra pode ser imerecida, alegria nunca o é”. A alegria é estar entre os autores que atravessaram sua vida, na presença fraterna de um ambiente de amizade pelo saber e em que a circulação da palavra se dá, na medida em que a pesquisa é a própria via de transmissão de um saber para os alunos. Barthes coloca a alegria no lugar “fora do poder”. Já a honra, segundo ele, é geralmente uma sombra do poder, uma parte intocada dele, um resto. O professor teria, então, a atividade de pesquisar e de falar; um sonhar alto sua pesquisa e fazê-la de maneira prazerosa, deslocado da ação de julgar, de escolher, de promover, de se sujeitar a um saber dirigido, de se furtar a um privilégio quase justo, no momento em que o ensino está dilacerado pelas pressões e demandas tecnocráticas. Logo, quanto mais livre o ensino, mais é necessário indagar sobre suas condições e operações: o discurso que organiza o ensino pode se despojar do desejo de dominar, desejo que existe e que é irresistível para muitos no lugar de professor?

Uma aula é sobretudo um ato político

Por essa via, a aula é, sobretudo, um ato político, pois lida com a circulação de poderes, delineando os mesmos lugares institucionais estruturados a partir de discursos. É fundamental pensarmos que essa circulação do poder é mais complexa do que imaginamos. O estudante, aquele que receberia o saber do professor, desde o início, é acostumado a se colocar em servidão voluntária. Ou seja, ele é o espectro do que La Boétie identifica como servo, aquele que, ao mesmo tempo em que serve, dá ordens. No caso dos estudantes, é uma espécie de estágio para a reprodução desses lugares de poder. É na contramão da luta por reconhecimento, impulsionada pelas peripécias hierárquicas, que professores e alunos sofrem um processo de proletarização diluído nas atribuições dos lugares que ocupam.

Rancière observa que o ensino institucionalizado da pedagogia, promovido pelos professores tradicionais, não vai além de repetir conteúdos a serem dominados sem a necessidade de intermédio. Isso sustenta certos pressupostos que movem a concepção de pedagogia liberal, como a distinção entre gênios e normais, a ideia de que existe uma compreensão mais exata do mundo, acessada apenas pela elite intelectual, ou mesmo a crença de que não se é capaz de aprender sem o professor ou a escola. Na contramão da emancipação, esse é o movimento de embrutecimento, a crença no mito da pedagogia, que define a necessidade da explicação para que se compreenda algo. É o princípio de subordinação de uma inteligência a outra, atualizando posições de poder. Assim, a figura do mestre ignorante é deslocada e desencaixada da figura do mestre docens. O mestre ignorante ensina o que ignora, é um convite a um trabalho que, em muitos casos, consiste em mergulhar junto nas águas turvas daquilo que não, necessariamente, se entende. Esse companheiro de curiosidade pelo conhecimento promove construções conjuntas com o aprendiz. Ele permite a expressão da experiência a partir do trabalho de sistematização que consolida um estilo próprio. A emancipação significa que há uma isonomia de inteligências. Isso significa que toda a produção de conhecimento, seja ela artística ou científica, pode ser compreendida por qualquer pessoa, sem a necessidade da submissão do aprendiz pelo mestre.

É nesse sentido que conciliar ordem e progresso na instituição pedagógica é legitimar o exercício de autoridade e submissão de sujeitos desejantes. O progresso se daria por essa disciplina que exige até o limite das capacidades, os índices, a mensuração do conhecimento fornecido pelo programa e os resultados das ocorrências. Rancière destaca que quem obedece a ordem deve compreender a ordem para entender que deve obedecer. É um espelhamento do mestre dentro da dinâmica identificatória no vislumbre de sucessão. Logo, instituir pode significar tanto confirmar as incapacidades dos atos para reduzi-los – como é o caso do embrutecimento – quanto significar forçar uma capacidade que se ignora, por exemplo, reconhecer-se e ir até as últimas consequências de tal conhecimento, emancipando-se. Nesse sentido, aula pode ser entendida como uma questão filosófica, na medida em que não pode ser reduzida a mera questão de método e aplicação de formas particulares de aprendizagem. A questão central talvez seja a de saber se o outro que ocupa o lugar do mestre está a serviço da igualdade ou da desigualdade.

O professor como um companheiro na solidão de um aluno

Pensando algo assim, Deleuze aponta a função do professor como aquela que acompanha o aluno na sua relação com a solidão. É preciso apresentar um horizonte em que a solidão é possível e que ela não seja remediada por meio da comunicação subordinada a um saber. Os alunos querem escola, querem hierarquia e mestre, mas eles não sabem o que fazer em relação à solidão. É preciso reconciliá-los com a solidão. Esse era, para Deleuze, o papel do professor.

Destacamos, assim, a solidão como singularidade, um tempo próprio, sempre anacrônico e fustigado pelas investidas constantes da ortopedia produtivista, anti- intelectual, ansiógena e embotadora de criatividade. Nesse sentido, talvez seja também papel do professor manejar desejos. Mas não um manejo na direção de oferecer ou de se oferecer como objeto de desejo, cujo encontro satisfaria o aluno. A questão é manejar os princípios mais radicais e antigos das inquietações científicas da humanidade, a saber, a curiosidade e a dúvida. A dúvida sempre aberta, sempre uma posição em que, mesmo nas respostas, encontramos um novo ponto de partida para a aventura da curiosidade, da pesquisa, do júbilo angustiado dos encontros e dos desencontros com os autores, com os textos, com as experiências. Tudo isso é solitário.

A Legião do poder, pontuada por Barthes, expressa a ideia de que o poder está por todos os lados, é múltiplo. Por toda parte, vozes autorizadas e autoautorizadas a fazer ouvir o discurso do poder. Barthes chama isso de discurso da arrogância. Mas não há a possibilidade de um mundo sem o poder, pois ele está na própria linguagem. Por isso, como professores, devemos nos interrogar sobre possibilidades e formas de circulação do poder, bem como o seu exercício sobre os outros. Esta é uma ética! Muitas vezes decidida pela obediência apática à normatividade. Se a norma determina, tudo bem. Mas, diante da solidão mais radical da decisão, no limite de nossa ação que envolve o outro, lá onde o esquadro da dinâmica institucional se torna uma escolha, que decisão tomar? Não nos referimos aqui a grandes decisões, necessariamente. É uma interrogação que aponta para as posições e os lugares nas dinâmicas das relações. Mas como ficamos perante a racionalidade institucional, que tenta submeter esse manejo à norma?

Tal proletarização do professor já havia sido apontada por Max Weber quando observou que grandes institutos de medicinas ou de ciências são empresas do capitalismo de Estado. As suas administrações seguem a mesma lógica da empresa capitalista, ou seja, a separação do trabalhador e dos meios de produção, o que implica no processo em que a perda da independência do trabalho de cientistas e professores é equiparada à perda de um empregado substituível por outro, que, por sua vez, produziria a mesma coisa. Weber separa duas facetas: a do sábio e a do professor. Duas facetas que não coincidem, necessariamente. Um sábio excepcional pode ser um professor ruim, assim como o contrário. Essas coisas se organizam na universidade, mas a avaliação do professor como ruim é sempre um fato catastrófico no meio acadêmico.

As circunstâncias em que isso ocorre são as mais variadas possíveis e dependem de fatores extrínsecos. No entanto, isso está sempre na tensão entre uma espécie de vocação aristocrática do professor, que assim se coloca diante do aluno, e as possibilidades de avaliações dos alunos em relação ao professor, que podem ir desde um elemento para apontar um déficit prático até as pequenas revanches e antipatias. Nada disso escapa ao grande dispositivo de desigualdade que reflete a dinâmica cultural em que a concorrência de privilégios marca a qualidade das relações.

A independência intelectual docente

Para Bertrand Russell, o sentimento de independência intelectual é fundamental para a função do professor. Ele participa da formação da opinião pública com seu conhecimento e sua racionalidade. Mas houve na história momentos em que professores cujas aulas e conhecimento eram considerados subversivos foram punidos, dentre eles Sócrates, condenado à morte, e Platão, preso. O conhecimento do professor sempre esteve em meio a disputas, apesar da independência de suas funções no decorrer da história. Seja na Antiguidade, na Idade Média ou no Renascimento, a liberdade do conhecimento sempre esteve em disputa. A Inquisição obrigou Galileu a se retratar e queimou Giordano Bruno na fogueira. Em nossa época, especificamente no Brasil, a educação é fornecida pelo Estado, em sua maior parte. Nesse sentido, o professor é um servidor público com atribuições, direitos e deveres. A educação estatal não está livre de crenças dogmáticas. No entanto, é na universalidade de seus debates e criações que podemos estabelecer um campo possível para que as várias línguas do conhecimento possam se comunicar. Esse é um aspecto civilizatório a partir do qual, com Russell, entendemos o homem civilizado como aquele que, “quando não pode admirar, aspira mais a compreender do que a reprovar”.

Convenhamos que o espaço para compreender nas dinâmicas concorrenciais entre os saberes universitários abre pouca possibilidade para tal movimento civilizado. Reprova-se primeiro, pois compreender é assentir a posição do outro. Ainda com Russell, o professor tem o desejo genuíno de compartilhar o conhecimento, algo que está longe da atitude propagandista que transforma os alunos num séquito a serviço da própria admiração. O professor propagandista submete os alunos a seus próprios propósitos; o educador, inversamente, não aplica a crueldade repressora e o desejo de privar os outros das experiências. Quando escreveu o referido texto, Russell já apontava para dificuldades que perduram até hoje. Ele destaca a impossibilidade de muitos professores darem o seu melhor, pois estão sobrecarregados de trabalho, limitados pela exigência de preparação dos alunos para cumprir exames, índices e metas em detrimento de se preocuparem com uma formação sem preconceitos: é o modelo de gestão, que vemos hoje interferir numa prática sobre a qual não tem conhecimento. É uma concepção que organiza o trabalho do professor e a aula como um objeto de produção na gestão pedagógica, no interior do mercado do saber. A aula vira uma mercadoria muitas vezes operada por propagandistas. Enfim, o modelo administrativo submete o projeto de formação, isto é, ele deixa de ser instrumento do projeto de formação para ser seu gestor.

Sempre preciso, Russell comenta que não se exige que padres façam sermões durante horas seguidas todos os dias, mas se exige do professor um esforço análogo, gerando o esgotamento ou o que hoje nomeamos como precarização do trabalho. Sob argumentos como amplo debate, construção coletiva e educação para todos, a gestão é, antes de mais nada, uma gestão de produtos e produções contabilizados e geridos em moldes sobre-humanos de processos e sistemas que estão longe daquilo que historicamente entendemos como aula. Para Russell, o professor tem como tarefa esforçar-se para produzir nos alunos uma tolerância que nasce do desejo de compreender os que são diferentes de nós. Esse traço do ensino nos ajuda a compreender o motivo pelo qual a universidade pública hoje, no Brasil, é alvo de ataques sistemáticos de forças políticas. Tais forças, pulverizadas por diversos setores da nossa sociedade, espalham o que Russell chamou de histeria coletiva, pois, com loucura e crueldade, incentivam pessoas a acreditarem no que não tem fundamento racional e no que simplesmente ouvem dizer. Assim, justifica-se ataques a professores e produz-se indiferença às suas condições de trabalhos. A recomendação fundamental da liberdade de cátedra se torna uma ameaça ao assumir a forma da política, da sistematização, do raciocínio lógico, formal, ético e, sobretudo, da disposição a estabelecer laços com as diferenças. A recomendada autodeterminação e independência do professor entra em colisão com as interferências tecnocráticas da gestão e com os fanáticos.

Essa independência no trabalho público assegura, primeiramente, uma resistência ao totalitarismo. É uma liberdade que só parece desnecessária para os que têm medo da heterogeneidade, do que foge à autorreferência e ao exercício de poder sobre o outro. O fato de Russell observar que instituições de ensino parecem ser controladas por pessoas que nada entendem do trabalho em que interferem pode parecer injusta, já que a gestão é feita por professores. Mas a convivência e o laço entre áreas distintas na universidade são garantidos por procedimentos de gestão e articulação destes, sempre que possível, não permitindo que bandeiras político-morais sejam levadas ao limite de sua radicalidade. Sobre tal camada, encontramos dificuldades para compreender os limites de diferentes conhecimentos – tomados como princípios de engendramento de saber – e compor um projeto de formação ampla para além do cumprimento dos índices institucionais.

O fascismo da obrigação de dizer

Há algo de fascista nesse processo. Aqui, o termo fascista é tomado num recorte especificamente barthesiano, ou seja, o fascismo não é o que se impede de dizer, ele está no que se obriga a dizer. Logo, o que se obriga a dizer na aula vem a partir da naturalização de discursos, léxicos e modelos de racionalidade que legitimam a gramática do poder e da desigualdade, ou seja, a exigência de índices, a concorrência, a meritocracia, a negação do sofrimento, a gestão do sofrimento do trabalhador e do aluno, sempre voltados à produtividade e à gestão do sofrimento, na medida em que pensamos naqueles que podem adoecer e naqueles a quem a doença sequer é permitida. O que se obriga a dizer é o que se passa a dizer voluntariamente de forma introjetada e naturalizada. Afinal, não somos empurrados para a banalização das disputas por verbas, bolsas, índices de produtividade? Perdemos, então, a luta pela heterogeneidade e instituímos a desigualdade.

Diante disso, não há como pensar na aula a não ser como Gagnebin propõe: um método desviante. A dinâmica de sala de aula é composta por um tecido afetivo e intelectual costurado junto com o aluno. Tal tecido concilia regras institucionais com os movimentos e os fluxos afetivos em torno das pessoas e dos conteúdos trabalhados. Nesse sentido, existe algo da ordem da errância na prática do professor, o que se traduz, pensando Gagnebin, numa relação com os cronogramas, as ferramentas, os sistemas informatizados e exigências, tomando-os como marcações de procedimentos no contexto do percurso das problemáticas apresentadas. Assim, há um tempo da aula, uma cadência, uma modulação na qual se dá a conciliação da proposta de um programa com o que surge da relação entre professor, aluno e conteúdo em sala de aula. Lembremos da solidão colocada por Deleuze, que aparece no contato angustiante com leituras desafiadoras e com experiências práticas muitas vezes impactantes. Esse tempo múltiplo é o tempo de cada solidão remetida à relação com o professor, com os textos, com suas autoexigências e sua própria história. É nesse ínterim que ocorre o que Deleuze chamou de efeito retardado: “podemos não entender nada na hora e, dez minutos depois, tudo se esclarece […] uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe convém”.

Por outro lado, o tempo a ser ganhado é o tempo circunscrito no espaço. Ganhar tempo é o tempo do ensino sem desvio, o tempo utilitário remetido à função pré-definida e irrestrita da serventia. Afinal, time is money! É por isso que haverá algo sempre anacrônico nesse tipo de professor, pois ele leva em conta a heterogeneidade e os desajustes da realidade, que insiste em se apresentar a partir de diversas perspectivas, mas deixa expostos seus furos. O anacronismo antiprodutivista e, sobretudo, o da experiência afetiva de criação. Criar não se restringe a um produto contabilizável. Pode- se criar para se referir ao espaço, um vínculo com o colega em torno da amizade pelo saber, um vínculo com o texto ou com o autor, um vínculo com a própria solidão; enfim, horizontes a partir dos quais se transformará os operadores formais dos conteúdos apresentados. Assim, o método desviante é o de se deslocar das posições hierárquicas e normativas que compõem a paixão narcísica tão bem alimentada pelo espírito liberal, cujos vapores embaçam os olhos dos professores propagandistas. Trata-se sobretudo de não se dobrar às armadilhas que naturalizam as desigualdades. A aula pouco tem a ver com isso, é um trabalho intelectual e espiritual que lida com o impossível.

Educar: um ofício impossível

Freud, em “Análise terminável e interminável”, comenta que educar, curar e governar são ofícios impossíveis. Não é no sentido de uma profissão, mas no de um métier. Isso ocorre pois seus exercícios se fazem a partir da exigência do engajamento da palavra. Para Lacan, em “Televisão”, a palavra é um instrumento que falha em dizer toda a verdade. Dizê-la é impossível, pois faltam palavras. Logo, educar é um ofício impossível na medida em que ele se faz em um movimento necessário que não cessa, como fluxo fugidio que comporta uma errância mesmo com toda a sistematização. Educar é impossível pela impossibilidade de apreensão pelo conceito. Lá onde o impossível encontrar fala, ocorre a escanção que permite que isso cesse de não se escrever. Há, no educar, o encontro do real que se inscreve na fala, que não se educa e que volta como impasses relacionais, intelectuais, institucionais. O impossível de educar é o que move a própria tentativa de sutura operada pelas diversas estratégias pedagógicas. Mas repito: é o impossível, que é o fulcro daquilo que é um limite tenso, que encontra seu palco na aula. Logo, o professor é essa espécie de companheiro de caminhada que oferece a philia na direção dos sucessivos encontros que ocorrem dentro da aula, do semestre, do curso e da vida.

O espaço da aula não é um espaço de facilitação nem de tráfego de conteúdos. Tomá-la assim é aceitar a falência do laço. Assim, é preciso resistir à ideia de que a “inovação” das aulas remotas dependem do entusiasmo proativo do professor, de que o espaço virtual é um âmbito que chegou para ficar, pois é capaz de fornecer justamente as condições que facilitam a aula. O que estamos dispostos a perder com essa ideia é o próprio conceito de comunidade, de laço e de produção de uma cultura de igualdade, curiosidade e acolhimento da dúvida no interior da academia; estamos dispostos a perder um conceito que se engaje na causa humana.

Sérgio Prudente é psicanalista, pós-doutorado em psicologia clínica pela USP. Professor adjunto de psicologia da UFRN. Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

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